Este artigo é todo fundado em documentos inéditos e nos processos de
Damião de Góis e Fernão de Oliveira, publicado o primeiro pelo Sr.
Guilherme Henriques e o segundo pelo Sr. Lopes de Mendonça. Os
documentos inéditos fazem parte dos cartórios do Santo Ofício, secção
que na Torre do Tombo pertence ao autor do artigo, que deles faz
desenvolvido uso num estudo sobre A INQUISIÇÃO NO SÉCULO XVI, que
se está publicando no ARCHIVO HISTORICO PORTUGUEZ.
PACATO homem bom de alguma vila sertaneja que, por
volta de 1540, embrulhado no seu gabão, de barrete e pelote novos,
descesse o Valverde – como quem dissera a moderna Avenida da Liberdade –
se descavalgasse no largo do Rossio e atentasse na multidão, que
continuamente por ali formigava, havia de notar nas fisionomias um ar
pávido, desconfiado e sinistro, como sinistro era um palácio que lá se
erguia no fundo, a que chamavam o Paço dos Estados. E se, perdido
nas suas serras, lhe não tivessem chegado, havia muito, novas de Lisboa,
dentro em breve saberia, que afinal sempre tinha vindo a Santa
Inquisição.
Tinha custado, mas o escândalo dos cristãos velhos e
limpos de sangue não podia ser maior.
Tão grande era que até, no Desembargo d’EI-Rei, Tribunal
Supremo de então, um tal Licenciado Bugalho se fingia doente, para não
ir nos sábados à Relação e ficar lendo na Bíblia, ao mesmo tempo que sua
filha se vestia e endomingava com cadeia de ouro e cota de chamalote;
não faltavam sollorgiões, que guardassem os sábados, donas de
casa que, na noite de sexta para o sábado, fizessem acender candeias com
duas matulas e esperassem pelo nascer da estrela, para terminar o
jejum… Até – era onde podia chegar! – alguns desses cristãos novos, por
noite alta, se juntavam para fazerem as suas rezas em comum numa quinta
da Outra Banda, pertencente ao ferreiro António Fernandes, onde tinham a
sua synoga!
Mas a Inquisição vigilava; não se fossem assustar as
crenças do nosso católico homem bom! e o prevaricador ferreiro já
estava bem encerrado no cárcere inquisitorial.
Era bem possível que o provinciano, de que vimos falando,
penetrasse nalguma das então numerosas vendas do Rosyo e, se
perguntasse pelo novo tribunal, ouviria lamentar a morte do Montenegro,
queimado no primeiro auto da fé, acusado de ter posto, numa noite de
tempestade, um pasquim com heresias na porta da catedral. Se um cristão
velho estivesse presente, dir-lhe-ia logo que o Montenegro fora para o
inferno e à hora da morte não pudera sequer fitar a cruz de Cristo, ao
que uma cristã nova acrescentaria, semi-chorosa, que um infame preto lhe
vazara um dos olhos e o Montenegro estava inocente e fora mártir.
Nada de sentimentalidades, porém, rude provinciano; se o
teu coração se compadece, recalca bem para o íntimo esse sentimento, se
/ 124 / tens algum amor à terra natal, aos passarinhos que chilreiam na
tua quinta e queres aproveitar a tua estada em Lisboa para ires assistir
nas hortas de Santos o Novo, de Alcântara, ou de Santo Antão, aos jogos
da bola, ou da távola.
Em tenda que suponhas de cristã nova não peças carne de
porco, porque a dona te responderá: só um porco pode comer outro
e, se quiseres ver à janela essas tentadoras judias todas enfeitadas,
folgando, mas com a tristeza a bailar-lhes nos olhos cor de amora,
procura-as aos sábados, que as hás-de ver com as beatilhas
lavadas, manilhas de ouro grossas nos braços, e meadas de aljôfar
cingindo os pescoços de alabastro.
