A
meio dessa tarde, deram entrada, no Serviço de Urgências, com
poucos minutos de intervalo, três pacientes vindos do mesmo
prédio, mas que, curiosamente, não provinham todos do mesmo
piso.
O
primeiro era um homem com 65 anos, 1,92 m e 96 kg, tendo-lhe
sido diagnosticado um AVC. Após ter estado internado 24 horas,
nos Serviços de Cardiologia, onde se verificou que, felizmente,
o acidente vascular tinha sido de reduzida gravidade, contou, ao
cardiologista de serviço, quais as circunstâncias que, no seu
entender, lhe teriam provocado esse problema cerebral, relato
esse de que manterei o discurso directo, porquanto entendo que é
o mais interessante.
1.
«Senhor doutor, fui casado 35 anos, tendo a minha mulher
falecido, vítima de doença prolongada. Há dois anos e meio,
contraí novo matrimónio, sendo a minha actual esposa mais nova
22 anos do que eu. Este casamento foi feito contra a vontade da
minha única filha, enfermeira na Alemanha, que se
incompatibilizou comigo, de tal maneira, que nunca mais a vi.
Toda a minha vida estive ligado a actividades desportivas.
Quando era novo, fui lançador de peso e disco e, agora, que sou
dono de um ginásio, mantenho uma actividade física compatível
com as minhas capacidades, apesar das arritmias que me foram
detectadas, há pouco mais de um ano.
Ponde de parte esse desentendimento com a minha filha, posso
dizer-lhe que a vida, nos últimos anos, tinha vindo a decorrer
sem problemas de maior. Mas com o aparecimento da maldita
pandemia, a situação começou a complicar-se, porquanto o ginásio
é a minha única fonte de rendimento e fui obrigado, como o
senhor doutor sabe, a encerrá-lo. No entanto, a maior parte dos
encargos, renda, salários, etc., e, bem assim, as despesas
domésticas, vivo num T2 alugado e a minha mulher não trabalha,
mantiveram-se, e eu comecei a ver as poupanças a esgotarem-se
rapidamente.
Estas preocupações de ordem material acabaram por me acarretar
consequências de ordem psíquica, que me obrigaram a tomar
antidepressivos, cujos efeitos secundários, como o é do
conhecimento do senhor doutor, se fizeram sentir, negativamente,
a curto prazo, no meu desempenho sexual.
Acontece que, há uns dois meses, principiei a desconfiar da
fidelidade da minha esposa e nas, últimas semanas, começou-me a
parecer que, nas conversas, os amigos me queriam avisar de
alguma coisa, mas, ou por pena ou medo de mim, se calavam.
Todavia, pensei que essas ideias poderiam ser consequências do
meu estado depressivo, tendo resolvido ir ao meu psiquiatra para
ter uma conversa sobre esse assunto que me obcecava e estava a
aumentar o meu grau de ansiedade, a tal ponto que já não havia
anseolíticos que me acalmassem.
A
consulta, de que dei conhecimento à minha mulher, deveria ter
sido ontem à tarde. Mas, quando estava no consultório, recebi,
no telemóvel, a seguinte mensagem não identificada: “Ó
calmeirão, tens concorrente lá em casa”.
Disse à empregada que me tinham chamado por causa de um assunto
urgente, que depois telefonaria para marcar nova consulta e
dirigi-me o mais rapidamente possível para casa. O elevador
estava em manutenção e eu vivo num 3.º andar, pelo que tive que
subir pelas escadas. Quando tentei abrir a porta, verifiquei que
estava trancada com o cadeado de segurança. Tentei meter a mão
para soltar a corrente, mas o espaço era pouco e a minha
manápula não cabia. Entretanto, a cadela da minha mulher tinha
chegado, a ladrar, dando sinal de alarme, mas esses ladridos
alegraram-se, quando me reconheceu. De repente, comecei a ouvir
água a correr na casa de banho e pensei: Então esta gaja, em
vez de me vir abrir a porta, vai tomar banho?! Espera aí, que eu
já te vou lavar as costas! E decidi arrombar a porta que, ao
segundo encontrão, foi dentro.
Entrei e, no átrio, muni-me com a bengala mais pesada da minha
colecção, exposta no bengaleiro, ó senhor doutor, não sabia com
quem me iria haver, e fui direito ao quarto, onde encontrei a
minha mulher agachada a um canto do chuveiro. O seu olhar não
mostrava só terror... era uma confissão de culpa. Não tive tempo
de lhe dizer nada, porque ouvi barulho vindo da cozinha, nas
traseiras do apartamento.
Corri para lá e vi, na janela da marquise, um fulano em tronco
nu, agarrado ao varão metálico. Gritei-lhe: Apanhei-te,
estupor! – Ele respondeu: O senhor está enganado. –
Berrei-lhe: Eu bem sei que me tens andado a enganar e muito,
mas não o tornas a fazer que eu vou dar-te cabo do canastro. –
O fulano, cheio de medo, deu uma desculpa sem pés nem
cabeça: Eu só estou aqui por causa do meu pássaro. – Ai
vieste à procura de um pássaro, então vais-te embora a voar.
