EPISÓDIOS E ANEDOTAS
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O PRIMEIRO POSTO
ARA
onde vou?
– Pergunta bem, meu caro tenente, mas não lhe sei
responder.
– E mantimentos?
– Não se preocupe com isso. Apenas o posso informar
que tem de embarcar às três horas para bordo do Neves Ferreira.
– E quem vai mais?
– O alferes França e quarenta soldados do batalhão.
– Já foram nomeados?
– Ainda não. Sê-lo-ão agora, escolhidos de entre os
que se sintam menos doentes.
Passava-se este rápido diálogo nos quartéis da Ponta
Vermelha, em Lourenço Marques, na noite de 12 de Março de 1895,
entre o major José Ribeiro, comandante do Batalhão de Caçadores 2,
da metrópole, e o tenente, hoje capitão, Gregório da Rocha.
Eram cerca das dez e meia. As praças que deviam
constituir o destacamento, já deitadas, algumas a dormir, e quase
todas a curtir febres, levantaram-se, vestiram-se, sem que um
murmúrio de má vontade ecoasse pelo comprido casarão.
Ninguém sabia para onde ia e também a curiosidade
depressa adormeceu no coração daqueles homens, tão pacientemente
submissos ao sacrifício, com tanta singeleza prontos para as mais
estupendas temeridades.
– Eu já não volto cá acima sem trazer uma orelha do
Zichacha – disse um para o camarada, enquanto apertava o boldrié.
– Talvez com grelos substitua a orelheira lá da nossa
terra – comentou outro com seriedade.
– Deixa-te de bazófias e vê se consegues agradar a
alguma régula, isso é que nos faz falta – expôs um terceiro,
soltando um profundo suspiro –, era a maneira das maleitas nos
largarem.
Com estes e outros inofensivos gracejos, esquecendo
alguns até os simultâneos calafrios e calores da febre que os
minava, aprestaram-se, e cerca da uma da madrugada desceram até à
ponte.
Em baixo a cidade dormia num silêncio pesado, mal
iluminada pelos clarões vacilantes dos candeeiros, como mortiços
lampadários duma vasta catedral em cerimónia fúnebre. As casas de
alvenaria e de zinco, baixas e de arquitectura monótona, semelhantes
a enormes caixotes que algum navio colossal tivesse desembarcado na
praia, conservavam-se hermeticamente fechadas, dir-se-iam desertas
ainda pelo pânico sugerido pelas incursões dos negros em rebeldia;
não se desprendia de lá a mais insignificante
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de fôlego vivo. Os hangares da alfândega, com a sua emaranhada
estrutura de ferro, com os pilares rígidos e esguios a abrirem os
descarnados braços das asnas, que sustinham num esforço oscilante de
ébrio trôpego as chapas caneladas do telhado, lembravam as
construções fantásticas dum pesadelo torturante. A ponte
prolongava-se negra e esfuziada pelo Espírito Santo fora,
equilibrando o tabuleiro como um estrado de carro funerário,
balouçando o madeiramento ao sabor das vagas, dolentemente
rumorejantes, abrindo fendas de tábua a tábua através das quais se
adivinhava a água sombria e glauca. O rio, ao largo, estagnava-se
num pêgo sinistro, unido e lúgubre como o chão dum cemitério, onde
os cascos dos navios figuravam mausoléus e as vergas atravessadas
nos mastros as cruzes que os coroam.
– Parece que vamos para um funeral – balbuciou um dos
soldados com a voz sumida.
– Talvez o de nós mesmos – redarguiu o outro no mesmo
tom.
– Para o dos pretos é que é – acrescentou rápido o
camarada da esquerda, zombeteiro, a rir.
Encontravam-se aí mais cinquenta praças de Caçadores
3, da África Oriental, dez da polícia da cidade e duas peças de
montanha. Embarcaram também o major da província Jaime Ferreira,
oficial valente e de merecimento, e o alferes Sarrea.
No momento em que estas forças iam para descer para
os escaleres, apareceram o capitão Eduardo Costa, chefe de
estado-maior, o major Caldas Xavier e ainda outros oficiais a quem
os seus deveres ou o acaso tinham conduzido até ali, àquela hora
adiantada da noite.
