lfama! O que representa este nome para a cidade
ridente que alastra pelas hortas, pelas quintas, pelos campos,
assumindo uma área de muitos quilómetros de raia, enchendo-se de uma
população avultada, conquistando já hoje foros de verdadeira
capital, aformoseada e culta!
Assim a confessaram, ilaqueados pelo conjunto de
belezas e comodidades da cidade do Tejo, centenares de estrangeiros
ilustres, que há dias a visitaram, acudindo ao XV Congresso de
Medicina, que nela brilhantemente se realizou.
A Alfama é uma relíquia da velha cidade, daquela
Lisboa tão transformada hoje pelo terramoto como pelo camartelo
demolidor das vereações modernas.
Aquela parte oriental da cidade que se estende pelas
encostas do monte da Alcáçova mourisca, hoje do Castelo, pelo do
monte da Graça, e pelo vale que as divide, até à beira-rio,
representa-nos a cidade velha, através dos séculos da sua história,
com todos os vestígios árabes, romanos, medievais e da Renascença; é
o testemunho vivo da estrutura antiga daquela Lisboa, em tempos
remotos cingida pela forte muralha com torres e postigos, berço de
tantos heróis, ninho de navegadores e mareantes, cheia de uma
população densa, apinhada em estreitas vielas, no casario pequeno,
que se amontoava pelas encostas, em acumulação perigosa, de que se
originaram por certo as espantosas pestes e as epidemias, que,
dizimando aquele formigueiro humano, deram origem a algumas das mais
pitorescas e tradicionais devoções, a que como único remédio, sabiam
abraçar-se os povos devotos e crentes doutras eras!
Dentro do forte castelo que coroa uma das eminências
mais próximas do Tejo, e depois pelas faldas do monte adjacentes à
muralha, abrigando-se com ela e com a defesa do castro, foi nascendo
e crescendo a velha Ulissipo.
Desses seus primórdios são abundantes os vestígios na
veneranda Alfama. A povoação cresceu. Irmã gémea da Alfama criou-se
a Mouraria; conquistou-se o vale maior para ocidente, com terreiros
ou ressios, e com arruamentos, que a breve trecho se
tornaram o centro mercantil da cidade, que assumia então
/ 176 /
o papel de enorme bazar europeu e oriental, onde todo o mundo vinha
abastecer-se dos interessantes e valiosos produtos das regiões
acabadas de devassar por intemeratos nautas e conquistadores
ousados.
Não bastando já o espaço, alastrou ainda a cidade
pelos outeiros vizinhos e ali surgiu um bairro, extramuros da nova
cerca – o bairro alto, cortado de ruas mais amplas,
semeado de vinhas, de olivedos, de flores e de pomares.
|
É uma nova fase da cidade que começa no século XVI.
Depois o medonho terramoto subvertendo a parte
central da cidade, deu motivo à grandiosa reedificação
Pombalina, que persiste também, mostrando-nos outro tipo bem
diferente da Lisboa do século XVIII. Finalmente um novo período
de actividade reconstrutora, iniciado pela vereação a que
presidia Rosa Araújo, veio transformar a capital, rasgando
através do seu casario e dos seus arruamentos mais ou menos
tortuosos, as grandes avenidas, os parques, os jardins,
tendentes não só a facilitar o trânsito e as ligações entre
bairros extremos da já vastíssima cidade, como também a sanear e
a ventilar convenientemente os perigosos enxames de habitações
urbanas. |
É incontestável que destes quatro tipos bem nítidos e
diversos, que a capital portuguesa oferece ao estudioso e ao
forasteiro, os quadros da vetusta Alfama e da Mouraria, têm, sem a
menor dúvida, os melhores pergaminhos, as mais antigas e curiosas
tradições; ligam-se a eles os mais palpitantes trechos da história
municipal, os mais pitorescos vislumbres dos usos e costumes, da
vida antiga lisboeta.
Para se apreciar porém a cidade velha, para podermos
pôr na imaginação o seu quadro vivo e animado de outros tempos, com
seus palácios, de que hoje nos restam ruínas, com suas ruas, becos,
vielas, alfurjas e quebra-costas, com seus arcos e postigos,
recantos tenebrosos, vias sujas e escuras, com a população de
pescadores, de judeus, de bufarinheiros, de artífices engenhosos, de
fidalgos arrogantes, de religiosos e de clerezia, precisamos de um
cicerone sapiente e ilustrado, que a cada passo, em cada rua, em
cada monumento, nos diga a significação venerável dessas relíquias
do passado.
