ODOS os anos, no quarto domingo de Julho, em Loures, povoação aprazível, abundante em águas, arvoredos e deliciosos frutos, costuma haver uma importante feira de gado onde concorrem negociantes de quase todos os pontos do país.

Numa extensão enorme de terreno, coberta de sol e fadiga, avistam-se acampados circundando as manadas, récuas e rebanhos, grupos numerosos de homens e mulheres formando barracas, acendendo lareiras, dispondo utensílios que vão chegando nas carroças que de longe em longe surgem na volta da estrada numa nuvem de poeira.

É deveras curioso o burburinho e a desordem que esta gente de negócio estabelece no mercado, cantando uns, numa desafinação propositada, ramalhando outros, chocalhos, latas, campainhas e ainda com esgares, momices e mais festas por vezes tão indecorosas, que o nosso avô do Mato certamente não teria. Todo este inferno que movimenta a feira tem uma visão única – chamar a atenção do comprador.

É um verdadeiro campeonato do réclame na sua forma primitiva.

À medida que os curiosos, romeiros e mais gente vão enchendo o recinto, as exibições dos feirantes recrudescem. Aqui, um cigano monta um cavalo em pelo pimponeando a destreza e galhardia do bicho; acolá os marchantes e pastores, em fitas de terreno propositadamente levantado, dispõem as / 244 / manadas de forma que as cabeças do gado fiquem num plano mais alto para assim lhes dar maior beleza e maior vista; além, uma cachopa à porta de uma barraca, de carão tostado, saia curta, formas rijas e gestos provocantes, convida o populacho ao peixe frito que ao fundo, na lareira, uma velha desdentada e de olhos pequeninos, vai tirando da frigideira de barro à medida que o vê loiro e cozido; perto, um homem de barba em carapinha e negra, olhos parados e terríveis de fazer medo a um salteador, apregoa em altos berros – Quem quer uma navalha? Cá está o jogo da navalha – e a um grupo de campónios que o escuta vai oferecendo argolas que estes atiram para a prancha de madeira onde estão espetadas as navalhas.

– Arre diabo... até que enfim! – Diz um do grupo.

– Ganhou. Pegue lá a sua navalha, acrescenta o homem do jogo.

Fora um campónio que depois de atirar muitas argolas conseguiu enfiar uma, recebendo como prémio a navalha em que acertou.

Entretanto o homem de olhos terríveis continua a praguejar – Cada argola dez reis. Quem quer uma navalha? Quem quer uma navalha?

Outros jogos e outros espectáculos por ali se fazem, tudo numa alegria postiça da parte dos feirantes e numa ânsia do vintém que chega a fazer dó.

A fraude, a audácia, a gatunice, ou menos criminosamente – o negócio da feira é um sport autêntico, adquirido por uma educação especial e demorada por uma prática de muitos anos chegando os mestres nesta arte de furtar, em geral ciganos, a fazer prodígios, coisas inacreditáveis. Assim, ainda há pouco tempo, um pobre homem foi à feira vender a um cigano um burro gasto e velho / 245 / por sete mil reis, a fim de comprar um novo que aturasse mais serviço.

Como a feira demorasse uns dias acontece que o cigano, tosquiado o burro, muito limpo e bem alimentado durante o tempo em que o teve à mão, conseguiu pô-lo em estado de poder fazer boa figura em aparência.

Tendo voltado à feira o antigo dono do já falado burro, para comprar um novo, o cigano agora seu conhecido ofereceu-se imediatamente para lhe arranjar um bom animal e por um preço relativamente barato. Mostrou-lhe um burro que não era feio, esperto, trabalhando bem, por cinco libras. Comprou-o o nosso homem e não achou caro. Partiu para o seu casal contentíssimo porque o bicho parecia de boa andadura.

– Deve ser novo. – dizia ele.


Mas, qual o seu espanto, quando ao apear-se perto de casa, o burro novo, por sua alta recreação, sem que alguém lhe ensinasse o caminho, enfiou para a cabana que servia de estrebaria ao antigo. Admirado o homem com aquela sabedoria do bicho, entrou de examiná-lo com cuidado e reconheceu que o burro novo era o velho, o mesmo que dias antes tinha vendido por sete mil reis.

Só os ciganos conseguem fazer habilidades desta força e com tamanha perfeição.