– Dê cá um abraço – disse Caldas Xavier para o
tenente Rocha.
E o valente africanista, que não era dado a muitas
efusões, estreitou durante largo período o seu camarada. Houve até
quem porfiasse que vira uma lágrima teimosa a orvalhar os olhos do
intrépido major.
*
* *
O Neves Ferreira, vapor de pequena tonelagem,
ficara de todo a abarrotar com aquele acréscimo de praças europeias,
que quase não dispunham de espaço para se deitar. O navio, que não
era deselegante, perdera a melhor parte das suas linhas estéticas
para defender os tripulantes e passageiros quando seguia pelo
Incomati acima, varejado com fúria insana pela fuzilaria dos
rebeldes, acoutados na margem esquerda. Tabuões grossos,
sobrepostos, constituíam uma blindagem sui generis a cada
bordo, rasgada aqui e ali por seteiras, por onde se prolongavam os
canos delgados das Kropatscheks, ou o feixe das goelas escancaradas
das metralhadoras.
De madrugada, ainda tenebrosa e asfixiante, levantou
ferro a embarcação para dobrar a Ponta Vermelha, que se erguia a
prumo, num alcantil rendilhado de penedos, e ameaçava despenhar-se e
esmagar quem lhe afrontasse a vizinhança. A reboque seguia um
batelão com mais soldados negros e basto material cujo destino
ninguém conhecia.
Fora, na baía, de terra a rastejar com a mareta em
rebentação franjada de espuma fosforescente, a escuridão ainda
/ 197
/ era mais vaga, mais enigmática, mais criadora de lendas
supersticiosas. Além, um telão, como de densos crepes, corrido sobre
o horizonte, a ocultar o revolto canal de Moçambique, o trágico
cenário das monomocaias, que num instante desarvoram, avariam e
afundam o mais alteroso barco. Dos lados, num amplexo arenoso,
orlado de mangal, o contorno em hemiciclo da praia, vestíbulo de
envenenados pauis, onde a cada hausto se absorve a peçonha das
perniciosas fulminantes e o gérmen das anemias deprimentes.
O vapor singrava cauteloso, a tactear os parcéis,
deslizando pelos canais acairelados de bancos, arrimado ao prumo
como um cego ao bordão, sacudindo o hélice como o mastim a cauda, ao
farejar um covil de lobos.
– Para onde vamos? – perguntavam entre si os
soldados.
– Em busca do diabo que deve andar por esses brejos.
– respondia um mais expansivo.
E a máquina continuava a resfolegar, num ofego de
cansaço, arrancando um queixume a cada junta, gemendo a cada
solavanco, lavrando a areia com a quilha, doendo-se das guinadas,
carpindo o obrigarem-no a navegar quase sem água.
Amanheceu por fim. O tablado mudou de aspecto. O
Neves Ferreira aproou à barra do Incomati, depois de costear a
Xefina Grande, e entranhou-se nos meandros de verdura e nos
labirintos de escolhos da tortuosa via fluvial. Não foi longo o
trajecto. Um traiçoeiro baixio entravou-lhe logo aí a marcha. Nenhum
enérgico esforço, nem recurso por mais heróico que fosse, do seu
brioso comandante, o desarreigaram da fofa cama de areia. Demorou-se
ali três dias. Ao cabo deles, depois de o aliviarem de quanto podia
ser transferido para os batelões rebocados, lá seguiu rio acima,
saudado ainda com mais fúria pela metralha e doestos da negraria,
que durante os três dias da laboriosa faina.
O então capitão de engenharia Freire de Andrade,
governador interino do distrito, subiu para o Neves Ferreira,
transportado de Lourenço Marques na lancha Bacamarte.
– Sabe o que vamos fazer? – perguntou o intrépido
engenheiro ao tenente Rocha.
– Ignoro-o ainda – respondeu o interrogado.
– Estabelecer um posto no Marracuene.
– Como V. Ex.ª quiser – aquiesceu com a simplicidade
da bravura o tenente de Caçadores 2.
Freire de Andrade com a sua indomável pertinácia, que
forma uma das mais singulares qualidades do seu carácter rijamente
temperado, advogara sempre junto do comissário régio, conselheiro
António Ennes, a necessidade de ocupar definitivamente o Marracuene,
abandonado três dias depois do glorioso combate de 2 de Fevereiro.