Eu estava de cabeça perdida e só pensava em que aquele gajo era
a razão de eu ter perdido o respeito dos meus amigos. Senhor
doutor, passou-me pela cabeça matá-lo. Comecei a dar-lhe com a
bengala nas mãos, até que ele, aos gritos, se soltou, e caiu.
Olhei e vi que a cobertura em tela da construção clandestina
existente no pátio o tinha amparado, pelo que ele tinha
resistido à queda e estava caído junto à parede. Olhei à minha
volta e vi, no canto direito da marquise, o armário metálico,
onde se guardam as vassouras e materiais de limpeza e resolvi
atirar-lhe com ele. Gritei-lhe: Ainda não morreste, sacana!
Espera aí que eu já te avio. Empurrei o armário, que é um
pouco mais pequeno do que eu e tem rodas, encostei-o ao varão da
janela, senti que me custava levantá-lo, e disse cá para mim:
Então, ó calmeirão, já não podes com a porcaria de um
armariozeco de vassouras. Peguei-lhe por baixo, fiz um
último esforço, sentindo que, cada vez, tinha menos força, ainda
me apercebi que o armário caiu, mas desmaiei e só vim a mim no
hospital, pelo que não sei o que se passou.
Senhor doutor, vou terminar, pedindo-lhe duas coisas. A primeira
é que tome providências para que a minha mulher não me possa vir
visitar. A segunda é se pode falar com alguém que lhe diga que
será conveniente que não esteja em casa, quando eu para lá
voltar, pois nunca lhe perdoarei, nem poderei esquecer que me
fez perder a consideração dos meus amigos e, quiçá, me tornou
alvo de chacota pública.»
2.
O
segundo paciente era um homem de 24 anos, 1,75m e 72kg, com uma
fractura tíbia femoral esquerda, que foi encaminhado para os
Serviços de Ortopedia, tendo contado o seguinte ao médico
ortopedista que o tratou:
«Sou professor de Educação Física e fui colocado numa das
Escolas Secundárias locais. Aluguei um T0 e cheguei hoje para me
instalar. Quando andava, em calções e sapatilhas, a arrumar as
minhas roupas, livros e demais pertences, reparei que a minha
caturra fêmea domesticada, que foi a prenda de anos que a minha
namorada me deu no meu vigésimo segundo aniversário, tinha
fugido da gaiola. Tentei apanhá-la, mas ela saiu a voar pela
janela da varanda e vi que estava pousada na janela da marquise
vizinha. Gosto muito do pássaro. Em casa dos meus pais, onde
tenho vivido, ela, às vezes, até anda fora da gaiola e gosta de
pousar no meu ombro, mas, ali, era um ambiente estranho e tive
medo de não a poder recuperar.
Avaliei a situação. A caturra estava pousada no varão superior
da marquise contígua, que mais não é do que o aproveitamento de
uma varanda igual à minha, com as primitivas guardas tubulares
metálicas destacadas da estrutura da marquise. Pensei que me
seria fácil aproximar-me da ave, porque as varandas estavam
muito próximas, cerca de um metro, e eu, que não tenho vertigens
e estou em boa forma física, poderia agarrar-me e apoiar-me, com
as mãos e com os pés, em dois dos três varões da minha varanda e
passar para a outra. Para transportar a caturra, lembrei-me de
levar uma pequena mochila.
Assim fiz, aproximei-me do pássaro e, quando estava quase a
agarrá-lo, apareceu um brutamontes aos berros, talvez convencido
que eu estava a assaltar a casa. A caturra fugiu, eu tentei
justificar a minha presença, o energúmeno, sempre aos berros e a
dizer que me queria matar, começou a bater-me com um cacete nas
mãos e eu tive que me soltar. Tinha reparado, quando cheguei,
que, naquele rés-do-chão, não se via o pátio, porque havia uma
cobertura que me pareceu ser em tela. Assim, quando soube que a
queda era inevitável, procurei cair em pé, tentando utilizar a
técnica de salto de trampolim que pratiquei, quando era
estudante. Quando bati na cobertura, que amorteceu a queda, o pé
esquerdo acertou na estrutura metálica. Senti uma dor tremenda
na perna e aquilo esbarrondou-se completamente. Fiquei caído no
chão, enrolado na tela, só com a cabeça e os braços de fora.
Quando olhei para cima, vi que aquele bandido, sempre a gritar
ameaças de morte, se preparava para me atirar com um armário
metálico. Consegui rolar com auxílio dos braços. O móvel caiu
junto à parede, depois tombou para cima de mim, mas não me
aleijou. Entretanto, apareceu a dona do quiosque, proprietária
do local onde eu estava, a qual chamou o 112.
Senhor doutor, a primeira coisa que vou fazer é processar esse
tarado, não só responsabilizando-o pelos ferimentos que me
causou, mas também, e principalmente, por tentativa de
assassinato.»
3. Os socorristas transportaram também um homem de 21
anos, 1,70 m e 68 kg, que só tinha pequenas contusões. Foi
encontrado, desmaiado e nu, dentro de um armário metálico.
Este indivíduo recusou prestar declarações.
24 de Julho de 2022
Diamantino Dias
Nota
- O Autor não escreve segundo o Acordo Ortográfico em vigor.
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