Quando a Companheira
Teresinha Novo me convidou para participar no SIMPÓSIO DA FAMÍLIA E DA
MULHER não fui capaz de dizer não. Nessa altura não conhecia o tema
que me iria ser solicitado tratar. Depois recebi o programa do
Simpósio e lá estava o título desta minha comunicação: LIONS — UMA
OPORTUNIDADE DE SERVIR.
Só porque nesta audiência
há pessoas que não são LIONS, me sinto no dever de dizer que LIONS
não é o plural da palavra inglesa LION, em português LEÃO. Com efeito,
LIONS é um acrónimo formado pelas iniciais das seguintes palavras: L
de LIBERDADE; I de INDEPENDÊNCIA; O de ORDEM; N de NACIONALIDADE e S
de SERVIÇO. O lema adoptado desde primícias do movimento é, em inglês,
WE SERVE; NÓS SERVIMOS, na nossa língua.
Tudo o que os Companheiros
LIONS procuram fazer, pelos mais variados meios, desde o momento em
que juram cumprir o nosso CÓDIGO DE ÉTICA para perseguir e prosseguir
os nossos OBJECTIVOS, é honrar esse lema: NÓS SERVIMOS.
Ora eu vou fazer com estas
mal alinhavadas palavras uma mescla desse espírito de SERVIR, que tudo
invade, com a FAMÍLIA e com a MULHER.
E, assim, vou recuperar um
pequeno texto que escrevi para o BOLETIM DO 7º ANIVERSÁRIO DO LIONS
CLUBE DE ÍLHAVO que, logo à noite, no JANTAR COMEMORATIVO, será
distribuído por todos os convivas.
Reza assim sob o título de
ILHAVO DE BOAS RECORDAÇÕES…
“Quando criança, fiquei à
guarda da minha avó materna, Joana Gaspar de seu nome. Era natural de
Ílhavo. A ela devo a educação que recebi na minha fase de
aprendizagem para a vida. A minha mãe, com os meus irmãos mais
pequenos, vivia em Lisboa, por força da vida de seu marido, meu pai
Manuel, que andava ao mar. E eu não gostava da Capital. Que me lembre,
só lá passei quinze dias das minhas férias grandes dum ano qualquer da
escola primária.
A primeira vez que fiz
praia, foi na Costa Nova. Levaram-me as irmãs Beneditas que eram
também de Ílhavo e viviam na rua da Lagoa, primas da minha avó
Joaninha. Foram dias muito bem passados, com todo o carinho centrado
em mim, já que as primas, segundo o que me apercebi na altura, eram
solteiras e sem filhos. Vivemos umas duas semanas numa pequena casa,
parte integrante duma recoleta construída sobre a lomba sobranceira ao
mar. Lembro-me, como se fora hoje, de me acordarem às seis da matina
para ir ao banho. Elas iam de camisa de dormir, com um chale preto
sobre os ombros. O senhor banheiro dava-me uma meia dúzia de “fungões”
que furavam as ondas oceânicas e, com uma pancada no meu rabito,
mandava-me lomba acima para eu me secar na toalha, a tiritar de frio,
longe do mar. E lá ficava eu à espera das primas que se banhavam com
as suas camisas de dormir. É mais do que evidente que essas camisas
não escondiam nada. Replicavam as formas dos corpos na perfeição e
tudo dos seus corpos se percebia. Todas as senhoras do grupo que o
banheiro supervisionava, àquela hora matinal, era assim, neste
preparo, que tomavam o seu banho de mar. Como me lembro, ainda hoje,
desse espectáculo!
Entretanto, os anos
passaram. E quis Deus que eu viesse a namorar uma jovem professora, a
Claudette, com a qual viria a casar-me, não decorria um ano de namoro.
Foi paixão que ainda hoje perdura. Ao preparar os papéis para o
casamento, fiquei a saber que a minha futura mulher nascera em
Ílhavo, na freguesia de São Salvador, na rua de Camões.
