Eu estava na cama 25 do andar da cirurgia vascular do
Hospital da Universidade de Coimbra. Mais uma vez em consequência de
nova trombose no by-pass protésico da minha perna esquerda. Mais
uma vez com essa mesma minha perna ainda a fazer parte do meu corpo,
muito enfraquecido, com tensões arteriais baixíssimas, a receber sangue
por conta de renitente anemia. Éramos seis os operados a coisas
semelhantes, naquela enfermaria de seis camas, e todos com a fortuna de
não termos visto amputado nenhum membro. No meio das dores que todos sentíamos, dávamos graças por podermos acalentar a esperança de nos
virmos a movimentar, com maior ou menor dificuldade, pelos nossos
próprios meios.
A minha experiência prévia de semelhante ocorrência
verificada em Maio permitia-me reconhecer quanta sorte mais uma vez
tinha tido, mercê da pronta e eficaz acção dos serviços de ambulância
dos Bombeiros Novos de Aveiro que me transportaram até à Urgência do
nosso Hospital; da pronta avaliação médica da gravidade do meu estado,
ali feita, e da imediata ordem de transferência para Coimbra; da
atempada intervenção cirúrgica no Hospital Universitário. Tudo isto
traduzindo uma verdadeira guerra contra o tempo, o que permitiu que ela tenha sido ganha a meu favor.
À minha frente, na cama do meio da enfermaria, estava o
senhor Silvério, sempre sem resguardo de pijama, mostrando, tronco nu,
uma magreza algo musculada que lhe facilitava uma ágil movimentação no
leito, pesem embora as limitações resultantes da extensa intervenção
cirúrgica a que fora sujeito.
Na mesma barca das
maleitas da saúde, traduzindo, ainda que de diferentes formas, dores
semelhantes, o espírito de solidariedade que se estabelece entre os
doentes fala alto. Esta minha avaliação resulta já de experiência
acumulada. Com efeito, ao queixume de um corresponde, quase sempre, a
palavra de alento provinda do mais disponível dos circunstantes, do
menos sofrido, ainda que transitoriamente.
Cada um dos meus companheiros constituía um mundo, bem
diferenciado, que a convivência forçada pela dor me ia facilitando na
sua leitura e na capacidade de entendimento das suas idiossincrasias.
Cada um deles daria para escrever uma crónica. Ainda não sei se o não
virei a fazer, tal a variada riqueza das suas peculiaridades. Mas, para
já, começo pelo senhor Silvério.
Eu fui operado no fim do dia 14 de Dezembro.
Mantiveram-me
isolado num quarto, em observação, durante os dois dias seguintes. Só
depois é que me levaram para a enfermaria onde vim a conhecer os meus
companheiros. Desde o meu homónimo Joaquim, da Nazaré, até a um senhor
velhinho, nos seus noventa anos, dos arredores de Viseu, que, só de
pensar que nos tinha que deixar, começava, logo, em choro convulso,
todos eles, melhor, todos nós passámos a viver na rotina hospitalar, com
as visitas regulares dos enfermeiros e dos médicos, sem dúvida ansiosos
por ouvir palavra de promissora melhora. Nos intervalos, íamo-nos
confessando em voz alta, dizendo donde éramos, o que fazíamos ou
fizemos, enfim, contando aquelas minudências que perfazem as nossas
vidas. Foi assim, nestes desabafos, que ficámos a saber que o senhor
Silvério ainda se dedicava à lavoura, depois de se ter reformado do
trabalho de
mineiro no Pejão.
Normalmente, logo aos primeiros alvores, era ele quem começava a
zurzir os nossos ouvidos, quase sempre com o mesmo lamento: «Que
saudades tenho da minha querida Zundapp… que nunca me deixaste ficar
mal… que bem empregado dinheiro gastei na tua reparação… mais de trinta
contos que te fizeram voltar a ser novinha quase em folha, ainda não vão
dois meses!»
Vinha o pequeno-almoço para quem o podia tomar
. E o senhor
Silvério comia tudo o que lhe cabia com uma sofreguidão enorme, pouco
compatível com a sua magreza. Para o que ficava intocado dos outros
pequenos-almoços, o senhor Silvério sempre conseguia fazer com que tudo
lhe fosse parar ao alcance. “E que saudades eu tenho do meu rico tintinho!”, lamentava-se ele, volta e meia. Ao almoço e ao jantar, essa
lamúria aumentava de tom. Repeti-la, parece que lhe dava algum sossego,
algum alento. Era nessas alturas que o senhor Silvério explicava a razão
por que a sua “rica Zundapp” nunca o tinha deixado ficar mal: é que a
sua motoreta tinha-o sempre levado de volta para casa, sem qualquer
acidente nem engano no caminho, depois de uns copos bem bebidos na tasca
da aldeia, lugar da sua peregrinação, todos os dias, ao fim da
tarde. No calor da conversa com os amigos, o corpo e o sangue também
aqueciam com o tinto. E nunca a sua Zundapp o deixara perder o
norte e muito menos resvalar em valeta traiçoeira.
A minha mulher levava-me sempre, na visita da tarde, o
"Diário
de Aveiro" e, à quinta-feira, a revista "Visão". Por essas alturas,
com a campanha das presidenciais em marcha, as reportagens sobre o tema eram
mais que muitas. A "Visão" não fugia à regra e publicou um curioso
trabalho sobre todos os candidatos anunciados. Um deles fazia parte de
um conjunto musical, confessava-se anarca convicto e, do seu cardápio de
propósitos eleitorais, constava a promessa de tudo fazer para garantir,
canalizada, a distribuição domiciliária e gratuita de vinho tinto.
Intencionalmente, li em voz alta o caderno eleitoral do candidato anarca.
Soerguendo-se na cama, o senhor Silvério, mais ligeiro que das outras
vezes, ao ouvir a promessa, avançou com a pergunta: “Quem é esse? Quem é
esse? Como se chama?”. Reli-lhe o nome, pausadamente. “Poi é esse que
vai levar o meu voto, assim eu saia a tempo do hospital”.
Todos nos rimos com a saída do senhor Silvério, claro. Menos
ele, fechado que ficou na sua sisudez esperançada em cumprimento desta
singular promessa eleitoral.
Gaspar Albino, Março de 2006 |