Podes ainda assistir ao espectáculo imprevisto de um auto
da fé, mas aí toda a cautela é pouca, não vá o teu coração, sincero como
o vento, que sopra em liberdade nas tuas serranias, ser indiscreto e
fazer com que o rapazio te rodeie e grite atrozmente:
Está triste por lhe levarem a queimar os irmãos na
fogueira! Que bem lhe havia de ficar uma carocha!...
*
Um dos primeiros cuidados da Inquisição, ao
estabelecer-se no nosso país, foi, sem dúvida, a inspecção às livrarias
de que foram encarregados pelo Inquisidor Geral, D. Henrique, o prior de
S. Domingos de Lisboa; Fr. Aleixo, superior desse mesmo mosteiro e Fr.
Cristovão de Valboena. Sabiam bem que, para propagar a herética
pravidade e apostasia, nada como as obras impressas; e por isso os
dois censores tinham bem apertadas instruções para chamar à Inquisição
todos os livros suspeitos. Quanto aos novamente impressos, a 29 de
Novembro de 1540, mandava o inquisidor João de Melo notificar os
impressores Luís Rodrigues e Germano Galhardo, sob pena de execução e de
dez cruzados para as despesas do Santo Ofício, que nada se imprimisse sem
o visto dos revedores.
Não contentes com isto, no Regimento do Conselho Geral de
1 de Março de 1570, ainda inédito, expressamente lhe cometiam a
visitação das livrarias do reino, não só públicas, como até
particulares!
Tal foi pois a asfixiante atmosfera que a Inquisição
criou aos produtos da mentalidade portuguesa: por um lado o sequestro do
que no estrangeiro se produzia e por outro a repressão de tudo o que
pudesse ofender os fanáticos ouvidos dos conspícuos qualificadores, a
repressão de qualquer vão mais arrojado do espírito lusitano.
E, para se saber como isto se cumpria, basta que digamos
que tão fanatizada estava a sociedade lisboeta de meados do século XVI,
tão instigada por pregações e descargos de consciência, que os filhos
denunciavam
/ 125 /
os pais, as mulheres os maridos, as amigas umas às outras e as vizinhas
faziam orifícios no sobrado para espreitarem o que se passava na casa
alheia!
Não admira portanto que Damião de Góis, ausente da
pátria havia bastantes anos, tendo exercido missões de confiança junto
do rei de Dinamarca, tendo convivido em Lubeck com João Pomerano, em
Utibregue com Melanchton e com o grande reformador Martinho Lutero, cuja
igreja visitou, tendo convivido em Friburgo com Erasmo e tendo
frequentado as Universidades de Lovaina e Pádua, visse o seu livro sobre
os costumes e religião do rei da Abissínia, impresso em Antuérpia e
escrito em latim, impedido de circular em Portugal. Em carta de 28 de
Julho de 1541 explica-lhe o inquisidor geral, D. Henrique, o motivo de
tal censura. Era que os graves críticos inquisitoriais não tinham visto
com bons olhos que Damião de Góis tivesse posto argumentos mais fortes
em defesa da sua religião na pagã boca do embaixador do Preste João, que
na do bispo Adaim... Damião de Góis não se contentou porém com tal
resposta e por isso novamente o cardeal D. Henrique lhe replicou, a 13
de Dezembro de 1541, que não tinha sido proibida a venda da primeira
parte da sua obra, mas sim da segunda, em que se trata das coisas de fé
e superstições que têm os etíopes, acrescentando o inquisidor geral que
huma cousa he relatar simpresmente os ritos de huma naçam e outra
querellos corroborar com razões falsas.
Era mais uma alma perdida na convivência com hereges,
pensaria consigo o fanático Cardeal Inquisidor. E, enquanto ela pairasse
distante, o perigo não era de maior; mas quando descesse cá à boa terra
lusitana, cheia de céu azul e de sol brilhante, que era preciso defender
a todo o transe das heresias, não seria preciso vigiá-la com o mesmo
cuidado com que os frutos sorvados se devem apartar dos sãos?
Assim era de supor.