Por processos hoje conhecidos de quase toda a gente, eles conseguem fazer dum cavalo ou qualquer outro gado, um animal capaz de ver-se. Para isso basta-lhes, durante alguns dias, alimentá-lo bem, deitando-lhe nas rações um pouco de sal comum misturado com uma dose, evidentemente pequena, de arsénico em pó; depois bem tosquiado, limpo e escovado, o animal assim é capaz de enganar o mais pintado que não seja, é claro, bastante conhecedor do assunto.

Por isso a desconfiança que se nota no comprador ao abeirar-se de um / 246 / cigano na feira para fazer negócio e a astúcia deste para impingir o que tem de ruim é coisa digna de ver e apreciar.

Quando o negócio vai realizar-se na venda dos animais, este reveste um ar de cerimónia muito curioso e parece obedecer a um rito cheio de paganismo e de beleza: o vendedor se é um cavalo monta-o, e se é um boi avança para à frente da manada numa atitude aprumada, alteando o peito, salientando as ancas, firmando bem os pés e brandindo a aguilhada com que toca os bois redobrando de elegância e destreza como se as quisesse transmitir aos animais para melhor convencer o comprador.

Este, a certa altura do exame, dá-se por satisfeito; há um aperto de mãos, uma palavra sacramental e na próxima locanda ambulante bebe-se vinho e conta-se dinheiro.

A feira de Loures este ano, como sempre, foi muito concorrida, vendo-se lindas e sadias raparigas, que contrastam com as que estamos habituados a ver em certos dias em Lisboa, não só em formosura mas ainda em beleza de tipo até com aquelas que se orgulham de o ter herdado de uma raça seleccionada e ilustre.

Em geral, a nossa mulher da Estremadura e Alentejo não é das mais belas e foi para nós duma surpresa bem agradável encontrarmos raparigas, cujos rostos, dum rigor de desenho admirável, atravessando a feira num ar simultaneamente altivo e tímido que as tornava interessantes a valer. Os olhos mais indiferentes não podiam / 247 / deixar de parar agradados sobre aquelas figuras de mulher tão simples, tão naturais, revestidas apenas do inédito e curioso encanto que tem a graça arisca do instinto.

A nota mais alegre e fresca da feira era, evidentemente, a que estas mulheres sadias e coradas deixavam na sua passagem em bandos.

O aspecto do recinto, pela tarde, quando o sol se despedia já, nas franjas do arvoredo, que ao longe se avistava, tornava-se mais agradável, porque o calor e a poeira, que ali eram insuportáveis, concorriam bastante para que todos esses costumes, característicos e interessantes, irritassem a gente pouco habituada àquele inferno.

Todos esses rumores e cantigas que pela hora do sol e da sede fazem horrores e desesperos, são agora motivos de piedade e ternura para esse povo distante da civilização por tantos centos de anos e revelando por essa forma de viver e enganar a defesa legítima dessa vida apenas farta de necessidades e misérias.

Agora que o bem-estar e a frescura da noite que se aproxima nos abraça numa carícia, o jogador da navalha já não tem os olhos terríveis e patibulares, mas os de um pobre mendigo que põe ao serviço da fome toda a habilidade e inteligência possível para ganhar uns míseros dez reis.

Agora, a vida é outra, bem diferente daquela que há pouco era importuna; o gado parece mais belo e forte, os homens mais francos e bondosos, as questões são raras, os negócios fecham-se com uma certa rapidez, as barracas enchem-se de gente que bebe e come com apetite, há como que um reconhecimento para com todos dum certo bem que se trocasse.

Aproxima -se a noite e afastamo-nos da feira. As luzes vão aparecendo pelo recinto que de longe lembram estrelas que do céu caíram, as manadas recuas e rebanhos já deitados, pelo escuro, confundem-se com a terra que parece leve da de cabeças a mexer. Pela estrada encontram-se ainda alguns retardatários a caminho da feira que preferiram a noite para a viagem; e, numa carroça puxada por um boi e um cavalo lá vem uma família com uma tribo de filhos a dormir sobre montes de lona, cestos, e mais trapos, destacando-se num ar de estátua da fome, uma figura de mulher amamentando um pequenito que de vez em quando chora talvez a secura desses peitos. Ao lado, mas a pé, de aguilhão em punho segue o marido e pai dessa família, ajudando o boi e cavalo a puxar por aquilo tudo.

(Clichés de Castelo Branco)


 

 

12-07-2020