Na nossa infância, inda pequenos,
Juntos nós íamos brincar,
Correndo à solta pelos fenos,
Colhendo amoras no pomar;
Dias de paz, dias serenos,
Vimos contentes deslizar,
Mirando, à tarde, a estrela Vénus,
Ouvindo histórias, ao luar,
Na nossa infância, inda pequenos,
Quando nós íamos brincar.

Depois, rapazes já crescidos,
Já com prosápias juvenis,
De estudos mais desenvolvidos
Mostrando, já, certo verniz,
Mas sem ciúmes nem pruridos
De triunfar por meios vis,
Nunca de cera, envaidecidos,
Quisemos pôr falso nariz...
Depois, rapazes já crescidos,
Já com prosápias juvenis,

/ 404 /

Mais tarde – o tempo não perdoa!
Toldam-se os ares para mim;
Em dobres fúnebres ecoa
Da adolescência o amargo fim...
De espectros mudos se povoa
A minha «Torre de Marfim»;
Dos sonhos meus o enxame voa,
Como ao rebate de um clarim...
Mais tarde – o tempo não perdoa!
Cerrou-se a noite para mim...

Raiou-me, enfim! nova esperança
No lar que eu próprio cimentei.
– Feliz aquele que descansa,
Vivendo o sonho que eu sonhei!
Sonho de rústica bonança,
De rei-pastor de amada grei,
Pondo no oiro da balança
O coração sustendo a lei.
Raiou-me, enfim! nova esperança
No lar que eu próprio cimentei.


Mas – esperança fementida!
Em breve, o sonho se desfez...
A grei – ceifada, dividida,
Longe do aprisco onde se fez;
A paz – num pélago sumida;
Na alma – a noite da viuvez...
Tal é a síntese da vida,
O tragi-cómico entremez:
– Uma esperança fementida,
Sonho que breve se desfez...

Volvo os meus olhos ao passado
E... sinto as lágrimas correr,
Como no rosto do soldado
Que, heroicamente a combater,
Caiu vencido, aniquilado,
E nem sequer pôde morrer!
Já, do presente, enauseado,
E no futuro sem já crer,
Volvo os meus olhos ao passado
E... deixo as lágrimas correr.

/ 405 /

Que vejo eu lá, nessa distância,
Que inda me afaga o coração?
Que grata e célica fragrância
Me traz, de longe, a viração?
Vultos de olímpica elegância,
Lábios frementes de paixão,
Jogos pueris, quadros da infância,
Sombras amadas, no caixão...
Que vejo eu lá, nessa distância,
Que me enternece o coração?

 


Memórias puras de outra idade,
Memórias santas do meu lar!
Só vós «viveis na realidade»
E em vós me quero amortalhar.
Só vós, à trágica ansiedade,
Que nunca viu piedoso olhar,
Trazeis um bálsamo – a saudade,
Dais um consolo – o de chorar...
Memórias puras de outra idade,
Memórias santas do meu lar!

/ 406 /

 

O resto... fantasmagoria!
Pura comédia, convenção...
A peste egoísta contagia
O mais vetusto coração.
No meu caminho, dia a dia,
Vejo cair uma ilusão...
Só tu, saudade! e tu, poesia!
Me inda embalais numa canção...
O resto... fantasmagoria,
Pura comédia, convenção...

 

 

Cantais-me ainda um ritornelo,
À moda antiga, de solau,
Como ninguém cantou, mais belo.
Da corte em fúlgido sarau;
E, preso à vida por esse elo,
Tal como ao lodo a velha nau,
Sozinho, vou – de alto castelo
Descendo o último degrau...
Ainda ouvindo o ritornelo
Do tempo antigo do solau...

Setembro, 28 – 1907

M. DUARTE D'ALMEIDA


 

12-08-2020