Damião de Góis voltou com efeito a Portugal e é certo
que, já a 5 de Setembro de 1545, o seu nome era pronunciado como
possuidor de ideias avançadas, perante o Tribunal Inquisitorial de
Évora, pelo jesuíta Simão Rodrigues, o antigo companheiro de Inácio de
Loyola em Paris, a quem os autos do processo de Damião de Góis chamam
Padre Mestre Simão, da congregação e ordem de Jesus.
Não se pense porém que o astuto jesuíta praticasse este
acto por mal: longe disso. Não tinha ódio nem inimizade ao denunciado –
assim expressamente o declarou – e, se subia os degraus da casa do
despacho da Inquisição de Évora, era tão somente por descargo de
consciência e serviço de Nosso Senhor!
/
126 / Por esse descargo, pois foi contando
que, havia já anos, se tinham conhecido em Pádua, e nas práticas amigas
de ausentes da pátria comum; Damião de Góis se mostrava inclinado às
heresias de Lutero, com quem falara, era grande amigo de um herege de
Basileia, Simão Crineus, e fora discípulo de Erasmo, com quem vivera algum tempo.
Não negava Simão Rodrigues o talento do denunciado, mas, exactamente por
isso, o achava muito perigoso, por ser homem avisado e saber, além do
latim, do francês e do italiano, alguma teologia e até lhe parecia que
também o flamengo e o alemão.
Contente consigo mesmo, com a consciência descarregada,
retirou-se o bom do jesuíta, até que, ou em razão da carga lhe não
parecer suficiente, ou em razão do descargo não ser completo, novamente
se apresentou no Tribunal Inquisitorial, a 7 do mesmo mês, para dizer
que tinha Damião de Góis por luterano e, a 24 de Setembro de 1550, em
Lisboa, para declarar que, em Pádua, na própria casa do denunciado,
tinham tido uma disputa teológica sobre a certeza da graça, em que
mutuamente se crivaram de textos de S. Paulo.
Como se vê, cinco anos levou Simão Rodrigues a perscrutar
a sua memória, cinco anos em que viu que ainda não tinha obtido o
resultado que desejava, e ainda mais 21 se passaram no mesmo estado, sem
o processo ter andamento. Entretanto Damião de Góis era nomeado
guarda-mor da Torre do Tombo e, em 1558, era o próprio cardeal D.
Henrique quem o incumbia de escrever a crónica d'el-rei D. Manuel, seu
pai.
Quantas vezes, neste intervalo, ou subindo as escadarias
dos paços da Alcáçova, onde estava então a Torre do Tombo, ou penetrando
nos umbrais do colégio jesuítico de S. Roque, não se encontrariam os
dois: Damião de Góis, cronista-mor do reino, guarda-mor da Torre do
Tombo, o denunciado, e Simão Rodrigues, reitor da casa professa de S.
Roque, preceptor da doutrina do príncipe, o delator! E não nos diz a
História se nessas ocasiões Damião de Góis descortinaria, nos
cumprimentos do seu velho companheiro de Pádua, alguma coisa do pérfido
ósculo de Judas a Jesus...
O certo é que, até 1571, ou mercê da influencia do
inquisidor Fr. Jerónimo de Azambuja, parente afim do cronista, ou por
qualquer outro motivo até hoje desconhecido, os juízes do Santo Ofício
dormiram sobre as denúncias apresentadas. Foi o seu próprio genro, Luís
de Castro, tesoureiro do Cardeal Infante e fidalgo da sua casa,
provavelmente por questões de família, quem fez activar o andamento de
tal processo, vindo, a 9 de Abril
/ 127 / desse ano, depor contra o
sogro, a conselho do próprio confessor, acusado de ter dito que houvera
muitos papas tiranos, que a maioria dos eclesiásticos era hipócrita e
que os padres da companhia de Jesus não guardavam a pobreza como lhes
ensinara o seu virtuoso instituidor, Inácio de Loiola.