E eu mesmo fui
sócio-gerente de uma empresa de pesca, cuja sede e secadouro de
bacalhau ficava na Gafanha da Nazaré, Concelho de Ílhavo.
* * *
A minha Claudette,
ilhavense de nascimento, acompanhou-me sempre na minha vida
lionística, desde que fui o primeiro presidente dum Lions Clube
surgido em Aveiro. Mas ela nunca aceitou de bom grado que as mulheres
casadas não pudessem ser LIONS de pleno direito. Isso de ser vedado às
mulheres a faculdade de ser sócio foi sempre contestado no Movimento.
E isto apesar de serem as nossas mulheres elementos essenciais na
congeminação e implementação de todas as acções de SERVIÇO que os
Clubes pretendiam levar a cabo. Logo que os Estatutos Internacionais
de Lions Clubes permitiram, por iniciativa da Claudette foi fundado o
Lioness Clube de Aveiro, englobando todas as senhoras do Clube, sendo
ela a sua primeira presidente. Quando os Estatutos facultaram,
posteriormente, que as mulheres fossem Lions de corpo inteiro, tal
coincidiu, temporalmente, com a fundação do Lions Clube de Santa
Joana. Os Estatutos deste meu Clube exigem que todos os seus membros,
homens e mulheres, sejam sócios. E a ilhavense Claudette
orgulhosamente assinou a escritura da sua fundação.
Foi ela, também, a
primeira ilhavense eleita Governadora Lions para o Distrito
115, Centro/Norte. A morte impediu que ela levasse a bom porto a
missão que todos nós lhe confiámos. Quiseram os Companheiros que fosse
eu a tentar suprir a sua falta. Fiz o que fui capaz de fazer com a
ajuda e compreensão de todos vós.”
* * *
Comecei por vos dizer que
sou filho de um homem do mar. De um homem do mar como tantos outros
que há nesta terra marinheira de Ílhavo. A minha infância foi vivida
como se fora órfão de pai. Das suas viagens ao bacalhau no lugre/motor
Santa Regina até ao seu naufrágio, nos mares da Gronelândia, nada
lembro. No período da segunda guerra mundial, o meu pai foi mobilizado
e prestou serviço no Alfeite. A minha mãe acompanhou o seu marido e
foi viver para Lisboa. Eu fiquei à guarda da minha avó Joaninha. Logo
que acabou a guerra, meu pai passou a andar embarcado em navios do
comércio. Lembro-me de o ir esperar com a minha mãe à Estação do
Caminho de Ferro, esquálido, amparado por dois desconhecidos que
depois vim a saber enfermeiros, de regresso de França, onde estivera
internado durante mais de trinta dias, após naufrágio no Golfo da
Biscaia. Ele fora um dos 15 que se salvaram dos trinta e três da
tripulação do “Panchito”, navio que se partira ao meio por força de
demolidora tempestade. Logo que recuperou alguma da sua saúde, fez-se
de novo ao mar. A minha mãe voltou a ir viver comos meus irmãos mais
novos para Lisboa. Um acidente à entrada do porto de Nova Iorque
inutilizou-o até à sua morte. Esteve internado durante mais de quatro
anos no Manhattan State Hospital de Nova Iorque. Regressou a Portugal
quando eu estava a fazer a quarta classe. Tinha eu então nove anos.
Nunca mais deixou de estar hospitalizado até ao seu último suspiro.
Conto-vos tudo isto só
para vos garantir que a educação, que eu recebi nos meus primeiros
nove anos de vida, devo-a ao matriarcado da minha avó Joaninha
que assimilou, no seu lar, a minha mãe e meus irmãos, desde que o meu
pai adoecera em Nova Iorque.
Logo que conclui o Curso
Geral de Comércio empreguei-me nos meus 15 anos. E o lar da minha mãe
foi reconstituído. Eu já tinha um ordenado. E, com toda a minha
juventude, passei a ser o “chefe” da casa sob a tutela matriarcal
de minha mãe Maria, que trabalhava a dias, como costureira,
desde o tempo em que o meu pai ficara internado em Nova Iorque. Os
meus irmãos prosseguiam nos estudos, sempre com muito bom
aproveitamento. Já vivíamos autonomamente. Quando fiz 18 anos,
matriculei-me como “voluntário” no Liceu de Aveiro e apresentei-me a
exames do segundo e quinto anos duma vezada. Dispensei a tudo.
