Sempre tive uma certa vontade de visitar a Alemanha, talvez devido a ter
passado parte da vida a trabalhar com máquinas alemãs. Eram elas que nos
serviam de modelo para a construção do nosso próprio material,
especialmente as da marca Hansa, cuja qualidade era de elevado grau. O
mesmo não podemos dizer relativamente às nossas cópias, fabricadas na
empresa Francisco Piçarra,
onde inicialmente trabalhei para a indústria naval,
que originavam alguns problemas. Que o digam os Electricistas de bordo,
pelo trabalho que frequentemente lhes davam na manutenção e reparação.
O meu
contacto com maquinaria alemã teve início muito antes do meu trabalho na
empresa nacional de maquinaria naval.
Na E.I.C.A. (Escola Industrial e Comercial de Aveiro), que frequentei
como aluno durante seis anos, as máquinas eléctricas eram da
marca acima referida.
Os Guinchos e os
geradores acoplados das embarcações Santa Isabel e Santa Cristina, da EPA, eram da
marca Hansa. O Guincho do Santa Mafalda, construído na Lisnave, era também do
mesmo fabricante. Foi excepção a esta regra o novo Santa Isabel, cujo Guincho era da alemã Glaser Von Praun.
Tudo o que era alemão era bom, fiável e duradouro. E eu ficava
deslumbrado com a sua tecnologia. Até as máquinas principais do Santa
Mafalda e do Santa Cristina, inicialmente da marca holandesa Werkspoor,
acabaram por ser substituídas pela alemã MAN, que ficaram guardadas nos
Estaleiros de São Jacinto até serem montadas após as transformações dos respectivos navios. Foram
compradas na Alemanha pelo Sr. Eng.º Hernâni Salgueiro, na companhia do Chefe Camoesas. As
girobússolas de navegação eram também do fabricante alemão Ottoman
Anschutz.
Posteriormente à aquisição de toda esta maquinaria alemã, tive o prazer
de receber um
convite do meu colega da EPA, Artur Filipe, para irmos à Alemanha. O seu cunhado, João Capão, casado com a Ascensão, que fora
assistente do Sr. Egas durante dois anos, tinha vindo da Venezuela. Ao abrigo da lei dos Emigrantes,
tinha a possibilidade de poder comprar no estrangeiro um automóvel em condições
mais vantajosas. Aceitei o convite que ele me fez e partimos de avião para
a Alemanha, porque para cá viríamos num carro novo adquirido
neste país.
Corria o ano de 1979 quando tive a oportunidade de
ir pela primeira vez conhecer um pouco do país que nos fornecia as
máquinas para os navios. Para me
poder ausentar da EPA,
tive de pedir autorização ao Sr. Eng.º Salgueiro, que sabia bem quais eram os meus
verdadeiros motivos. Tínhamos problemas com o controlo do
guincho do Santa Mafalda,
a ponto
do capitão Nordeste se recusar a ir para a pesca com o motor naquelas
condições. A Hansa, a firma que fabricava os guinchos, tinha falido.
Embora voltasse a reabrir mais tarde, deixou de se dedicar à construção de
maquinaria, concentrando-se na assistência e venda de acessórios. Por
isso, a minha grande preocupação, mais do que conhecer um novo país, era a tentar arranjar contactos na
Alemanha.
Tinha agora, sem grandes custos para a EPA,
a possibilidade de ir a Hilden, nas proximidades de
Hann e de Wupertal, falar directamente com o Eng.º Galindo, dono de uma
firma de Importação/Exportação, para nos arranjar acessórios para o
guincho do Santa Mafalda. De origem mexicana, este senhor trabalhara em Aveiro na FRAPIL.
Por isso, dava-nos muito jeito ter alguém na Alemanha
que nos ajudasse a resolver os problemas de aquisição de acessórios para
manutenção dos nossos barcos, tanto mais que, nesta altura, tirando os
correios, os telefones e os telexes, ainda não existiam os actuais
recursos de comunicação à distância. O material era-nos enviado por
caminho de ferro ou, quando de tamanho mais reduzido, por avião. E era o
senhor Barroso, nosso colega nos
Escritórios, o responsável pela resolução dos problemas alfandegários.
Na Alemanha,
para nos acolher em sua casa,
tínhamos à nossa espera a D.
Glória, irmã do Mário,
nosso electricista na EPA. O João Capão disse-me
que não era preciso levar dinheiro,
porque tinha um cheque de 1500 contos
passado sobre um Banco de Nova Iorque. Embarcámos de Lisboa para Frankfurt.
Aqui, tínhamos a família da D. Glória à nossa espera, que nos veio
buscar de carro para nos levar a Wetzlar, não sem antes termos
passado por uma série de peripécias imprevistas.
