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A propósito de Arlindo Vicente,
no centenário do seu nascimento - I

Arlindo Vicente nasceu no Troviscal, no dia 5 de Março de1906. Já lá vão 100 anos.

A primeira vez que vi trabalhos seus foi no já recuado ano de 1963. Eu conto como foi, porque julgo que é uma história que vale a pena recuperar do tempo que nos vai fugindo.

Eu tinha sido convidado pelo senhor Pedro Grangeon Ribeiro Lopes para integrar uma Direcção do Clube dos Galitos por ele presidida e na qual eu seria responsável pelo pelouro cultural.

No vigor dos meus 25 anos, acabado de casar, sentia-me capaz de conciliar as minhas obrigações profissionais (que já comportavam a responsabilidade de recuperar uma empresa de pesca então com graves dificuldades financeiras), com a frequência do Curso de Direito, em Coimbra, como estudante-trabalhador, acrescendo o desejo de não deixar de desenhar e pintar (participando nas exposições colectivas que se iam organizando), e sem deixar de escrever (colaborando, acima de tudo, nos jornais locais “Correio do Vouga” e “Litoral”). Os meus dias parece que tinham 48 horas! Davam para tudo e eu sentia-me feliz.

De tal maneira era assim que não fui capaz de recusar o honroso convite do bom amigo Pedro Grangeon e aceitei a tarefa que me era proposta.

Nas minhas fugas até Coimbra por conta do curso de Direito conheci o então jovem Mário Silva, já pintor irreverente com créditos firmados na praça, que me pôs em contacto com a malta do CIRCULO DE ARTES PLÁSTICAS DA ASSOCIAÇÃO ACADÉMICA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Arranjei um exemplar dos seus estatutos e não descansei enquanto não fiz uma sua adaptação à realidade aveirense, apresentando um projecto, como Secção Autónoma do Clube dos Galitos, que veio a ser aprovado em reunião de Direcção no dia 7 de Outubro de 1963. Ainda guardo religiosamente uma sua cópia.

Por esses tempos, basta só compulsar a imprensa local, o Dr. Orlando de Oliveira, reitor do Liceu Nacional de Aveiro, afadigava-se por criar na nossa terra um Conservatório de Música e de Ballet, tendo conseguido já pôr em funcionamento aulas nas instalações anexas à Igreja da Misericórdia, por cima da desaparecida drogaria do Alberto Rosa.

Eu, voluntarista como era, acreditei que seria possível vir a transformar essa ideia, ampliando-a para uma Escola de Artes. Sabia do convite do reitor para que o Dr. Azeredo Perdigão viesse visitar Aveiro, na companhia de sua esposa, Dona Madalena Perdigão, para avaliar “in loco” o entusiasmo reinante pela Música e pelo Ballet. E porque não pelas Artes Plásticas? — pensava eu. Meu dito, meu feito. Com o apoio e esforçada ajuda da minha mulher Claudette, do Jeremias Bandarra, do Jaime Borges, do Mário da Rocha, do Dr. Vasco Branco, do Dr. David Cristo e de mais uns quantos, meti mãos à obra para organizar a I EXPOSIÇÃO DOS ARTISTAS DE AVEIRO que viria a ser a primeira acção do CIRCULO DE ARTES PLÁSTICAS DO CLUBE DOS GALITOS. O Dr. Vale Guimarães, Governador Civil do Distrito de Aveiro, com o seu espírito aberto, tendo sabido das valiosas participações na mostra patente no Salão Nobre do Teatro Aveirense, acedeu ao nosso convite e deu-nos a honra de participar na inauguração, como representante do Governo e como (fez questão de publicamente o afirmar!) impenitente “galináceo”.

Vale a pena recuperar o prólogo do pequeno catálogo recenseador dos artistas e obras expostos. É que por ele se vê que a Exposição não se limitava a sê-lo.