/ 177 /
Assim
como o viajante só pode visitar as ruínas romanas da Itália,
com o seu Tácito e o seu Tito Lívio nas mãos, para recompor na ideia
as grandiosidades da civilização dos Césares, assim o forasteiro, o
arqueólogo, o artista, quando queiram percorrer a Alfama, o bairro
antigo da velha Lisboa, hão-de fazê-lo com um guia inapreciável, que
felizmente possuímos. A cidade teve o seu entusiástico,
devotadíssimo cronista, o Sr. Júlio de Castilho, lisboeta de
nascimento e de coração, que durante muitos anos, em sucessivos
estudos, ministrou na sua obra monumental – A Lisboa antiga –
as mais interessantes e copiosas notícias sobre a nossa pitoresca
cidade, sobre os seus monumentos, torres, muralhas, postigos, casas,
ruas, palácios, sítios e memórias, bem como acerca dos seus
originais costumes populares, tradições aristocráticas e religiosas,
devoções, bulício, vida anedótica e familiar, tudo escrito em
amaneirados capítulos que seduzem e encantam pela graça natural,
simples, fluente; pela singeleza dramática das narrativas, pela
multiplicidade de episódios e de factos, pela observação fina e
erudita, pelo amor apaixonado enfim, com o que ilustre escritor,
herdeiro de um nome por tantos respeitos venerando, levantou à sua
terra natal, o mais perdurável e glorioso monumento escrito.
A Lisboa antiga,
nos seus sete volumes, edição da Casa Ferreira, estuda os bairros
orientais da cidade desde as origens primitivas através dos reinados
das primeiras dinastias. Numa outra série de cinco volumes,
desdobramento do volume primeiro da colecção antiga, descreveu-nos o
autor o Bairro Alto.
Desta obra, como já em tempo o propôs o ilustre
director desta revista, o Sr. Henrique Lopes de Mendonça, deveria a
municipalidade, a todo o custo, ter feito uma primorosa edição
monumental, profusa e ricamente iluminada pela reprodução artística
de todos os edifícios e lugares memoráveis da velha Lisboa. Assim o
fez a edilidade parisiense mandando publicar em belos volumes a obra
não menos preciosa – Paris municipal – em que se incluem,
alem da parte descritiva, a parte histórica e a documental. Para
suprir esta última a Câmara de Lisboa empreendeu a publicação
louvável da coordenação dos mais interessantes documentos do seu
arquivo, feita pelo ilustrado arquivista Sr. Eduardo Freire de
Oliveira, sob o título de Elementos para a história do
município de Lisboa, obra que conta já catorze volumes
preciosos.
Socorrendo-nos pois da Lisboa antiga e
de outro manancioso repositório de notícias, que lhe deveria andar
ligado sob a mesma denominação e plano, e à qual o seu proficiente
autor Sr. Visconde de Castilho deu o titulo de A Ribeira de
/ 178 /
Lisboa, vamos agora, sem por sombras intentarmos
descrever a Alfama, o que levaria volumes, esboçar o itinerário de
um dos muitos passeios que o estudioso e o artista podem empreender,
através daquele vetusto bairro da capital.
«Eis-nos em frente da velha Alfama, a rumorosa, a
histórica, a marinheira Alfama! Eis-nos no coração da Lisboa antiga!
Descobre-te, leitor, e saúda essa avoenga ilustre da nossa cidade de
mármore!»
Assim abre o Sr. Visconde de Castilho o capitulo do
A Ribeira de Lisboa, onde começa a descrever com
minúcias sedutoras este bairro que Herculano definiu como – o
bairro da gente miúda, sobretudo de pescadores.
Garrett, que era um artista e um apaixonado
arqueólogo, mostrou-se seduzido pelos encantos daquele verdadeiro
bairro de marítimos, aglomerado enorme de famílias pobres e
miseráveis, ocupando-se na sua maioria da vida do mar, gente
buliçosa, trabalhadora, piedosa e patriótica.