A esse tempo já o preso Damião de Góis gemia nos
cárceres secretos, pois tinham-lhe lançado a mão no dia 4 de Abril.
Sucessivamente o ouviram depois em dezoito audiências, umas do estilo e
da praxe, outras requeridas por ele.
A principio queria Damião de Góis saber o motivo da sua
prisão, mas esse não lhe foi revelado e somente o admoestaram a que
confessasse tudo o que praticara contra a nossa fé católica, para
poder ser merecedor da misericórdia da Santa Madre Igreja, que ela usa
com os verdadeiros confitentes e penitentes.
Damião de Góis passou então em revista toda a sua vida,
desde que saíra de Portugal, comissionado por el-rei D. João III, contou
as suas viagens pela Europa, as relações suspeitas que nelas tinha
adquirido, os estudos que tinha feito e, por último, de tudo (pediu
perdão e misericórdia. Só com isso, porém, não se contentaram os
senhores inquisidores, e novamente o admoestaram, pedindo-lhe que
examinasse bem a sua consciência, e que dissesse tudo o que crera e
praticara da seita luterana.
Por tal motivo, no dia seguinte, Damião de Góis confessou
ter dito que os hábitos dos luteranos, acerca do criar dos pobres,
eram melhores que os nossos e, dias depois, falava na sua obra sobre os
costumes dos etíopes; supondo que lhe passariam alguma busca à livraria,
foi confessando também que nela tinha alguns livros proibidos e algumas
cartas de Erasmo.
Como ele estava longe das conversas de Pádua com o seu
delator, Simão Rodrigues! E que tratos não daria à imaginação naquele
escuro cárcere em que o encerraram, sem saber bem o motivo por que o
faziam!
A nova audiência veio pois o cronista e nela confessou
ter ouvido um sermão a Martinho Lutero. Fora num Domingo de Ramos, em
Witemberg; como o Reformador pregava em alemão, pouco entendera, mas num
dos dias seguintes jantara com ele e com Melanchtone, depois de jantar,
dirigiram-se os três a casa de Lutero, onde, servidos pela sua mulher,
em convívio de amigos comeram maçãs e avelãs...
Também estivera em casa de Melanchton; mas esse era pobre
e quando lá entraram encontraram-lhe a mulher, vestida com uma saia
velha de bocaxim, fiando...
Neste meio tempo veio depor contra ele o poeta Pedro de
Andrade Caminha.
Quando Damião de Góis estava escrevendo a Cronica
d'el-rei D. Manuel, contou ele, pedira a Caminha para, junto da
infanta D. Isabel, lhe obter apontamentos acerca do infante D. Duarte
seu marido; a infanta respondeu a Caminha que já tinha dado a Góis
apontamentos acerca da forma como ele morrera, o que Caminha lhe
comunicou, retrucando então o cronista que não
havia homem (que na morte não dissesse quatro parvoíces.
Andrade Caminha não ligou nessa ocasião importância a
esta resposta, mas, sabendo Damião de Góis preso, e sabendo a forma
cristianíssima como falecera o infante D. Duarte, viu nela sombra de
heresia e, por descargo de consciência, o veio dizer.
É a bem triste história de se saudar o sol que nasce e de
se apedrejar o sol que se oculta!
Com tal e tão depravado testemunho e com estas audiências
se foi passando todo o mês de Abril, até que, no dia 2 de Maio,
apresentou o Promotor o seu libelo acusatório,
/ 128 / lido
diante do réu, no qual apontando a Damião de Góis os erros contra a
religião católica que eIe cometera, o increpava por louvar a maldita
seita de Lutero, a que tinha querido converter um Padre da Companhia
– está-se a ver que era Simão Rodrigues – e, depois de falar nos livros
heréticos encontrados na sua livraria, terminava pedindo a condenação do
réu como herege, luterano, pertinaz e negativo.
Nessa ocasião falou Damião de Góis nas suas conversas com
João Decamarty e o Padre Monserrate, mas, nem por sombras, se lembrou
das conversas de Pádua, supostas ou verdadeiras, com o seu delator Simão
Rodrigues!
