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Aveiro, a minha cidade de água

Quando tive que ir numa das minhas primeiras vezes a Londres, parti de Lisboa com um céu aberto, sem uma nuvem. Lembro-me perfeitamente que era meio-dia quando começámos a avistar a Ria de Aveiro. Sempre procurei arranjar um lugar do lado das janelas do avião, de modo a que se me tornasse possível a leitura mais favorável do que sobrevoávamos. A luz zenital provocava revérberos nos tabuleiros das marinhas; os esteiros e os canais entroncavam na Cale da Vila que corria até aos molhes da Barra, deixando apreciar, por ângulo inusitado, os bacalhoeiros, poucos, porque, no mês de Agosto, a maior parte já estava na faina. Os canais de Mira, de Vagos e de Ovar entreteciam um emaranhado donde despontavam verdes que só acentuavam a beleza da paisagem.

Boa razão teve José de Almada Negreiros para escrever, como só ele foi capaz, o pequeno texto que lhe vou roubar. «Há vários milhares de anos caíram aqui, na Ria de Aveiro, as célebres janelas do palácio do Céu. Ficaram intactas as vidraças nos respectivos caixilhos, porque as janelas caíram sobre a relva verdinha. Hoje são as salinas.»(1)

Nunca mais esqueci o texto de Almada, nem as imagens da minha terra de água que retive desse voo para Londres.

Muitas vezes fui para a marinha com o meu tio Joaquim. Era um marnoto de pele bem curtida pelo sol e pelo vento. Para a marinha que ele amanhava tinha que se ir de bateira, ainda noite, pelo emaranhado de esteiros que ele conhecia de cor e salteado. Que assim se encurtava o caminho, explicava-me ele. O meu pai, antes de andar ao mar, foi alguns anos de moço ajudá-lo na amanhação da sua marinha.

Como escreveu Frederico de Moura, num maravilhoso trabalho publicado, em 1982, na revista “Aveiro e o seu Distrito”, amanhar uma marinha «é uma rua da amargura que todos os anos se repete, em ritmo ofegante: desde o “escoar das comedorias” e do “mandamento”, até ao “estranger” com a “bimbadela” das “barachas” e das “canejas”; desde o tirar das “bimbaduras” e do “apancar” das próprias pegadas, até ao “curar” da marinha para a “botadela”, com o seu “imoirar” da “andaina de cima” e das “cabeceiras”, ao “andoar”, ao “vasculhar”, ao “ariar” que o fadário se prolonga com o corpo encharcado do esforço e da torreira.

É uma tarefa esfalfante, a correr afadigado sobre “traves” e” barachas” com passos levezinhos de gaivotas em terra, antes de chegar ao momento da colheita que, aliás, continua a não dar tréguas ao marnoto que tem que “bulir” e de “rer” sob a brasa viva do sol, de camisa desabotoada e de “manaias” arregaçadas até às virilhas, envernizado por uma transpiração que, sobre a pele tisnada e coreácia, brilha como unguento.

Amontoam, então, o sal em cones, e em “mulas” com um rigorismo invulnerável de geómetras, restando-lhe ainda ganas para gastar os últimos espasmos musculares a “afagá-los”, a “cobri-los” e a “chapeá-los” para que vendavais do inverno os não dispam do seu gabão monástico de bajunça. E por fim, quando o sol cintila e o “codejo” crepita, estendem-se os olhos e é um nunca acabar de espelhos que faíscam lume e endurecem numa cristalização almofadada de brancura.»(2) 

Compare-se a leveza poética de Almada, que acima registei, com a belíssima robustez do escrito de Frederico de Moura, que acabo de transcrever. Para alguém não afeito ao linguajar dos nossos homens da Ria só o recurso ao excelente trabalho do Dr. Diamantino Dias que, em 1996, publicou o GLOSSÁRIO DAS DESIGNAÇÕES RELACIONADAS COM AS MARINHAS DE SAL DA RIA DE AVEIRO(3), nos pode valer.

Era um garoto dos meus sete anos. Não mais. E, como todos os miúdos da Fonte dos Amores, paredes meias do posto da Polícia de Viação e Trânsito, andávamos todos na catequese da Sé. Na sacristia quem dava as aulas eram três senhoras, cada uma com o seu grupo etário. A um canto, muito grande e alto, estava uma imagem de São Cristóvão que, pelo seu tamanho e fama que as senhoras ardilosamente aproveitavam, metia, ao princípio, um certo receio. Mas isto foi só no princípio. De vez em quando aparecia, nas aulas de catequese, com a sua cara bondosa, o senhor D. João Evangelista de Lima Vidal, arcebispo-bispo da Diocese Restaurada. Todos gostávamos dele. Um dia, não sei como, veio a saber que eu era filho de mãe ceboleira e de pai cagaréu. Nesses tempos não eram frequentes os casamentos de jovens de cada uma das freguesias urbanas da cidade. Chegavam a guerrear-se. Certa vez chamou-me ao lado. E recitou-me um texto que mais tarde vi escrito em letra de imprensa. Era de sua autoria. Guardei-o. Rezava assim: «Eu nasci em Aveiro, ao que suponho na proa de alguma bateira. Fui baptizado à mesma hora, nas águas da mesma ria. Abriram-se-me os ouvidos ao som cadencioso dos remos no mar, ao pio estrídulo das famintas gaivotas, ao praguedo inocente dos pescadores. Encheu-se-me o peito à nascença do ar salgado da maresia. S. Francisco de Assis chamava a estas coisas irmãos, chamava a  estas coisas irmãs: o irmão Vouga, o irmão luar: o irmão Vouga, o irmão luar que à noite o prateia, os irmãos peixes, as irmãs espumas, areias, estrelas.