Subamos às grimpas do monte, onde a alcáçova
mourisca, velho castelo roqueiro, depois convertido em paço dos
reis, dominava alterosa a ridente paisagem dos campos, banhada pelo
soberbo estuário do Tejo.
Desçamos da porta do Castelo pela rua de S.
Bartolomeu, a Santo Eloy e às escadinhas de S. Crispim.
É sítio este de venerandas e nobilíssimas tradições.
Ali era o hospital de S. Paulo, fundado pelo bispo fr. Domingos
Jardo, o famoso conselheiro de el-rei D. Dinis e um dos principais
promotores da fundação da Universidade de Lisboa, em sítio não muito
distante, sob o nome que ainda persiste numa rua da Alfama – a
das Escolas Gerais.
Ali houve depois o convento de Santo Eloy e o paço
real, onde assistiu a rainha D. Leonor, mulher de D. João II, a
fundadora das Misericórdias do reino.
Assim os primeiros reis habitaram na Alcáçova, depois
desceram a S. Martinho, a Santo Eloy e a S. Bartolomeu, passaram a
Xabregas e por fim ao sumptuoso paço da Ribeira, no ainda hoje
denominado Terreiro do Paço.
Da residência régia em Santo Eloy lá ficou a tradição
ligada ao nome de uma rua, à rua das Damas, que já vem citada em
documentos de 1552, e nos lembra os aposentos das damas da rainha.
Em Belém
/ 179 /
se conserva tradição idêntica no Pátio das Damas.
Nesta freguesia de S. Bartolomeu viu a luz do dia o
célebre Pedro de Alcáçova Carneiro, que foi ministro do rei D. João
III e educado por seu pai António Carneiro, o famoso escrivão da
puridade, confidente e predilecto conselheiro de D. Manuel.
Outra memória curiosa se prende a esta freguesia: – a
de ser o poiso antigo, bem como a da Madalena, das afamadas
fiandeiras. Dizia o ditado – a boa fiandeira de S. Bartolomeu a
toma a velha, e a mais boa da Madalena. Desta indústria caseira,
diz-nos o autor do Sumário, citado na Lisboa antiga, que nada
menos de 815 fiandeiras existiam em Lisboa, no século XVI.
Desçamos as escadinhas de S. Crispim, onde existia a
ermida dedicada aos Santos do dia da entrada de D. Afonso Henriques
na cidade. Veja-se que antiquíssima memória!
Destruída a ermida,
construiu-se em lugar dela um prédio, naquela serventia alcantilada,
ribanceira medonha, que vem da antiga porta da Alfofa, ao longo da
velha muralha moira e dos seus adarbes, cujos vestígios ainda o
pesquisador inteligente determina aqui e além, como o fizeram o Sr.
Visconde de Castilho e
/ 180 /
mais recentemente outro erudito e dedicado investigador o Sr. Vieira
da Silva no estudo intitulado – A cerca moira de Lisboa.
Descendo a empinada costa de S. Crispim e a calçada
do Correio-mor, chegamos a Santo António da Sé, onde além da casa do
Santo e sua igreja, que actualmente ali encontramos, se nos desperta
a memória das antigas
Casas de Senado, de um hospital de
enfermos que em tempo de D. Manuel ali criou o venerando fr. Miguel
Contreiras, (frade trinitário e confessor da rainha D. Leonor), e da
Porta da Cidade, chamada da Consolação ou do Ferro,
sob o arco da qual havia um oratório ou capela.
Por ali passavam os condenados à morte, em lúgubre
procissão, em que tomava parte importante a irmandade da
Misericórdia, toda de preto com as suas bandeiras, tangendo o moço
do azul a campainha em badaladas plangentes.
O réu, agonizante, amparado pelo confessor, ao passar
sob a porta ou arco da Consolação, via no cimo o altar e o padre
dizendo o sacrifício católico da missa. Prosseguindo o sinistro
préstito ia à praça da Ribeira, junto ao Tejo, onde se erguiam
/ 181 /
o pelourinho e o baraço, símbolos da justiça humana, no que ela
tinha de mais cruel – a eliminação dos condenados.
Pela encosta abaixo coleava a velha muralha até ao
rio, a terminar na famosa torre da Escrivaninha, sítio depois
ocupado pelo faustoso templo e vasto edifício com que D. Manuel
dotou a nascente confraria da Misericórdia de Lisboa.