Voltou o cronista para o seu cárcere e facilmente se
imagina em que abatimento de espírito. Que segredos não possuiriam já os
seus severos juízes?! Que testemunhos não haveria contra ele?! Duas
noites adormeceu o Guarda-mor da Torre do Tombo – se é que as não velou
por completo – a cogitar na sua vida... para vir, no dia 4 de Maio,
confessar
/ 129 / que,
em Flandres, tinha tido disputas com diferentes pessoas sobre a validade
das indulgências, que o Papa concedia, sendo então de parecer que elas
eram bem pouco proveitosas, assim como a confissão auricular; também
confessou que, falando de padres, tinha dito serem eles tiranos e usarem
mal dos seus ofícios.
A 10 de Maio solicitou Damião de Góis audiência para
dizer que já não tinha coisa alguma para confessar e que, por isso, o
despachassem e, a 17, tornou-a a solicitar com o mesmo fim, alegando que
estava velho, muito fraco e mal disposto.
Decididamente Damião de Góis ia-se impacientando com o
prolongamento da sua estada num cárcere, que os contemporâneos nos não
descreveram, mas que deveria ser bem desabrido e triste. Nele haviam de
lhe chegar aos ouvidos os gritos lancinantes das vítimas torturadas!
Entretanto novas testemunhas se iam
/
130 / interrogando; ao mísero preso ia-se
arranjando carga cada vez maior!
A 21 de Maio subia o inquisidor Simão de Sá Pereira às
pousadas de D. Maria de Távora que, doente de cama, não podia ir até ao
Paço dos Estáos e, a 25, fazia o mesmo ao duque de Aveiro, pelo
mesmo motivo impossibilitado de comparecer. A primeira dizia ter ouvido
que Damião de Góis era muito dado a comer e beber, assim como aos
prazeres da carne e contava que duma vez em casa dele, a uma
sexta-feira, como Damião de Góis comesse carne de porco e uma sobrinha
Iho censurasse, ele replicara:
Calai-vos, senhora sobrinha, o que entra pela boca não
mata a alma.
O depoimento do duque de Aveiro era de menor importância:
conversando com ele, a propósito duma capela que o duque queria mandar
fazer, lhe dissera Damião de Góis que seria muito mais seguro fundá-la
numa igreja paroquial de que no mosteiro de S. Domingos, em Coimbra.
Não ligou o duque importância ao caso, mas agora, e logo
que o soube preso, contou-o a seu filho, que por carta tinha avisado o
Santo Ofício!
Dir-se-ia haver um acordo secreto contra o pobre
cronista!
A 9 de Junho, foi Damião de Góis mandado vir perante os
Inquisidores e nada mais confessou, pedindo somente que o despachassem
brevemente, porque está morrendo neste cárcere.
Entretanto a sobrinha, D. Briolanja de Carvalho, ia
confessando ter-lhe, ouvido a frase que D. Maria de Távora dissera, e a
30 de Julho, Damião de Góis, novamente chamado, negava terminantemente
tê-la proferido, acrescentando:
Quem quer o diz, o diz falsamente e no rosto lhe dirá se
se puder dizer.
Com este novo testemunho da própria sobrinha, recebida e
obsequiada em casa do cronista, entendeu o Promotor que devia carregar
na acusação; quando lha leram, Damião de Góis outra vez negou o facto,
afirmando que a testemunha era falsa. Passar-lhe-ia por ventura pela
cabeça a conversa com a sobrinha Briolanja, criada em sua casa como se
fora filha, e em adiantado estado de gravidez, desejosa de comer carne
de porco? É natural que não; sobre esse facto tinham já passado
bastantes anos e tanto assim que, em duas audiências mais, numa pedia
Damião de Góis para lhe avivarem a memória, porque de tal se não
recordava e noutra, desejoso de ver o fim ao processo, dizia não estar
recordado e porém, se o disse, pede disso perdão e misericórdia.