A primeira complicação surgiu-nos mal pusemos os pés em terras alemãs.
No aeroporto de Frankfurt, a polícia alemã confundiu-me com um
terrorista. Como foi isto possível? O meu passaporte tinha uma
fotografia muito parecida com a que estava afixada num poster,
por cima do guiché, referente a uns
terroristas procurados pela lei.
Esclarecidas todas as dúvidas, seguimos viagem, mal sonhando que
estávamos a caminho de
noutra complicação que nos reteve durante uma semana, porque
o Banco não
nos queria dar o dinheiro. O cheque teria de ir a Nova Iorque e ser
visado, porque os alemães não brincam em serviço. Fomos obrigados a
criar cada um a sua conta no Banco no valor de um Marco, a depositar o cheque e, com o
aval dos nossos amigos emigrantes, cederam-nos 500 contos, porque o Mercedes
que o meu amigo queria comprar já
tinha sido apalavrado com o Burgomestre da cidade.
Como atrás
de um problema outros costumam habitualmente surgir,
não fugimos à regra. Em Portugal, na Gafanha da Nazaré, o navio” Murtosa”
estava à minha espera com avaria e o senhor Eng.º Salgueiro a não gostar nada da brincadeira. Mas a burocracia bancária pouco se estava a
ralar para o meu atraso no regresso aos navios e a viagem de volta
ainda haveria de nos trazer outras peripécias.
Para resolver os
problemas referentes ao Santa Mafalda e contactar o Eng.º Galindo, em
Hilden,
já com um carro novo (em segunda mão), demos início à nossa longa viagem.
Para a nossa
ida para a Alemanha apenas necessitámos de umas três horas. O nosso
regresso a Portugal iria demorar um total de três dias, com passagem por
três países, com o seguinte itinerário:
Wetzlar, Hilden, Colónia, Liège, Paris, Bordéus, Valladolid, Vilar
Formoso, Aveiro.
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Exceptuando
aquelas localidades onde tivemos de tratar de assuntos relacionados com
a nossa empresa, algumas das cidades indicadas apenas as vimos de
fugida.
Na
fronteira entre a Bélgica e a França surgiu-nos um imprevisto.
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Catedral
de Colónia, fotografada durante a travessia do Reno. |
Devido às baixas temperaturas de Inverno e à utilização do sal espalhado
nas estradas alemãs para diluição da neve e do gelo, o tubo de escape
não correspondia ao estado de manutenção do resto da viatura.
Encontrava-se corroído e ficou pelo caminho, fazendo com que os gases
fossem libertados por baixo da zona correspondente à mala do carro. A
fumarada e o calor libertado danificaram as
prendas que trazia para as minhas
filhas e obrigaram-nos a uma reparação já em território francês.
Chegados à Cidade Luz,
fomos obrigados a dormir à sombra da Torre
Eiffel, tendo por despertador os varredores que, de vassoura na mão, nos fizeram acordar às
seis da manhã. Infelizmente, quando passámos por Saint-Denis,
cerca
das duas da madrugada, o nosso lastimoso aspecto, com uma barba por
fazer há mais de dois dias, levou-nos à recusa de dormida nos hotéis
contactados, não nos restando outra
coisa senão dormirmos encolhidos no carro.
No curto espaço de tempo
passado em Paris, ainda
tentámos entrar no "Moulin
Rouge", mas fomos avisados pelo porteiro, que era português, que o
espectáculo estava no fim e não valia a pena gastarmos o nosso dinheiro.
Para ficarmos com uma fugaz ideia do que é a capital da França e
aliviarmos as dores nos joelhos, depois de uma noite mal dormida, demos
uma volta pelo centro da cidade. Fomos de metro até ao Louvre, que vimos
pelo lado de fora, e regressámos ao carro. Já de abalada, passámos por Notre-Dame
e pelo Arco do Triunfo e seguimos directos a Bordéus, para dormirmos
nesta cidade.
Em Valladolid,
já em terras de nuestros hermanos, fomos aos “Preciados”, para
comprar outras prendas. Poucas horas depois, passávamos a fronteira
portuguesa de Vilar Formoso, para me deparar, mal postos os pés em
terras aveirenses, com a “chatice” dos novos alternadores do Murtosa,
para cuja elevada tecnologia ainda não tínhamos
a adequada preparação.