Não falaremos da Sé Catedral, essa construção
extraordinária onde os estilos arquitectónicos se misturam numa
confusão adorável, que enche de encantos e desesperos a alma do
arqueólogo apaixonado.
Nada diremos da velha igreja da Misericórdia, de que
só resta o formosíssimo portal, ladeado de janelas rendilhadas, que
hoje constitui a frontaria da igreja da Conceição Velha. São
relíquias felizmente conhecidas da maioria das pessoas cultas; não
se torna necessário chamar para elas a atenção dos nossos leitores.
Pela parte norte do edifício da Santa Confraria
corria a rua de cima da Misericórdia, hoje dos Bacalhoeiros, onde
ainda se abrem vários arcos ou passagens sobre a linha da velha
cerca moura. O primeiro é o Arco escuro, que ficava fronteira
à porta norte dos asilos e casas da Confraria. Estreito e sombrio,
bem justifica o seu nome, e dá entrada ao beco e
/ 182 /
estreita viela que segue em paralelismo à rua exterior. Mais adiante
há o Arco das portas do Mar e o Arco da Conceição, passagens abertas
sob prédios.
Na rua dos Bacalhoeiros depara-se-nos a célebre
Casa dos Bicos ou dos Diamantes, que pertenceu a Afonso
de Albuquerque, filho do conquistador do Oriente, casa por ele
edificada e cuja fachada principal abria, segundo parece, para a rua
de Afonso de Albuquerque, onde ainda se vê o paredão de cantaria
pintada a vermelho, e o resto de um columelo da porta.
|
Mais acima ficam as chamadas Cruzes da Sé, a
alterosa construção ogival da velha igreja dos bispos de Lisboa,
a pequenina ermida da Caridade Geral, e por detrás dela um
curioso beco, ladeirento e sombrio.
Volvendo para ocidente pelas Cruzes da Sé, depara-se
ao passeante a empinada escadaria do Quebra-Costas, que
bem faz lembrar o pitoresco Quebra-Costas que em Coimbra
acompanha o formoso edifício da Sé Velha. Para esta escadaria
estreita e escura, deitam as janelas esguias, ogivais, das
capelas do claustro, entre as quais uma havia, chamada a
capela dos Bispos, ou da Terra Solta, onde se
instituiu a Confraria da Misericórdia. |
Para esta capela tinham os prelados sua tribuna,
talvez com passagem para o Paço episcopal, que ficaria, presume-se,
sobre o Quebra-costas, como as moradas que el-rei D. Afonso
Henriques doara à catedral para residência dos seus cónegos, ficavam
em uma viela próxima, íngreme e tortuosa, hoje desaparecida, chamada
a rua dos Cónegos, da qual como
/ 183 /
derradeiro vestígio persiste apenas um largosinho pequeno, que
conserva a denominação de Largo da rua dos Cónegos.
Passada a Casa dos Bicos, na rua do Albuquerque, há o
prédio chamado das Varandas, e uma passagem por debaixo de
outro prédio, denominada – Escadinhas do Marquês de Lavradio.
Liga a linha marginal com um pequeno largo onde se vê o antigo
palácio dos marqueses de Gouveia, de magnifico portal (que tem o n.º
13) e janela brasonada, obra que no seu tempo foi objecto de grande
admiração. O poeta Tomás Pinto Brandão, dedicou-lhe uma décima que
vem no Pinto Renascido, e nela diz:
Como todo Portugal
o vosso portal foi ver,
eu senhor meu, lá fui ter, etc.
Junto ao Arco de Jesus, que fica logo adiante,
existem ainda também os restos de outro antigo palácio, o dos Condes
de Coculim, cujo brasão, as faixas dos Albuquerques, se mantém
ornando o cunhal, como pode distinguir-se na nossa estampa. Esta
vetusta mansão fidalga mereceu ao Sr. Júlio de Castilho extensa
notícia descritiva na sua Ribeira de Lisboa.
Entremos o arco, passemos pelo beco dos Armazéns do
linho, que limita o palácio pelo norte, e antes de chegar ao
Chafariz de El-rei, que foi na sua origem um dos mais antigos da
cidade, achamos outro arco, antigamente chamado porta ou postigo do
Chafariz d’el-rei, pelo qual se nos abre o acesso a um dos mais
interessantes e pitorescos quadros da velha Alfama.