No conselho, homens do denodo de Caldas Xavier,
Henrique Couceiro, Eduardo Costa e Aires de Ornelas, tinham-se
oposto abertamente a tal temeridade. Freire de Andrade não
desanimou.
Insistia no seu plano favorito a cada hora, a cada
minuto. A António Ennes repugnava-lhe dar o seu consentimento para
essa hecatombe em perspectiva. Servia-se de quantos argumentos a sua
dialéctica lhe sugeria.
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Repelido até ao último reduto, entrincheirou-se no
pesar das famílias a quem tal catástrofe, quando sucedesse, lançaria
no luto e no desespero.
– Eu adoro minha mulher e meus filhos e também vou;
já V. Ex.ª vê que confio plenamente no bom êxito da ideia – rebateu
Freire de Andrade.
O comissário régio fora vencido e o posto ia
estabelecer-se. Caldas Xavier é que continuava a acreditar num
desastre inevitável, e essa crença levara-o a dar o demorado abraço,
que citamos, e que presumia ser o último, no tenente Gregório Rocha,
a quem se afeiçoara intimamente.
*
* *
A viagem principiou então a acidentar-se de
peripécias. A oeste da Xefina Pequena o tiroteio dos rebeldes
desencadeou-se num crepitar de granizo tempestuoso. As balas batiam
no costado, chaminé e mastros da embarcação, como saraiva nas
vidraças em noites de invernia. A ramagem do mangal intercalava-se
de pequenos flocos brancos, como de algodão em rama, e logo zumbiam
projécteis de todos os feitios e tamanhos, num enxamear de vespas de
ferrão mortífero.
– É como chuva de pedra lá na minha terra! –
comentava um soldado depois de conscienciosamente ter disparado a
espingarda sobre o inimigo que não via.
– Parece mas é o varejo da azeitona – emendou outro.
E o vapor avançava cautelosamente, com a Bacamarte
na frente, à guisa de podengo de boa raça, a farejar cada banco, a
sondar os canais, desconfiando da placidez das águas, manobrando com
perícia para se safar das rascadas e descarregando, amiúde, por
desfastio, meia dúzia de tiros da sua veloz metralhadora.
As posições do Finish, onde qualquer renegado
europeu amontoara quanto as ciências militares conhecem de
fortificação
/ 199 / passageira, era o Humaitá do Incomati. Ali
perdera destemidamente o primeiro-tenente Filipe Nunes a vida, ali
hão encontrado a morte do soldado bastantes expedicionários, ali se
concentrava o foco mais desenfreado e impune da revolta indígena.
Havia ordem terminante para que ninguém se mostrasse
acima das amuradas das embarcações. O comboio fluvial singrava
lentamente, a metralha dos negros redobrava de intensidade. As
pranchas dos resguardos esburacavam-se num crivo, a atmosfera como
escurecia da nuvem de zagalotes, escumilha, balas das Martini Henry,
Colt e Winchester. Era um tal misto de projécteis, que se diria um
certame de arsenais em experiências de balística. A curiosidade, que
já perdera nossa mãe Eva, ia causar mais uma vítima. Um cabo preto,
supondo haver um sector indemne por onde passasse o raio visual,
espreitou. Foi varado.
Transpostas as ilhas da Benguelena, a dos Limões,
percorridas as caprichosas voltas em que o rio se enovela, calada a
fuzilaria oculta e pertinaz da margem esquerda, ultrapassado o local
onde se pelejara o formidável combate de 2 de Fevereiro, Freire de
Andrade mandou parar a flotilha defronte dum sítio de riba mais
erguida e acessível.
Foi determinado o desembarque para dali a horas.
Compreenderam então os soldados a missão que se lhes impunha.
A totalidade aceitou com a simplicidade do heroísmo o
tremendo sacrifício, houve, porém, um, que não pertencia a nenhuma
unidade europeia, que objectou em voz baixa para os camaradas:
– Ó rapazes, nós éramos seiscentos da outra vez,
aqui, e os negros por um triz que não nos despedaçam; somos agora
menos de cem, que vamos fazer? Não sai daí um inteiro.