Esta última audiência foi a 3 de Agosto e no dia 1 tinha
em Évora deposto sua filha Catarina de Góis, que disse não se lembrar do
pai ter proferido a frase de que o acusavam, e até para ela imaginou uma
explicação, no desejo bem simpático de o salvar; a oito de Agosto,
apresentava o advogado Aires Fernandes a sua defesa por escrito, com a
qual se não contentou o cronista, sendo ele próprio quem se dirigiu aos
Inquisidores pedindo-lhes pelas cinco chagas de Nosso Salvador e
Senhor Jesus Cristo que o despachem.
Não podia certamente ser mais atroz o desespero que tanto
fazia humilhar aquele que, gozando de reputação europeia, estava ali à
mercê de pigmeus de que a História só fala para os acusar das carnes
inocentes que fizeram queimar!
/
131 / Para nós é particularmente
interessante este memorial todo de punho do grande historiador, em que
claramente ressalta o seu deprimido estado de espírito e o seu precário
estado de saúde. Com mais de setenta anos, preso há nove meses, já sem
forças para se suster nas pernas, descrevia-se o cronista, tão cheio de usagre e sarna por
todo o corpo, que pouco faltava para o poderem considerar como leproso!
Fora na audiência de 4 de Dezembro que lhe fizeram a
publicação dos testemunhos contra ele e por ela viu Damião de Góis como
tinha sido delatado por Simão Rodrigues. A respeito deste testemunho
lembra que se lhe não deve dar fé, acoimando-o de suspeito; referindo-se
a outro testemunho em que era acusado de ter dito mal dos prelados,
clérigos e religiosos, Damião de Góis confessa-o e explica que só se
referia àqueles que não cumpriam a sua regra e, quanto à frase proferida
num banquete, a propósito de carne de porco, repete que dela se não
lembrava, fazendo finalmente três pedidos: o primeiro que lhe dêem
licença para escrever ao Cardeal D. Henrique, o segundo para que o
deixem falar a seu filho Ambrósio de Góis, para saber da sua família,
negócios e fazenda e principalmente
/ 132 / por causa duma demanda que
lhe moviam: por último pede que lhe emprestem um livro em latim, para
ler, porque estou apodrecendo de ociosidade e com o ler se me passam
muitos pensamentos.
Nada disto porém lhe foi concedido. Era o requinte da
crueldade!
Ainda outro memorial ele apresentou, fazendo valer todas
as suas confissões e crenças, defendendo-se e terminando por pedir que,
atendendo à sua idade, qualidade da sua pessoa e desamparo da sua casa e
filhos, o despachassem com brevidade e o restituíssem à sua honra, da
qual está tão menoscabado, escrevia o cronista, que se vossas
mercês lha não restituem, não ousará d'apparecer nem andar entre gente!
Para atenuante ao seu confessado procedimento herético
solicitou Damião de Góis nova audiência, a 9 de Fevereiro de 1572; então
pediu que ao seu processo fosse junta, como efectivamente foi, uma lista
das benfeitorias praticadas por ele a diversas igrejas e das suas obras
pias e termina dizendo que quem estas obras faz
nas Egreijas e outras com hos proximos, que não diguo, catholico he e
não lutherano, pera ho terem aqui preso passa já de dez mezes, pello que
pesso a vossas mercês que ponhão has dictas obras em uma balança e na
outra os erros de que me accusam mais por fallar que pellos usar, porque
nunqua hos usei e, rebatida huma cousa da outra, me julguem e despachem
com brevidade, pelo amor de Deus, porque m'estou aqui consumindo, assi
da honra, quomo da saude, quomo da fazenda.
Entretanto novos testemunhos iam aparecendo contra o
desventurado prisioneiro. Não bastava os que havia já!