É a travessa de S. João da Praça, que vai subindo
desde o arco que lhe dá serventia, e antigamente se chamava porta ou
postigo do chafariz d'el-rei. Os prédios altos cobrem a rua em
vários pontos, em passadiços com janelas, ornados de azulejos
policromos. As fotografias, óptimos clichés do Sr. A. Barcia, como
todos os que servem de tema a este artigo, dão-nos uma ideia da
curiosa perspectiva desta viela da Alfama, cujos términos superior,
não menos pitoresco, se aprecia bem na nossa gravura. Ao entrar o
arco quem atentar na parede, à direita, verá sobre a porta que
pertence ao chafariz d’el-rei, esculpidos em pedra, dois formosos
galeões ou caravelas.
Não refeito ainda o passeante da impressão indelével
que deixa no espírito a viela medieval, de que as nossas estampas
reproduzem três aspectos, quando andados alguns passos, se acha na
rua de S. João da Praça, ante uma porta que tem o n.º 18, e
transpondo-a, atónito, vê um pátio, denominado vulgarmente do
Condeixa, antiga propriedade do senhor de Murça, onde à direita se
ergue alteroso paredão, que é uma das veneráveis relíquias da cerca
moura da cidade, cuja directriz foi cuidadosamente estudada pelo Sr.
Vieira da Silva, no magnífico estudo que já citámos.
No alto da muralha vêem-se os cachorros de pedra
salientes, ligados dois a dois por abobadilhas, restos certamente
das antigas balestreiras ou ameias, de onde os guerreiros disparavam
sobre o atacante os tiros de suas bestas. É a
/ 184 /
mesma muralha, primitivamente reforçada de torres e quadrelas, de
que restam fragmentos na rua da Judiaria, no largo de S. Rafael, na
travessa do Chafariz d’el-rei, talvez por baixo dos alicerces do
Limoeiro, no largo das Portas do Sol, ou no antigo arco de Santa
Luzia, e também no pátio de D. Fradique.
Prosseguindo o passeio pela rua e calçada de S. João
da Praça, chega-se à encruzilhada de onde de súbito o visitante
avista na sua frente, em alpendorada perspectiva, as traseiras da
Cadeia do Limoeiro, paredões enormes crivados de janelas gradeadas,
restos actuais dos antigos paços de apar de S. Martinho,
da Moeda ou dos Infantes, de remotíssima construção,
firmados nos grandes jorramentos de cantaria, restos prováveis da
muralha moura.
Esta vista panorâmica, uma das mais alegres e vivas
deste artigo, foi tirada com grandes dificuldades de umas janelas do
segundo andar do antigo prédio do senhor de Murça, com entrada pelo
aludido pátio, graças à amável concessão das locatárias, já afeitas
e de bom grado a semelhantes importações de artistas amadores de
belezas arcaicas da Alfama.
Logo, andados dois passos, no largo de S. Rafael
erguem-se as altas paredes do adarve mourisco, denominado da
Alfama ou de S. Pedro, hoje coroadas pelas bucólicas
verduras de um pequeno quintal particular. A certa altura da muralha
há duas curiosas goteiras, de escultura antiquíssima, representando
como que umas caras de mouros, largas, redondas e chatas, de
singular desenho.
A esta torre, prende-se outra, que fica mais abaixo,
junto ao Chafariz d’el-rei, por um lanço de muralha que desce
ao longo da inigualável rua da Judiaria. Neste lanço notam-se duas
sacadas sobre cachorros ou mísulas de cantaria, e superiormente a
elas uns restos de qualquer antigo palácio, com formosas janelas
geminadas e ornamentadas, de belo mármore e gracioso desenho.
Eis-nos chegados pois ao coração da Alfama, a um
sítio cujo nome e aspecto nos evoca um mundo de antigas tradições
históricas. Era ali um dos bairros privativos, onde na idade média,
se encurralava a colónia dos astuciosos, inteligentes e activíssimos
judeus, sempre perseguidos pelos absurdos fanatismos católicos.
