A leitura do programa deste
ano do “Festival dos Canais” sugeriu-me escrever um artigo
sobre a antiga “Festa da Ria”, que se realizava,
integralmente, nos canais lagunares, desde a Torreira até a
Aveiro, e se assumia como um festival.
Não é minha intenção
estabelecer comparações entre um evento constituído,
essencialmente, por várias artes performativas, dirigido à
população local, e um acontecimento que pretendia atrair
pessoas a Aveiro e proporcionar-lhes, bem assim como à
população citadina, a oportunidade de assistirem a
espectáculos de grande qualidade etnográfica. O que eu
desejo é, unicamente, lembrar a “Festa da Ria” aos que a
viveram e dá-la a conhecer, não só aos mais novos, mas também
a quem, um dia, venha a pesquisar documentos para fazer a
pequena história da minha terra.
Festa da Ria
– À tarde, no Canal das Pirâmides.
Mas já que me refiro ao
“Festival dos Canais”, não deixarei de fazer um pequeníssimo
comentário e só no que respeita ao título. Parece-me que a
forcada(1) não se ajusta com a tamanca(2), ou seja, para
quem não está dentro da nomenclatura moliceira, que a “bota
não bate com a perdigota”. Eu sei que a actual situação
covidiana condiciona a organização de espectáculos, mas
parece-me haver pouca água nos Canais deste Festival.
Voltando ao assunto
principal. Como eu já escrevi, várias vezes, quando entrei
para o quadro de pessoal da Comissão Municipal de Turismo,
já se realizava, há alguns anos, em Aveiro, no dia 25 de
Março, data da abertura da Feira de Março, um “Concurso dos
Painéis dos Barcos Moliceiros”.
Esse certame revestia-se de
inegável interesse etnográfico, pois desempenhava um
importante papel na conservação dos painéis dos moliceiros,
que constituíam um importante cartaz turístico de toda a
região da Ria. Mas o evento, em si, nem trazia ninguém a
Aveiro – a não ser os familiares e amigos dos participantes,
cujo poder de compra era reduzidíssimo –, nem servia para
entreter, durante um período de tempo razoável, as pessoas
que passavam perto do canal, a maior parte delas
dirigindo-se à citada Feira, porque se tornava monótono, a
não ser para meia dúzia de aficionados ver desfilar barcos,
durante horas. Chegaram a ser setenta e dois, num ano em
que ainda havia mais de quinhentos moliceiros no activo.
No entanto, eu já considerava
que as embarcações lagunares, e não só os moliceiros,
possuíam enormes potencialidades para chamar muita
gente a Aveiro e também para se assumirem como
personagens principais de espectáculos a que milhares de
pessoas assistissem, durante horas, sem arredar pé e de
forma interessada.
Depois de muito pensar sobre
a maneira de poder vir a concretizar-se esta hipótese,
cheguei à conclusão que, sendo a competição dinâmica uma
das coisas que mais agrada ao grande público, se se
organizassem corridas entre os vários tipos de embarcações
que trabalhavam na Ria, poder-se-ia realizar um espectáculo
que não só traria pessoas a Aveiro, mas também serviria
de entretenimento para os que já cá se encontrassem. Ou
seja, em termos de Turismo, seria um “dois em um”, na medida
em que atraía e
animava. Seguindo este princípio, imaginei, propus e vim a
organizar, durante alguns anos, na qualidade de funcionário
dos Serviços de Turismo da Câmara, a “FESTA DA RIA”, cujo
programa, no seu auge, era o seguinte.
No sábado à tarde, uma
“Regata de Moliceiros”, com concentração e partida da
Torreira e chegada a Aveiro, a meio da tarde. Esta Regata
condicionava a data da Festa – nuns anos, era em Julho e
noutros, em Agosto –, porquanto dependia de uma maré que
permitisse que, até S. Jacinto, os barcos aproveitassem a
vazante, chegando aí, aproximadamente, no virar da maré e
vindo com a enchente para Aveiro. E isto, porque não se
podia saber, com grande antecedência, qual seria o vento na
data pretendida. E contra ventos e marés, os barcos à vela não
conseguem chegar a Aveiro.