No âmbito da
Formação Profissional, tive ainda a oportunidade de voltar outra vez à
Alemanha, ao estado da Baviera, enquadrado numa delegação portuguesa de
Formação Profissional. Embora isto não se enquadre totalmente com o teor
das crónicas que temos vindo a escrever, a verdade é que a EPA era uma
verdadeira escola de formação profissional. A atestá-lo temos, por
exemplo, a opinião de Valdemar Aveiro que, na sua publicação
Murmúrios do Vento, em que nos fala de recordações da pesca do
bacalhau, nos diz o seguinte acerca da empresa:
«A
Empresa de Pesca de Aveiro era um pequeno mundo, um minúsculo Estado
quase autónomo, onde nada faltava.
Havia quem
a comparasse a uma Escola de Formação Profissional, uma verdadeira
Universidade, tão elevado era o nível técnico de grande parte dos
funcionários, alguns dos quais conquistaram primeiros prémios em
Certames Internacionais...»(1)
Na cidade de
Ohlstadt, a 80 quilómetros a sul de Munique, tive a oportunidade de
visitar a Kolping(2), onde vigora o sistema «Dual», que consiste em dividir
a formação em dois momentos: a escola, durante uma parte do dia; o
trabalho, durante a outra. Deste modo são conciliados dois factores
importantes que caracterizam o rigor alemão: a exigência e a qualidade.
Lamento que, tendo dado parte da minha vida à Formação Profissional,
sendo um produto acabado das “Oficinas do Egas”, por onde também
passou o meu Pai e o meu Irmão, não tenha conseguido êxito idêntico.
Infelizmente, em Portugal, muitas instituições estão mais
vocacionadas em trabalhar para as estatísticas do que para a qualidade e
profissionalismo, a ponto de terem sido transformadas em escolas de
reinserção social, no estilo de uma Santa Casa da Misericórdia, em que
se certificam, salvo raríssimas excepções, milhares de analfabetos com o
programa das “Novas Oportunidades”, lançando o País numa verdadeira
tragédia Nacional, que nos ajudou a posicionar na situação em que hoje nos
encontramos! Se o bispo Adolfo Kolping
voltasse outra vez à Terra e visitasse Portugal, certamente morreria de
vergonha pela triste imitação lusitana.(3)
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(1)
– VALDEMAR AVEIRO, Murmúrios do Vento. Recordações da Pesca do
Bacalhau, 1ª Ed., Lisboa, Âncora Editora, Dezembro de 2012, pág.
182.
(2)
– Acerca da nossa breve estadia na Kolping, não podemos deixar de
acrescentar uma breve nota. Ficámos instalados em pequenos apartamentos
dotados com “Kitchnet”, cuja utilidade era irrelevante, uma vez que
todas as refeições eram no refeitório da instituição. A única excepção
foi a do dia 17 de Março, uma quarta-feira, em que o director da nossa
Delegação decidiu que iríamos jantar fora, para descanso das senhoras
cozinheiras. Valha a verdade que comer na Alemanha não é fácil,
atendendo à nossa dieta mediterrânica. Além do mais, em Oldstadt, o
ambiente é rural, quase não existindo restaurantes. Nesse dia, eu, que
vinha ligeiramente à frente dos colegas, reparei num pequeno bar. Já
estava fechado, apesar de serem apenas 16 horas. Na montra estava
afixada uma ementa, que li em voz alta: «Coelho à Caçador; Cozido à
Portuguesa; Bacalhau à Lagareiro; Rojões à Transmontana».
O Director, que vinha mais atrás, estupefacto, exclamou:
– Ó sr. Simões, já aprendeu a ler alemão?
– Sr. Doutor, isto está escrito em Português… – respondi-lhe. Por isso,
isto tem de ser de um emigrante português. Às 19 horas, para confirmar,
passamos por cá.
Na realidade o homem era de Seia. Tinha uma casa na Costa da Caparica,
um filho que era cozinheiro no Palácio da Ajuda, e tinha tirado o curso
de Culinária em Coimbra. Vendo ali conterrâneos, já não nos deixou sair.
Foi a casa buscar bacalhau, presunto, salpicões e uma viola para animar
o pessoal. Cerveja não faltava. Enquanto ele foi e voltou, eu
desloquei-me à Kolping para convidar as três senhoras dinamarquesas, que
também frequentavam o nosso programa Leonardo da Vinci. Deste modo,
estivemos até às três da manhã em franco convívio a comer, a beber e a
cantar Fados de Coimbra. Já lá vão vinte e três anos e este «fait
divers» ainda continua vivo na minha memória.
(3)
– A nossa curta passagem por terras alemãs foi fotograficamente
registada para mais tarde recordarmos. Obtivemos algumas fotografias a
cores que estão reproduzidas no Arquivo Digital do espaço «Aveiro e
Cultura». Se as quiserem ver, apenas têm de clicar nas respectivas
hiperligações:
Baviera –
Abadia de Ettal –
Kolping –
Linderhof. |