VISEU           por A. Lopes Pires

Naquele dia ensolarado dos princípios de Fevereiro, o Miguel do Saias parecia outro. Remoçado. Para mais de trinta anos. Acompanhado do neto, fazendo de cicerone na cidade que tanto amava dos tempos que por ali passara cumprindo as suas obrigações militares, na condição de segundo cabo. Sim senhores, segundo cabo. Não que, naqueles desgraçados tempos de escuridão em que poucos aprendiam a ler, ele frequentara a escola da sua aldeia, sem faltas nem desvios. O velho professor Figueira, bom de coração, mas rijo de querer, impunha regras de rigor e ai de quem falhasse...

Ele, desde pequenito, desde aquele dia sete de Outubro de ano longínquo, seguia com verdadeiro encantamento as palavras do Mestre e, valha a verdade, quatro anos depois, lá estava na vila a fazer o exame do segundo grau ou da quarta classe, como então se dizia. O exame ficou famoso, contava anos depois, sempre que podia. É que o júri, de caras carrancudas e vozes ameaçadoras, não achara brecha na muralha do seu saber. Ele foram as orações compridas como a légua da Póvoa e com mais saltos do que a montanha russa, os substantivos epicenos, sobrecomuns e comuns de dois, e até os problemas do raio do tanque que logo havia de ter duas torneiras, abertas ao mesmo tempo, uma para encher e outra para despejar. Um quebra-cabeças que ele resolveu num pronto. No resto, desde o Viriato ao Mapa Cor de Rosa, passando pela Casa dos Vinte e Quatro e pelo Príncipe Perfeito, sem esquecer os comboios que exigiam mudanças e andanças, aos rios que tinham afluentes das duas bandas, nem uma falha... Os outros, mesmo de má vontade, afirmava com um sorriso maroto, não tiveram outro remédio senão aprová-lo com distinção. Por isso, ao chegar à sua aldeia, o Pai o brindara com uma dúzia de foguetes, de nove respostas, que ainda hoje lhe acariciavam os ouvidos. Uma festa. E que festa...

Agora, já meio trôpego, falho de cabelo, mas lúcido nas ideias, ali estava ele, ufano e vaidoso, neto mais novo a seu lado, às vezes preso na sua mão calosa por causa dos perigos do trânsito. Ai, no seu tempo, sempre ia dizendo, podia-se passar por todo o lado sem perigos. Hoje...

Começaram pela colina da Sé. Que abrisse bem os olhos e tomasse atenção, recomendava. Que ali estava o velho coração da cidade. Há que séculos! E com emoção, mas sempre com voz firme, lá foi contando tudo quanto sabia, e não era pouco. Das duas torres, a do relógio, a mais antiga, já vinda do românico, aí pelo século XIII, vira cair a companheira nos grandes temporais de 1635 e que, não satisfeita, arrastara consigo a fachada que dizem ter sido muito bonita, em estilo manuelino, a condizer com a riquíssima abóbada dos nós, no seu interior. No adro, ao centro, o belo cruzeiro da segunda metade do século XVIII. No museu de Grão Vasco ali ao lado, guardam-se, sobretudo, as famosas tábuas do grande pintor viseense. Do outro lado, a fechar o grande quadrado, ergue-se a imponência da igreja da Misericórdia, de finais do século XVIII.

Disto e de muito mais falou ao neto. Desceram até ao Largo António José Pereira, em busca da Casa do Miradouro. Depois, olhou para a direita, para aquele já invulgar arco de passadiço que abre para a Rua Escura. Parou e ficou-se a recordar; mas não foi capaz de esclarecer o companheiro sobre as vezes que por ali passou quando rapaz solteiro e militar do Regimento de Infantaria 14 e, muito menos, dos objectivos que o levavam por ali.

Voltaram atrás, passaram a Praça de D. Duarte, que no seu tempo fora de Camões e, virando à direita, acharam-se no Largo do Pintor Gata, de frente para a Porta do Soar, uma das antigas portas da cidade. Saudaram a Senhora dos Remédios na sua capelinha, atravessaram a velha porta a acharam-se ao lado da residência do bispo da diocese. Sempre descendo, falou da Casa Museu de Almeida Moreira, do palácio onde se situa a sede da Santa Casa da Misericórdia, do Jardim das Mães e pararam no sinal vermelho.

E ali, avô, aquele largo tão grande, com tantas árvores, interessou-se o pequeno.

— Espera pelo sinal verde que já lá vamos.

Ali era o Rossio, o novo centro da cidade desde o século XIX, o local onde diariamente se cruzam centenas, milhares de pessoas. A norte, o centenário edifício da Câmara Municipal, com seu monumental átrio de entrada, sua impressionante escadaria de degraus de uma só pedra, com belíssimos balaústres, seus painéis de azulejo e os retratos de "ilustres beirões" da autoria de Almeida e Silva. Em frente, olharam o pomposo edifício do Banco de Portugal e, logo ali, a deslado, o apreciado painel de azulejos de 1931.

Olhou o neto. Pareceu-lhe cansado. Paramos um pouco? O abanar de cabeça disse tudo. Naquele dia tinham de ficar por ali. Na esplanada já se via muita gente. Sentaram-se. Duas águas frescas ajudaram a ganhar forças.

— Avô, olhe ali tanta gente a olhar para o ar. O que fazem?

Miguel do Saias interrogou alguns dos seus vizinhos e logo ficou em condições de esclarecer que se tratava de uma reunião magna dos associados de um importante Clube Internacional, na cidade de Viriato, D. Duarte e tantos outros. Do seu programa constava também uma visita à velhinha mas sempre remoçada cidade de Viseu.

Terão visto muito, pensava o Miguel do Saias enquanto beberricava a sua água fresca, ao mesmo tempo que abanava significativamente a cabeça.

Terão visto a Cava de Viriato, o Campo da Feira Franca, a Rua do Arco, o Jardim de Santo António, as ruas Direita, Formosa e do Comércio. Terão visto muito mais; mas, por certo, não apreciaram uma das maiores maravilhas da cidade.

— Avô, que cara é essa?

— Nada, filho, pensamentos meus.

— Ficamos então por aqui.

— Sim, mas só depois de passarmos pelo Seminário, em Santa Cristina, para podermos apreciar a monumentalidade arquitectónica das suas escadas suspensas.

 
 
 
 
     

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