A I Exposição de Artistas de Aveiro não pretende ser mais uma exposição entre as muitas que, no decorrer do ano, se realizam entre nós. As exposições são, geralmente, um fim; esta é um princípio apenas. Aquelas são uma revelação ao público de obra feita; a I Exposição de Artistas de Aveiro é uma amostra da obra por fazer! Nasceu como um grito de força a querer mais vida… Ela é, poder-se-ia dizer, uma afirmação pública de direito ao trabalho!

Estão nela presentes nomes nossos, contemporâneos, mas, já por méritos seus, artistas de craveira nacional. E a sua presença, - presente válido que é penhor dum ambicionado futuro! - só muito nos honra. Mas estão, sobretudo, presentes muitos “novos” em pública manifestação colectiva a justificarem, até, e talvez sobretudo, por nem todos os artistas que deverão e poderão ser, a criação do Círculo de Artes Plásticas do Clube dos Galitos. Não menosprezando o nível qualitativo que pudesse atingir, a I Exposição de Artistas de Aveiro nasceu sobretudo e acabou por organizar-se com a sina de ser um grito de vida a pedir mais vida! Se algo dela houver de concluir-se é que Aveiro, terra toda feita de luz e cor, povo sempre todo virado, em suas milenárias raízes, para os longes do progressivo amanhã, tendo um círculo de pintores precisa - e porventura merece! - uma escola de pintura!    

E depois vem o rol dos participantes, quantos deles já falecidos, mas que passo a referir exactamente pela ordem do catálogo: Guerra de Abreu, Albertino, eu próprio, Belmiro Amaral, José Augusto, Hélder Bandarra, Jeremias Bandarra, Carbaty, Ruy Carneiro, Lauro Corado, David Cristo, António Leopoldo Christo, J. Dias, Artur Fino, A. Maia Fradinho, Manuel Fradinho, João Lavado, Rui Lebre, Emanuel Macedo, Macedo (Pai), Marycel, João Matias, Mit/Jaime Borges, Nel, João Ovídio, Paradela, Zé Penicheiro, José de Pinho, Celestino Pires, Augusto Sereno, Odemiro Soares, Manuel Tavares, Cândido Teles, Mário Truta, Euclides Vaz, VIC/Vasco Branco e a terminar: ARLINDO VICENTE.

Arlindo Vicente, com três óleos maravilhosos que nunca mais esqueci. Um proveio da colecção particular do saudoso Dr. José Vieira Gamelas: “Mãe e Filhas”. Os outros dois conseguiram chegar a Aveiro, fruto do lavor no presídio onde fora detido em 1961, sob acusação de actos subversivos, tendo sido condenado a 20 meses de prisão correccional e 5 anos de inibição de direitos políticos. Eram dois retratos de companheiros de sorte, excepcionalmente bem esgaçados, verdadeiros retratos psicológicos com um vibrátil cromatismo que o tratamento matérico resultante de solta pincelada ainda tornava e torna mais rico. Chegaram até mim, por certo tendo percorrido ínvios caminhos, pelas mãos cuidadosas e diligentes do meu saudoso amigo João Sarabando, a quem os devolvi, religiosamente, no final da exposição. Um deles, o do companheiro Miragaia, voltei a vê-lo, há poucos meses, para minha surpresa, em casa do filho, meu dilecto amigo, o Professor Doutor António Pedro Vicente.

Essa I Exposição dos Artistas de Aveiro em larga medida contribuiu para que o actual Conservatório de Aveiro Calouste Gulbenkian viesse a ter a componente de “ateliers” de pintura de que dispõe. Não é a Escola de Artes, abrangente, que em tempos se sonhou.

Mas tem sido, sem dúvida, um instrumento ao serviço da cultura aveirense que muito nos dignifica.

 

Em tempo de centenário de Arlindo Vicente, manda a minha consciência que volte a visitar a sua memória. Fá-lo-ei em próximo escrito.

 

Gaspar Albino - 13 de Agosto de 2006

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