– Eu cá – atalhou de pronto um soldado de Caçadores 2
– quando saí de Lisboa confiei a vida aos nossos oficiais; eles que
façam o que entenderem dela.
– Se nós não quiséssemos – insistiu a má cabeça – não
nos podiam obrigar a desembarcar.
– Mas como eles vão na frente – interveio um cabo –
nós não havemos de os abandonar.
Este rápido diálogo fora ouvido pelo tenente Rocha. O
alferes França era de opinião que se metesse sem demora uma bala nos
miolos do aliciador. O tenente Rocha preferiu vigiar de perto o
dementado
/ 200 / e puni-lo com rigor se fosse necessário. Não houve
mister de empregar medidas extremas. O poltrão de momento igualou-se
depois aos companheiros em valentia. Foi a vertigem do medo, que nem
sempre poupa os mais heróicos.
Da banda fronteira ouviam-se repetidas detonações, e
após um silvo estridente, cair, no ponto a ocupar, uma ou outra
folha cortada cerce pelos mortíferos arautos, que os rebeldes
enviavam a cumprimentar os recém-chegados. A acompanhar essas
manifestações de cortesia cafreal estrugia um alarido diabólico, na
língua nativa e em português arrevesado, onde as ameaças se
enlaçavam com as vaias, as bravatas com os insultos, as imprecações
com as mais tremendas promessas de total aniquilamento.
– Hemos de levar as cabeças de todos de saguate
ao Gungunhana – diziam numa algazarra que causaria inveja a uma
sessão legislativa no inferno.
Os nossos não ficaram tão intimidados que não
saltassem em terra, num frenesi de audácia. Os primeiros a galgarem
pela encosta acima, empachada de arvoredo, enredada de mato, onde
cada esteva poderia abrigar um negro, foram Freire de Andrade e
tenente Rocha. Os demais oficiais permaneceram a bordo, por ordem,
para vigiar o resto do desembarque.
Dois tiros esfuracam a pele de dois soldados em
ferimentos leves. Das embarcações a artilharia espreita atenta para
onde há de jorrar um furacão de metralha; a tropa arma baioneta e de
dedo no gatilho remexe cada moita, examina cada árvore, explora cada
trecho de mato, investe com o arranco dum touro de sangue nobre
sobre tudo quanto lhe possa erguer um obstáculo.
Atingira-se a crista sem a mínima agressão desse
lado; nem se divisara alma viva, nem vestígio de emboscada. Apenas a
certa distancia, ao lado da mancha enegrecida dum acervo de madeiros
carbonizados, se avistava um feixe de ossos humanos, alvos como se
fossem caiados, limpos, expurgados de aderências pela acção contínua
de chuveiros torrenciais. Era o jazigo, o monumento funerário, dos
landins, exterminados pelas nossas armas no vendaval de fogo da
madrugada de 2 de Fevereiro.
*
* *
Principiou a tarefa da construção do posto. A febre,
que convulsionava muitos em arrepios de epilepsia, transmitiu-lhes a
força nervosa de atletas invencíveis. Os machados relampejavam de
encontro aos troncos nodosos das moIambeiras, das acácias, dos
mangues, e despenhava-os no solo com a velocidade e o poder de
máquinas titânicas; o milho, o mato, o tojo, quantas plantas a
natureza pujante dos trópicos germinara, desenvolvera e fortificara,
tudo foi ceifado, arrancado, posto com as raízes a descoberto,
acamado em medas, repartido em molhos, prontos a serem utilizados em
lenha. Onde se enredava um brejo, valhacouto de feras ou de homens
armados, que tudo significa o mesmo, de ramagem emaranhada, de
pernadas estendidas numa confusão de bíblico caos, de estevas
revestidas de abrolhos, de capim aleivoso como o ósculo de Judas,
alargava-se agora uma esplanada com razoável campo de tiro e
aplanara-se um caminho, que permitia trazer do rio à clareira,
munições, víveres e material.
A ferramenta não dispensava a arma. Ao mais pequeno
alarme, mangas emplumadas que se supunham avistar ao longe, sons
roucos e plangentes de buzina que o eco vinha trazendo de langua em
langua, a serra ou a picareta era posta de parte e a baioneta
cintilava ameaçadora de ponta virada para esses ruídos suspeitos.