Reclusos primeiro na sua Judiaria, no sítio da
Pedreira (hoje do Carmo), num arruamento suburbano, extramuros da
cidade, vieram depois para a Ribeira, onde tinham sua esnoga
grande, e dali uma parte da população judaica entrou para dentro
da Alfama, diz o Sr. Visconde de Castilho, a quem vamos sempre
seguindo. Assim se formou a judiaria de Alfama, nas vielas
que vinham entestar com a praia, como esta, que vem do largo de S.
Rafael, descendo pela encosta, até ao Terreiro do Trigo, antigo
Campo da Lã, onde desemboca pelo Arco do Rosário.
Dentro de um recinto, fechados com cadeias, viviam os
judeus, como os mouros nas suas mourarias, fora das leis e dos
costumes, cobertos de opróbrio nos trajes e distintivos que lhes
impunham para bem serem conhecidos. E apesar de tudo eram eles os
astrólogos, os médicos, os banqueiros, os mais ousados comerciantes,
com influência decidida pela sua inteligência e astúcia até na corte
dos soberanos. Espoliavam-nos com as sisas judengas, e eles
enriqueciam o país com a sua incansável e bem dirigida actividade.
Estudos proficientes e numerosos temos de António
Ribeiro dos Santos, de Alexandre Herculano, dos Srs. Mendes dos
Remédios e dr. Sousa Viterbo; todos eles esclareceram os estudiosos
acerca da colónia laboriosa e perseguida
/ 185 /
que enxameava, apartada da população cristã por um estigma
infamante, filho do fanatismo estulto na judiaria, de que nos resta
a memória triste, numa das mais pitorescas e interessantes vielas da
velha Alfama! Têm ainda um sabor de vida oriental aquelas casas, e
gente que por ali mora, pobre miserável, na sua semi-nudez, de pés
descalços, e o rapazio turbulento, gritador, vivendo na rua pelos
degraus das portas. Idêntico é o aspecto das ruas e largos
convizinhos – a rua de S. Miguel com uma curiosíssima casa de
edificação antiquíssima e o beco da Cardosa, com seu casario velho,
alcantilada sobre as escadas e degraus, a igreja de S. Miguel de
Alfama o curioso beco das Canas e a rua da Rigueira, convergindo
todo este dédalo de becos estreitíssimos, de alfurjas, e travessas
para o não menos pitoresco e histórico sítio do Espírito Santo de
Alfama, hoje rua dos Remédios, e igreja e largo de Santo Estêvão.
Na nossa estampa de página, representa-se a velha
casa, onde o Sr. Júlio de Castilho, com a sua alma poética,
envolvida nas dobras expressas da erudição de arqueólogo fantasiou
um dos mais belos quadros do seu cancioneiro das Manuelinas,
intitulado – Breitiz a linheira. Foi naquela casinha de
outras eras que o inspirado poeta imaginou a sua formosa linheira, a
órfã lacrimosa, a honesta e prendada filha de Ruy Chapuz. Era ali
que:
|
Atrás da adufa escondida,
Breitiz, junto ao parapeito
cose, e vai cantando a eito
alguma trova sombria,
lá do tempo dos avós;
eu, quando passo na rua,
escuto aquela harmonia,
e abençoo aquela voz.
É que não há neste mundo
voz mais doce e feiticeira,
que a de Breitiz, a linheira(1).
|
/ 186 /
Era por aí principalmente o povoado de pescadores, como o define
Bluteau – «aglomerado de famílias pobres, que só viviam da pesca;
velhacouto escuro e tortuoso, que os loquazes Maneis d'Alfama (como
em estilo plebeu se chamava aos trabalhadores do mar) tornavam muita
vez perigosíssimo pelas suas frequentes rixas». Assim no-lo
descreve o Sr. Visconde de Castilho na sua Ribeira de Lisboa. E
prossegue:
«Na orla, à beira-Tejo, agasalhavam-se e
compunham-se as barcas pescadoras, as muletas da sardinha, as faluas
cacilheiras, os saveiros de água-arriba, e até observa frei Nicolau
de Oliveira – navios de alto bordo, com que se navega para as
conquistas, e são muitos – acrescenta ele.
«E diz-nos um antigo poeta descrevendo o sítio:
A praia logo de Alfama
se amostra mais descoberta,
e o lugar donde ancoram
suas lindas caravelas.