Mas aqui há mais do que uma simples fraternidade, há mais do que a suave harmonia da natureza e da alma de Aveiro, chego a crer que há uma verdadeira encarnação, o encontro de duas coisas no mesmo ser.

Nós, os de Aveiro, somos feitos, dos pés à cabeça, de ria, de barcos, de remos, de redes, de velas, de montinhos de sal e areia, até de naufrágios. Se nos abrissem o peito, encontrariam lá dentro um barquinho à vela, ou então uma bóia ou uma fateixa, ou então a Senhora dos Navegantes.

Assim plasmado de Aveiro, com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas da ria por todo o corpo, por toda a alma, eu sou uma nesga, embora minúscula, desta deliciosa aguarela de Aveiro; eu sou um pedaço da nossa terra.»(4)

Este texto encantou-me e quase que o transformei na minha certidão de nascimento, tantas vezes o repeti. Nos Lions, que já sou há 46 anos, era frequente, quando me davam a palavra, começar por dizer: «Eu nasci em Aveiro, ao que suponho na proa de alguma bateira….» O que não andava muito longe da verdade.

Mas que é um texto cheio da minha terra de água, é um facto. O meu companheiro Balacó, Lion como eu, sempre que eu tinha que vir a terreiro, lá me dizia, premonitoriamente: «Não venhas outra vez com a história de teres nascido na proa de uma bateira…» Mas era verdade, quase verdade, e eu repetia a minha certidão de nascimento como aprendera com o escrito de D. João. Ainda hoje o faço, baixinho, como orando pela minha Ria.

Aliás, estas coisas que me ficaram de menino são mais frequentes do que eu alguma vez poderia supor. Eu tive um grande amigo, de seu nome André. Era como se fôssemos irmãos. A ele devo muito do que sou. Desde que o conheci − teria os meus quatro anos, ele era uns anitos mais velho − sempre o vi a ler e a escrever poesia. Morreu muito novo: 33 anos. Andava às voltas com a sua dissertação sobre Thomas Mann, de que, felizmente, a Biblioteca da Universidade de Aveiro me ofereceu um exemplar que guardo religiosamente. Mas um dia, os seus colegas da Associação dos Antigos Alunos da Escola Primária decidiram publicar uma selecta dos seus poemas, AINDA VIDA (5), em jeito de memória. Transcrevo um, intitulado NAVEGAÇÃO.

 

Eu sou marujo novato,

falta-me a sabedoria

para passar o Tormentório

de mar verde e praia branca,

que avistei há mais dum mês;

mas, com manobras perfeitas

e com vento de feição,

passarei O das Tormentas,

como passei Cabo Não.

Depois… o Mar é amigo,

(O Adamastor morreu)

E eu, marujo novato,

Dobrarei a Boa Esperança

E serei Bartolomeu.

Era raro o fim de semana que não déssemos um passeio pelas margens da Ria. Era a nossa caminhada purificadora. Os bacalhoeiros atracados ao cais, os mercantéis a transportar mercadorias, os moliceiros a trazer para as Gafanhas o moliço que adubava as suas areias, as bateiras dos pescadores artesanais, as caçadeiras que com menos dificuldade se metiam pelos esteiros mais estreitos; enfim, era a vida da nossa Ria. Respirar aquele ar salgado, sabia bem.

O meu avô paterno tinha um palheiro em São Jacinto, no sítio onde hoje está o café Gato Preto. Algumas vezes fui lá com ele na sua bateira maneirinha. Do canal de São Roque até às Pirâmides íamos a remos; depois armava a pequena vela que se enfunava até um esteiro que encurtava caminho. Aqui havia sempre algum ombro amigo que nos levava à sirga até termos que regressar à vela. Depois era fácil: era abicar ao areal que ficava em frente do palheiro. Delirava com este passeio.