A 12 de Abril D. Pedro Diniz vinha dizer que tinha ouvido
a João de Carvalho, provedor-mor das obras d'el-rei e vizinho de Damião
de Góis no Castelo, que ele falava com admiração de Lutero e Melanchton,
não o via ir à missa e costumava muito conviver com gente estrangeira.
Passado mais de um mês foi chamado João de Carvalho, que confirmou o
depoimento anterior, e adiantou-se em pormenores, dos quais
particularmente nos merece interesse, a acusação que ele tinha ouvido
aos próprios criados do cronista de que ele não
era muito misseiro...
Por este motivo nova audiência teve o encarcerado e, a
propósito das visitas de estrangeiros, disse que a sua casa era
estalagem deles, a quem costumava banquetear; depois de jantar se punham
a cantar missas e motetes, compostos em canto de órgão, porque ele
era muito músico e folgava de cantar e ser muito dado à música para
passar nisto o tempo.
Nada porém Damião de Góis confessou quanto à sua
admiração por Lutero e Melanchton e novas acusações lhe foram
apresentadas, cuja defesa o seu advogado teve de fazer. Não obstante,
Damião de Góis juntou novo memorial, em que recordava diferentes ofertas
místicas feitas por ele, tais como um livro de Horas de Nossa Senhora,
iluminado por Simão de Bruges, que o iluminador António de Holanda tinha
avaliado em 750 cruzados, oferecido à Rainha, e diferentes imagens
oferecidas ao rei, a Pedro d'Alcáçova Carneiro, etc. Ainda antes da
sentença, mais duas petições apresentou Damião de Góis, numa das quais,
a 14 de Julho de 1572, se dizia tão mal disposto, que não tinha uma só
doença, mas sim três: vertiguo, rins e sarna,
quomo especie de lepra, que qualquer pessoa que me vir, se fôr proximo,
se movera ha piedade, porque em meu corpo não ha cousa sam!1
Pobre Damião de Góis! Nem uma parte do
/
133 / corpo conservava sã! Quem havia de
reconhecer nele o antigo representante d'el-rei de Portugal nas cortes
estrangeiras?
Isto escrevia o cronista, 16 meses depois de
encarcerado... E todavia, ainda quatro meses teve de esperar, decerto
com impaciência tal que tocaria as raias do desespero, até que, em
Outubro de 1572, proferiram finalmente a sua sentença, em que o mandam
abjurar os heréticos erros em forma, somente diante dos Inquisidores e o
condenam a cárcere penitencial perpétuo, na parte para onde o Cardeal
Infante o mandasse.
Com efeito, entre o dia 6 e o dia 16 de Dezembro, saiu o
réu Damião de Góis do cárcere inquisitorial para o mosteiro da Batalha e
não nos diz a História qual fosse a sua sensação ao fitar, após dezanove
anos de clausura, a luz brilhante desse sol de Lisboa que, por mal da
Humanidade, não raiava só para os espíritos como o do douto pensador
quinhentista, mas iluminava também Simão Rodrigues, Luís de Castro,
Briolanja de Carvalho e João de Carvalho, todos quantos principalmente
contribuíram para a condenação do cronista. Sim, a História não nos diz,
se nessa ocasião Damião de Góis não teria principalmente vontade de não
mais o fitar e de morrer…
Mas o que ela nos diz, reabilitando-o, é que a designação
de réus compete exclusivamente aos que tão infamemente o martirizaram!
*
Retrocedemos agora um pouco para nos encontrarmos com
outro homem de letras do século XVI, «Fernão de Oliveira», o
primeiro gramático português e afamado nautógrafo desse tempo, num sítio
já de nós conhecido, onde ele geme e pena. Seja a 25 de Novembro de 1547
e ir-lhe-emos ouvir o libelo do Promotor da Inquisição de Lisboa, em que
o acusa de, na Rua Nova, publicamente, ter elogiado o proceder desses
heréticos ingleses, insubmissos ao Papa, que queimavam os frades,
afirmando vários erros luteranos, e – o que é mais – ameaçando com
bofetadas e cutiladas aqueles que o contradissessem. Fernão de Oliveira
fora frade da ordem de S. Domingos; vestido de capa e pelote curto,
armado de espada, com chapéu e barba comprida, fizera de marinheiro e
piloto, por França e Inglaterra, sem se confessar nem comungar.