As muitas que aqui se ajuntam
em qualquer dia de festa,
com as âncoras no mar,
e as proas postas em terra,
fazem vista tão aprazível,
e tão galharda presença,
que julgareis que Neptuno
coroado vos festeja.
Depois de expulsos os judeus ficaram os pescadores
com a sua linda ermida do Espírito Santo, de belo portal manuelino,
junto da qual ainda alguns restos se divisam em vários prédios de
portas e janelas da Renascença. Tais são as duas que existem ainda
na rua dos Remédios, n.º 29, e na calçadinha do Santo Estêvão n.º 2.
Era naquele sítio do Chafariz de Dentro, como hoje se
chama, e dantes do Chafariz dos Cavalos, um dos sítios mais
movimentados e concorridos da Alfama, que se estendia a praia e um
chão, verdadeiro monturo, dizem documentos coevos, onde os
pescadores varavam seus batéis, barcos e caravelas, no inverno ou
por ocasião de tempestades no rio; era um estendal de redes e de
velas, atulhado de mastros, de vergas, de madeiras.
Os pescadores do alto de Alfama constituíam
corporação poderosa; tinham sua confraria com singulares e curiosos
privilégios. Um destes era o do uso das tumbas para os enterramentos
dos irmãos, privilégio que lhe foi Contestado pela Confraria da
Misericórdia em 1602, não conseguindo esta após demorados pleitos,
desapossá-la daquele direito tradicional, e obtendo apenas
restringir-lhe a aplicação aos enterros dos mareantes confrades do
Espírito Santo.
Saíam amiúdo os pescadores de Alfama em procissões
devotas pela cidade, quer por ocasião de grandes festas da capital,
quer pela celebração anual do Corpo de Deus, a qual rivalizava no
dizer de um escritor de 1584 com a grande procissão da Cidade.
Junto ao Chafariz de Dentro, ao entrar a rua de S.
Pedro, chama a atenção uma curiosa casa antiga, ornada de duas
colunas de pedra, que sustentam o pavimento do 1.º andar, em sacada
sobre a rua, como a nossa última estampa nos está mostrando. O
vandalismo usual e o desleixo camarário permitiram que estas colunas
fossem recentemente pintadas a óleo, com escândalo de artistas e
arqueólogos, mas com a anuência das repartições técnicas da câmara.
Daqui, subindo de novo a Santo Estêvão, em cujo
largo, que circunda a igreja, se ergue o cruzeiro, um dos raros que
o camartelo demolidor deixou ilesos na cidade, e que o Sr.. Dr.
Sousa Viterbo descreveu no seu interessante estudo – Cruzeiros de
Portugal.
Fecharemos o passeio, não sem apontar ainda, o grande
arco, que no largo de Santo Estêvão dá acesso ao beco do Chanceler,
o parapeito do adro da igreja de onde se descortina para o Tejo um
soberbo e inesperado panorama, o mosteiro do Salvador, com seu
passadiço sobre a rua do mesmo nome, a rua do Castelo Picão, a rua
das Escolas Gerais, muito deturpada já com demolições, e até
invadida pelo carro eléctrico, e por fim o Largo de S. Tomé, de onde
se sobe ao Menino Deus, largosinho onde campeia uma casa
antiga, que é um dos mais belos espécimes da construção portuguesa
do século XVII, a que representa a nossa estampa, como outra que
existe também ilesa de vandálicos enxertos, na rua dos Cegos, que
vem do Pátio de D. Fradique para a rua de S. Tomé.