A minha ideia, quando
apresentei a proposta para realização dessa Regata, foi
proporcionar aos fotógrafos e cineastas, amadores e
profissionais, 9 milhas náuticas, para os que utilizassem
embarcações, ou 12 quilómetros, dos quais 8, pela estrada
que liga a Torreira a S. Jacinto e 4, pela antiga estrada da
Gafanha, para quem acompanhasse a corrida pela margem. Na
água ou por terra, disporiam de muito tempo e inúmeras
oportunidades para captarem excelentes imagens, que
constituiriam óptimos elementos publicitários, susceptíveis
de despertar a vontade de nos visitar a quem os visse.
No sábado à noite, um
“Festival Internacional de Folclore”, num estrado montado
sobre uma barcaça, de braço dado com dois moliceiros,
varados no Canal Central, defronte do Clube dos Galitos. As
ruas, que ladeiam o Canal, eram encerradas ao trânsito
automóvel para permitir a instalação do numerosíssimo
público, que enchia as bancadas montadas para o efeito e se
apinhava nos cais, no varandim da Ponte Praça e na esplanada
do edifício “Fernando Távora”, havendo, inclusive, pessoas
que assistiam, em pequenos barcos, junto ao palco.
Participaram neste Festival grupos nacionais e
internacionais de grande valia, sendo de referir, neste
último caso, os provenientes de muitos países do Leste. A
qualidade deste evento e a originalidade de se efectuar
sobre a água levaram a que a Rádio Televisão Portuguesa o
transmitisse directamente, em 1981.
No domingo de manhã, o júri
do “Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros”, para o qual
eram previamente convidadas pessoas conhecedoras da matéria
– e do qual eu fiz parte, até ter deixado de organizar a
“Festa da Ria”, em 1986 –, visitava as embarcações,
atracadas no Canal Central, e tomava notas e decisões.
À tarde, no Canal das Pirâmides, realizavam-se as seguintes
corridas, recebendo todos os concorrentes prémios de
participação, para além dos referentes às classificações:
– Caçadeiras –
Pequenas embarcações com 1 remador.
– Bateiras à pá
(Mulheres) – 8 remadoras que utilizavam, em vez de remos,
pás usadas pelos marnotos, nas marinhas, e 1 timoneiro.
– Bateiras à pá
(Homens) – O mesmo número de tripulantes.
– Bateiras do chinchorro
– Dois remadores a cada um dos dois remos.
– Mercantéis à sirga –
1 homem rebocando o barco, utilizando um cabo, chamado
sirga, correndo em cima do cais, e outro homem ao leme.
– Mercantéis à vara –
2 homens, manejando varas de cerca de 4 m.
– Moliceiros à sirga.
– Moliceiros à vara.
– Concurso dos Painéis dos
Barcos Moliceiros – Entrega de prémios aos cinco
primeiros classificados.
No final, os barcos
moliceiros partiam para os seus cais de origem, desfilando
perante os milhares de pessoas que tinham assistido ao
espectáculo, durante, aproximadamente, duas horas, em
bancadas situadas junto à meta, no Rossio, ou nos cais dos
dois lados do Canal das Pirâmides.
Termino dizendo que, se hoje
alguma entidade pretendesse tornar a realizar esta “Festa da
Ria”, ainda haveria embarcações de todas as categorias,
para a tornar possível. E creio que voltaria a ser um êxito,
nas suas duas vertentes: atracção e animação.
14 de Julho de 2020
Diamantino Dias
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(1) e
(2)
– Peças que se
encaixavam no bordo do barco e que, em conjunto, mantinham
os ancinhos em posição de arrasto. |