Estes sobressaltos mais incitavam a actividade dos
belicosos operários. Cada palmo de trincheira aberto era menos uma
probabilidade de desastre e mais um elemento de vitória.
Derrubavam-se os troncos e os ramos em abatizes;
corria-se o arame farpado em redes de malhas apertadas e
sobrepostas; erguiam-se parapeitos progressivamente mais espessos;
cavavam-se fossos cada minuto mais profundos; delineavam-se e
levantavam-se tambores de flanqueamento; saía da terra, como por
encanto, um reduto; recalcavam-se plataformas para assentar a
artilharia; dispunham-se folhas de zinco, paralelas entre si, com os
intervalos cheios de areia, o que formava magníficos abrigos; enfim,
com essa varinha
/ 201 / de condão, – a energia e a força de vontade
– do nada saía um espécime tão completo quanto possível de castrametação africana.
– Mas eu não me contratei para vir para a guerra –
protestava um carpinteiro, que recebia cinco mil reis diários, mas a
quem, parece, não houve tempo de explicar pormenorizadamente onde e
como ganharia esse dinheiro.
– Que lhe há-de fazer agora? – respondia sorrindo,
não sem certa ironia, o oficial interpelado. – Se supõe que o
enganaram volte para Lourenço Marques; ninguém o detém aqui contra
sua vontade.
– Para os negros me matarem.
– Então deixe-se ficar.
– E se os landins aparecem?
– Defende-se.
– Mas eu não sou militar. Sabe Deus o susto que eu
tive no porão do Neves Ferreira, quando foi o tiroteio do
rio.
– Mas lá não chegavam as balas...
– Chegam aqui. Que hei-de fazer?
– Trabalhar com alma para aprontar todas essas
fortificações. Depois de concluídas, descanse, que não entram cá.
– Ó com a fortuna e eu que estive tanto tempo a dar à
taramela.
E lançou-se ao trabalho com uma espécie de frenesi
raivoso. O susto triplicara-lhe as forças. Era noite cerrada, não se
via nada, e ele ainda lidava com desesperado afã, zangando-se e
imprecando, quem, literalmente extenuado, o não podia imitar.
Para sermos completamente justos devemos acrescentar
que, mais para diante, se habituou ao duro serviço do posto. Ao
primeiro alarme, e houve bastantes, munia-se duma espingarda e vinha
para a trincheira esperar o inimigo como qualquer outro.
A coragem é contagiosa.
*
* *
O dia passara-se, mas a noite? O posto estava
esboçado, tinham-se construído as defesas mais elementares, os
parapeitos abrigavam até uma certa altura o busto dos defensores, as
duas peças de artilharia postaram-se nos pontos fracos, mas o que se
realizara até ao entardecer era pouquíssimo para resistir a um
ataque em forma, e que a todos se afigurava inevitável.
Cinquenta brancos e outros tantos angolas, dos mesmos
que tinham cedido no quadrado do Marracuene, para resistir às forças
concentradas do Zichacha, do Mahazuli, robustecidas com diversas
mangas vátuas do Bilene e de Gaza, era realmente uma temeridade.
Em redor do posto, a algumas dezenas de
/ 202 /
metros, acendera-se um semi-círculo de fogueiras. Apresentavam o
aspecto lúgubre de tocheiros, esses clarões rubros, emoldurados por
densas e amplas espirais de fumo, quase tão negras como a escuridade
que se prolongava pelo mato dentro. O serviço de segurança fora
organizado com o máximo rigor. Metade dos soldados ficavam de pé, na
trincheira, de olho à espreita e ouvido à escuta; o seu cerrafila
deitava-se atrás dele, vestido, armado, de espingarda à banda, e era
desperto ao menor ruído suspeito. Revezavam-se de duas em duas
horas. Os oficiais não dormiam, vigiavam o campo, e, muito
especialmente, impediam que os outros dormissem.
A noite emergira do crepúsculo num negrume pavoroso.