 Logo que tive possibilidades comprei o livro OS PESCADORES, de Raul Brandão. É um livro de cabeceira. Não só pela forma simples como tudo é descrito, mas, acima de tudo, pelo valor que confere à luz e à neblina únicas da nossa Ria. Transcrevamos:

«Um grande trecho líquido empoçado. Lodo emaranhado de valas e de regos. Silêncio e Luz. Fios de terra encaixilhando a vasta superfície dividida em rectângulos, com renques de árvores baixinhas torturadas pela poda. Silêncio húmido. Água imóvel. O que eu queria dar só o podem fazer os pintores – os tons molhados, os reflexos verdes, o galopar das nuvens fugindo sobre a imensa  superfície polida, e, por fim, ao cair da tarde, a agonia dolorosa da luz. No céu não é a mesma coisa, no céu perde-se tudo num momento… Nestas poças os dourados entranham-se misturados à podridão dos verdes e levam muito tempo a esvair, agarrados à água numa aflição. Só aqui se compreende bem o que à luz lhe custa morrer.» (6)

Foi-me fácil encontrar, porque o guardo religiosamente, o nº 1 do Boletim Municipal de Aveiro, datado de 1983, que frequentemente folheio. Pretendeu tal boletim dar-nos uma resenha de 100 ANOS DE ARTES PLÁSTICAS, já que tinha decorrido igual período de tempo desde que «o Grémio Moderno assumiu a responsabilidade de organizar uma exposição de objectos de arte decorativa, e produtos das indústrias actuais do distrito, a fim de se compararem as grandezas do passado, com as maravilhas do presente.»(7)

Pretendia-se também dessa forma «associar-se às celebrações nacionais do 1.º Centenário da morte do Marquês de Pombal, a quem se devia a elevação de Aveiro à categoria de cidade.»

Tal boletim teve na sua base uma pequena comissão: os saudosos Coronel Cândido Teles, e Dr. Vasco Branco, e ainda o Dr. Énio Semedo, Monsenhor João Gaspar, Dr. Diamantino Dias e Dr. Amaro Neves, com o apoio da ADERAVE.

Este meu despretensioso escrito não almeja ir tão longe.

Não só não enumero os muitos escritores que se deixaram apaixonar pela nossa terra de água, como também não pretendo organizar um catálogo de trabalhos plásticos de produção mais contemporânea. Mas cometeria falta grave se não referisse os inúmeros trabalhos da Dra. Ana Maria Lopes, graficamente muito perfeitos e literariamente muito enriquecedores. 

Procuro, isso sim, e porque assim o sinto, falar na luz que encanta quem vive nesta terra de água. Não é, por acaso, que quem escreveu sobre esta nesga de mar que a terra abraça, fale dessa luz que tudo transforma em aguarela. Até a nossa neblina ganha matizes muito específicos. Mesmo quando a matéria pictórica não é a aguarela, o resultado final garante-nos a transparência de atmosfericidades muito próprias.

A vida cultural de Aveiro mudou muito. Os anos sessenta foram autêntica revolução. Apareceu AVEIROARTE. Infelizmente já lá vão alguns dos seus fundadores: Cândido Teles, Zé Penicheiro, Zé Augusto, Vasco Branco, Arlindo Vicente, David Cristo… de quem restam, felizmente, as suas obras. Apareceu o CETA – CÍRCULO EXPERIMENTAL DE TEATRO DE AVEIRO. Quer uma, quer outra instituição já levam dezenas de anos com denodado e meritório trabalho.

Perdemos algumas galerias. Mas outras surgiram. Temos o Museu da Cidade, onde estão escondidas, entre outras, as obras de Lauro Corado. E o Museu de Santa Joana com uma vida renovada que o Dr. José António Christo e os seus colegas têm sabido manter.

AVEIROARTE organizou, com êxito, a 1ª. BIENAL DE ARTE. Mas ficou filha única. Entretanto, as BIENAIS DE CERÂMICA, felizmente, continuam.

A Dra. Maria da Luz, ainda há pouco tempo, voltou a falar na falta que faz a Aveiro um MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA.

Mas eu quero fugir aos lamentos. Interessa-me, muito mais, deixar, nesta oportunidade, um repto que julgo viável. Porque não desafiar os artistas de AVEIROARTE a produzirem trabalhos sob o tema AVEIRO – A MINHA CIDADE DE ÁGUA para uma grande exposição que permitisse fazer um catálogo com a dignidade que a nossa Ria merece?

Estou convencido que todos corresponderiam a um convite desse jaez.

ADERAVE E AVEIROARTE PODEM E DEVEM FAZER UMA BOA SOCIEDADE. ASSIM SAIBAMOS TODOS TRABALHAR EM CONJUNTO.

GASPAR ALBINO

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(1) − ALMADA NEGREIROS, in revista "Panorama", n.º 1, 1941, págs. 12-14.

(2) − FREDERICO DE MOURA, A mão do Homem na Paisagem, in "Aveiro e o seu Distrito", n.º 30, Junho de 1982, pp. 31-33.

(3) − DIAMANTINO DIAS, Designações relacionadas com as Marinhas de Sal da Ria de Aveiro, Aveiro, C. M. A., 1996, 98 págs.

(4) − D. JOÃO EVANGELISTA DE LIMA VIDAL, in "Galitos", 1960, p. 5.

(5) − ANDRÉ ALA DOS REIS, Ainda Vida, Edição da Associação dos Antigos Alunos da Escola Primária da Freguesia da Glória, 1980.

(6) − RAUL BRANDÃO, Os Pescadores, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 2ª ed., 1998, pág. 79.

(7)Cem Anos de Artes Plásticas, C.M.A., N.º 1, Março de 1983.

 

04-05-2018