Era mais esta acusação que o Promotor inquisitorial lhe
dirigia.
Mas como chegariam à Inquisição notícias tão
comprometedoras para o nosso gramático? Fora que, a 18 de Novembro deste
mesmo ano, três livreiros, João de Borgonha, Francisco Fernandes e Pedro
Álvares, abandonando as suas tendas da Rua Nova, vieram, já se vê «por
descargo de consciência», contar uma polémica que o primeiro tinha
tido com Fernão de Oliveira, sobre questões religiosas, em que ele se
mostrava bastante afecto aos luteranos.
Maldita hora em que o antigo dominicano viera comprar a
Esfera de Pedro Nunes, porque, se não fosse isto, talvez o não
encontrássemos, oito dias depois, a ouvir ler as tremendas acusações que
contra ele forjara a justiça inquisitorial.
André de Resende, o grande antiquário que fora seu mestre
de gramática no convento de Évora, tinha-o imediatamente reconhecido; e,
escandalizado com a sua atitude, apontara-o a João de Borgonha.
/
134 / Foi a faúlha que incendiou o ódio do
livreiro!
Por isso não se desperdiçou o ensejo da vingança e a
conspiração arteiramente urdida por ele veio a surtir o desejado efeito.
Fernão de Oliveira, ao ouvir ler a acusação e ao saber de
onde ela partira, contou logo a zanga que com ele tinha tido um dos
livreiros, por causa da impressão dum livro seu, dando assim como
suspeita tal testemunha. Dizia-se vassalo do rei de Inglaterra, de quem
tinha trazido uma carta para o nosso rei e, entre outras coisas, de que
a sua consciência o acusava, lembrou-se de ter dito que havia clérigos
que mais serviço fariam a Deus, lavando e cavando, do que pregando e
dizendo missa.
No entretanto dirigia-se por escrito o gramático ao seu
protector conde da Castanheira, confiado em cujo favor ele viera a
Portugal. Essa carta porém não conseguiu iludir a vigilância
inquisitorial e, a 23 de Dezembro de 1547, respondia Fernão de Oliveira
por escrito às acusações que lhe fizera o Promotor da Inquisição,
taxando de perjuras e suspeitas as testemunhas contra ele, dizendo que
tudo o que ele afirmava não eram, de forma alguma, heresias.
Novamente veio o gramático à presença do Inquisidor João
de Melo, mas nada adiantou, apesar dele lhe recomendar que metesse a
mão na Consciência, e só, a 4 de Agosto de 1548, Fernão de Oliveira
reconheceu como heresia o dizer que o rei de Inglaterra não era hereje,
sendo cismático, que ele e os ingleses se podiam salvar apesar de
viverem fora da igreja católica e que não era pecado o queimar os
/
135 / ossos do bem-aventurado S. Tomás,
assim como destruir os mosteiros. Por isso os inquisidores o condenaram
somente a abjuração dos seus erros e a prisão no cárcere por tempo
indeterminado, mas devendo andar de hábito e tonsurado, rezando o ofício
divino.
Passados três anos, Fernão de Oliveira, muito pobre e
doente de cólica, pedia para ir para algum mosteiro, como
efectivamente foi, para o de Belém; um ano depois, em 1551, era posto em
liberdade, não se sabe se sinceramente convertido à fé católica, se
saudoso do tempo em que, vestido de capa e pelote curto, armado de
espada, com chapéu e barba comprida, fizera de marinheiro e piloto por
França e Inglaterra.
E assim se ficam conhecendo as torturas que a justiça do
Paço dos Estáos infligiu, no século XVI, a dois dos mais notáveis
vultos da nossa história literária quinhentista.
ANTÓNIO BAIÃO
Clichés de A. Lima.
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