Entre as camadas baixas da atmosfera e a imensidade do espaço
correra-se como um enorme pano de luto, dos que ornamentam os
templos em dias de exéquias nacionais. Pesados e foscos vapores,
saturados de humidade, prenhes de ameaças borrascosas, contendo nos
seus flancos sugestivos fluidos eléctricos, calafetavam de tal modo
a cúpula do firmamento, que não transpareciam através deles nem um
luzeiro, nem uma cintilação, nem uma claridade fugitiva, nada que
recordasse qualquer fulgor astral. Aos lados, para além das
fogueiras, o mesmo cortinado espesso e negro, as trevas profundas na
sua opacidade aflitiva, a ausência física de qualquer manifestação
de luz, a cegueira absoluta da natureza, a falta de formas nos
objectos e nas coisas, a paisagem sem relevo, o desenho sem
perspectiva, os elementos fundidos, aniquilados, no caos. E de hora
a hora, parece que a escuridão redobrava num acréscimo de tormento
indefinível.
O silêncio, esse silêncio austero e imponente das
selvas, aumentava com a escuridão. Os olhos das sentinelas doíam-se
de não ver, os ouvidos latejavam de não ouvir. A acuidade dos
sentidos, na tortura da expectativa, causava perturbações delirantes
e vertigens de endoudecer. O instinto da conservação dominava tudo.
A esta primeira fase de mutismo quase absoluto,
sucedeu a dos misteriosos ruídos do sertão. As vagens do arvoredo
abriam-se num estalido seco, o do aperrar duma espingarda, e
deixavam cair as sementes que fecundariam terrenos distantes; os
galhos débeis dos arbustos, vergados por qualquer oculto peso,
partiam num estralejar brando imitando o andar cauteloso de muitos
homens; a folhagem, sacudida por uma ténue brisa, que não chegava
até ao posto, simulava o rastejar de guerreiros de pupilas felinas,
que se preparavam para uma investida de tigre; o rumorejar dos
milheirais, no cicio das bandeiras, arremedava a marcha de mangas
compactas, de rodelas embraçadas e de azagaias em punho; os répteis
que se perseguiam e pretendiam acasalar-se, as aves que se
aconchegavam no ninho, a seiva a vivificar as plantas, o verme a
buscar o sustento, o insecto voejando
/ 203 / na labuta nocturna,
todo esse conjunto de pequeninos sons que constituem como uma
insólita orquestra das noites do mato, eram outros tantos e certos
prenúncios dum ataque iminente, causa de acerbos sobressaltos num
prolongado e cruciante anseio.
De ora em quando, os cães esfaimados das povoações
desertas, misto de lobos e de raposas, as hienas sedentas, os
chacais sanguinários, os gatos bravos, quantos carnívoros por ali
andavam à solta sem pasto suficiente para a sua voracidade
insaciável, precipitavam-se numa carreira doida até perto das
trincheiras, fugiam em seguida espavoridos e voltavam logo para
tornar a recuar. Depois tudo mergulhava num silêncio de túmulo, para
dali a minutos atroar os ares uma lúgubre e medonha rajada de uivos,
latidos e rosnadelas, coro satânico do mais desenfreado sabbat,
sinfonia ululante e macabra que punha os cabelos em pé aos menos
supersticiosos.
Sobre a madrugada foram-se extinguindo as fogueiras
no bruxulear entre azulado e vermelho dos derradeiros clarões.
Então, na luta entre a vigília e o sono, entre a energia e a
modorra, entre a sensatez e a excitação nervosa, no
limiar dum horrendo pesadelo acordado, descobriam-se
sombras de contornos fantásticos a pular em esgares de ídolos
industânicos, figuras colossais e hediondas que arrasavam os
parapeitos, gnomos de risos escarninhos que arrebatavam as armas e
inundavam a pólvora, trasgos de feições convulsionadas que peavam os
defensores e os entregavam inermes à ferocidade dos negros, titãs de
fisionomia repugnante, munidos de tesouras enormes, a cortar o arame
farpado, ciclopes, com o único olho mais brilhante que um farol, de
gigantescos martelos, a encravar a artilharia.
Surgiu a manhã e com ela o sol, o chilrear da
passarada, o fresco que acalma a febre, a luz que incita ao
trabalho.
O posto não foi atacado. Salvara-o a formidável lição
do quadrado do Marracuene.
EDUARDO DE NORONHA
NOTA
– Os clichés deste artigo, absolutamente inéditos, são do
conselheiro A. F. de Andrade
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