Manifestei, junto do Reitor, o meu desejo de fazer, logo no ano
seguinte, os exames do sétimo ano que me permitiriam a matrícula na
Faculdade de Direito de Coimbra. A lei não permitia que se fizesse o
terceiro ciclo sem decorrer um período de dois anos. Mas o Reitor
requereu ao Ministro da Educação e este veio a autorizar que eu
fizesse os exames conforme pretendia. Passei e de imediato
matriculei-me em Direito. A maior parte da malta da minha geração
entrou comigo na Faculdade. Não perdi tempo. A que viria a ser minha
mulher veio pedir-me para lhe dar explicações de Latim. Aleguei que
não me achava competente. Mas fui competente para lhe pedir namoro. E
aos 24 anos casava-me com a Claudette, que me deu os meus dois filhos
em anos sucessivos. Um dia, o médico pediatra que cuidava das minhas
crianças chamou-me ao seu consultório. Um grupo de gente boa estava a
pensar constituir um Clube LIONS na cidade de Aveiro. E sem saber
como, dei comigo eleito seu primeiro presidente.
Também sem saber como, a
minha Claudette converteu-se, ela também, na matriarca
do meu lar.
Por força do meu devir nas
PESCAS, de ajudante de guarda-livros, passei a guarda-livros; um dia,
vi-me publicado no Diário do Governo ou da República (já não me lembro
bem…) no primeiro role de técnicos de contas do nosso País.
Depois, desempenhei
funções de delegado da gerência duma empresa tecnicamente falida e que
recuperei; fui eleito para tudo o que era cargo directivo no sector
das pescas; e vi-me judeu errante por esse mundo fora na defesa dos
interesses da empresa e do País. E a Claudette, por força das minhas
constantes ausências de Portugal, foi pai e mãe como me disse há pouco
tempo o meu filho António. E acrescento eu: esposa que comprava as
sebentas do curso de Direito que não cheguei a acabar, lendo-as, para
me facilitar a vida, sublinhando as partes mais importantes do seu
conteúdo. Com esta tarefa licenciou-se ela em Direito por mim, e, sem
nunca abandonar o ensino, exerceu advocacia até ao seu passamento.
Quando, depois da sua morte, comecei a arrumar os seus papéis,
encontrei três diplomas de licenciaturas: em Ciências da Educação; em
Gestão de Artes e em Direito.
Quando lhe desenhei a
caricatura para o seu livro de curso, dei por mim a disfarçar-me no
seu cabelo, estou lá! E os filhos estão pendentes de um porta chaves
onde se lê: “em ti tudo se pendura MÃE”. É o desenho que aqui junto…
Já terão percebido a
enorme influência que a MULHER, O PODER MATRIARCAL, exerceu sempre na
minha vida. Da sensatez da minha avó Joaninha que moldou a minha fase
de menino; da enorme força de vontade da minha mãe, que se desdobrou
em trabalho de noites muito curtas para fazer do nada a formação
intelectual dos seus três filhos; do mérito excepcional da Companheira
que Deus me deu e que soube ser, para além de Companheira, pai e mãe
dos nossos dois filhos.
Quando
olho para o meu Clube de Santa Joana Princesa, verifico até que ponto
o exemplo pode dar frutos de renovação. Com efeito, a presente
Vice-Governadora do nosso Distrito 115 C/N é a Companheira Rosário
Soares, que foi aluna da PDG Claudette, minha saudosa mulher. E o
rejuvenescimento do meu Clube, em grande parte, fica-se a dever a
antigas alunas suas, novas e empenhadas companheiras, sempre
disponíveis para ocupar o lugar da frente no SERVIÇO AO PRÓXIMO.
Gaspar Albino - 09 de Janeiro de 2016
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