De:
Énio
Semedo
Data: 26/12/2006 17:42
Assunto: Uma executiva no céu
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«Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma
pontada no peito, vacilou, cambaleou. Deu um gemido e apagou-se.
Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso
portal. Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma miríade de
pessoas. Todas vestindo cândidos camisolões e caminhando
despreocupadas. Sem entender bem o que se estava a passar, a
executiva bem-sucedida abordou um dos passantes :
–
Enfermeiro, eu preciso voltar urgentemente para o meu
escritório, porque tenho um meeting importantíssimo.
Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque meu
convénio médico é classe A, e isto aqui está-me parecendo mais
um pronto-socorro. Onde é que nós estamos?
–
No céu.
–
No céu?...
–
É. No céu.
–
Tipo assim aquele com querubins voando e
coisas do género?
–
Certamente. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente.
Apesar das óbvias evidências (nenhuma poluição, toda a gente a
sorrir, ninguém a usar telemóvel), à executiva bem-sucedida
custou-lhe um pouco admitir que havia mesmo apitado na curva.
Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das
infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela
situação era inaceitável. Porque, ponderou ela, dali a uma
semana iria receber o bónus anual, além de estar fortemente
cotada para assumir a posição de presidente do conselho de
administração da empresa. E foi aí que o interlocutor sugeriu:
–
Talvez seja melhor você conversar com Pedro, o síndico.
–
É? E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária?
–
Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece.
–
Assim? (...)
–
Pois não?
A executiva bem-sucedida quase desaba da nuvem. À sua frente,
imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo,
estava o próprio S. Pedro. Mas, a executiva tinha feito um curso
intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu
rapidinho:
–
Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva
bem-sucedida e...
–
Executiva... Que palavra estranha. De que século veio você?
–
Do XXI. O distinto vai dizer-me que não conhece o termo
"executiva"?
–
Já ouví falar. Mas não é do meu tempo.
Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight. A
máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero à
esquerda em modernas técnicas de gestão empresarial. Logo, com o
seu brilhante currículo tecnocrático, a executiva poderia
rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer,
celestial, ali na organização.
–
Sabe, meu caro Pedro. Se você me permite, eu gostaria de lhe
fazer uma proposta. Basta olhar para todo esse povo aí, só
batendo papo e andando à toa, para perceber que aqui no Paraíso
há enormes oportunidades para dar um upgrade na
produtividade sistémica.
–
É mesmo?
–
Pode acreditar, porque tenho PHD em reengenharia. Por exemplo,
não vejo ninguém usando crachá. Como é que a gente sabe quem é
quem aqui, e quem faz o quê?
–
Ah, não sabemos.
–
Headcount, então, não deve constar em nenhum versículo,
correcto?
–
Hã?!
–
Entendeu bem o meu ponto de vista? Sem controlo, há dispersão. E
dispersão gera desmotivação. Com o tempo, isto aqui vai acabar
numa anarquia. Mas nós dois podemos consertar tudo isso
rapidinho, implementando um simples programa de targets
individuais e avaliação de performance.
–
Que interessante...
–
Depois, mais no médio prazo, assim que os fundamentos estiverem
sólidos e o pessoal começar a reclamar da pressão e a ficar
stressado, a gente acalma a malta bolando um sistema de
stock option, com uma campanha motivacional impactante,
tipo: "O melhor céu da América Latina".
–
Fantástico!
–
É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização,
de um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e
avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver. Aí,
contrataríamos uma consultoria especializada para nos ajudar a
definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas
metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o
retorno do investimento do Grande Acionista... Ele existe,
certo?
–
Sobre todas as coisas.
–
Óptimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing
progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir
manuais de procedimento, definir o marketing mix e
investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto
valor agregado. O mercado telestérico, por exemplo,
parece-me extremamente atractivo.
–
Incrível!
–
É óbvio que, para conseguirmos tudo isto, nós dois teremos que
nomear um Board de altíssimo nível. Com um pacote de
remuneração atraente, é claro, coisa assim de salário de seis
dígitos e todos os fringe benefits e mordomias da praxe.
Porque, agora falando de colega para colega, tenho a certeza de
que você vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela
frente vai resultar em um turnaround radical.
–
Impressionante!
–
Isso significa que podemos partir para a implementação?
–
Não. Significa que você terá um futuro brilhante se for
trabalhar com o nosso concorrente. Porque você acaba de
descrever, exactamente, como funciona o Inferno...»
Max Gehringer
In Revista "Exame"
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