Voltem depois o artista e o forasteiro, quando
satisfeita a sua curiosidade pela observação directa de todos estes
sítios pitorescos, destas ruas sombrias, estreitas, tortuosas,
destes becos, alguns dos quais,
/ 187 /
como o beco da Bicha apenas medem meio metro de largo, destas
velharias arqueológicas, restos da cidade antiga, voltem depois,
dizíamos, em um domingo à tarde, quando o formigueiro humano que
reside naquela aglomeração de casas infectas e pequeníssimas se
expande pelas ruas e terreiros, com as famílias, o mulherio
endomingado, a criançada gritadora e turbulenta, em descantes e
guitarradas pelas tabernas e pelos armazéns, como em dia festivo de
arraial de aldeia, e sentirão a ideia remota da cidade de outrora,
em que havia os peditórios numerosos pelas ruas e pelas portas, os
mealheiros e as arcas pelas ruas, os nichos com santos alumiados
nocturnamente por lâmpada bruxuleante, sustentada pelo azeite de
devotas almas, as tabernas infestadas de ribeirinhos e vadios, os
frigideiros do Mal-Cozinhado, frigindo peixe pelas ruas, à porta
das lojas, enchendo tudo da fumaceira acre e sufocante do azeite
frito, como ainda não há vinte anos se via em algumas ruas dos
bairros de Setúbal, as rixas perigosas dos brigões, em que ainda
hoje não raro relampeja a lâmina das navalhas afiadas; terá assim
uma ideia esbatida da Lisboa tradicional, cheia de cenografias
maravilhosas.
O estrangeiro extasia-se sempre ante este espectáculo
novo e característico.
Há dias o inglês mr. Adolf Smit, um médico notável,
correspondente do “Lancet” de Londres, escrevendo da sua estada em
Lisboa, dizia da Alfama:
«É um verdadeiro labirinto de ruas estreitas e
tortuosas, em grande parte em rampas e escadarias. O interior das
casas ordinariamente é muito sujo, mas em geral no arranjo da cama
nota-se maior cuidado que nos antros das grandes cidades inglesas. O
amor aos travesseiros bordados ou por outro modo ornamentados e à
roupa da cama limpa e
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atraente é uma estimável característica das classes mais pobres de
Portugal. A municipalidade, por seu lado, diligencia limpar estas
ruas estreitas e insalubres, mas tudo é insuficiente para contrariar
as devastações da pobreza e da ignorância, bem como da acumulação e
da falta de ar e de luz. A rua mais estreita que vi foi o beco da
Bicha, que dá para a rua S. Miguel. Com certeza que não tem mais de
dois pés de largura e duas pessoas que vão em sentido contrário não
poderão passar. É este bairro que oferece maior número de casos de
tuberculose.»
Esta última nota vem cair como um duche de gelo no
nosso entusiasmo de artistas. Este formoso bairro medieval,
encravado na moderna, vasta e alegre cidade do Tejo, segundo os
aturados estudos demográficos do nosso distinto médico Sr. Dr.
António de Azevedo, que é também um apaixonado artista amador das
belezas da arqueologia, contém as freguesias que maior número de
vítimas registam na percentagem da sua estatística obituária.
Deste facto veio a ideia, tida como necessidade
inadiável, de melhorar a Alfama, por meio de demolições e
alargamentos. A propósito deste projecto aventado desde 1852 diz o
Visconde de Castilho, na citada Ribeira:
«Não admito (salvo o devido respeito) que melhorar a
Alfama seja cortá-la de avenidas e alastrá-la de largos. Alfama é um
livro interessantíssimo, que a picareta moderna profanaria
ignobilmente. A maneira de melhorar Alfama seria conserva-la quanto
possível na sua arquitectura e feição arqueológica, buscar fixar-lhe
o plano medievo, modificar no antigo risco as igrejas e as casas, a
pouco e pouco,
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e manter aquele fragmento desde a Adiça às Portas da Cruz, e desde
as Escolas Gerais até ao Almargem, em toda a sua aparência velha de
cidade primitiva.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
«Vejam o que faz Bruxelas, que restaura com carinho
de artista as suas velharias municipais. Vejam o que faz Bruges,
onde não há licença para adulterar o antigo risco dos edifícios, e
onde a cidade é portanto o mais instrutivo e formoso dos museus.
Façamos nós o mesmo. Seja a Alfama o nosso museu.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
«Quem possui um precioso manuscrito truncado, roto,
do século XIV, com iluminuras em volta das margens, e letras
iniciais ainda doiradas, não o manda intercalar de páginas em tipo
Didot, impressas em velino alemão, nem o entremeia de
caricaturas de Gavarni, nem o manda encadernar em chagrin com
doirados em estilo império.
«Alfama é o nosso manuscrito; não o profanemos!»
(Clichés de A. Barcia)
VICTOR RIBEIRO
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(1)
– Manuelinas, Cancioneiro de Júlio de Castilho, Lisboa, 1899,
pág. 31.
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