Quando vi, na TV, pessoas a
quem eram dadas cadeiras plásticas como recordação do
recinto desportivo em epígrafe, ocorreu-me consultar o meu
computador neuronal, para ver o que lá estava arquivado.
Comecei por ter uma surpresa, porque naquele nome não havia
nada. A razão, porém, era bem simples: é que para mim, e
para muitas pessoas do meu tempo, o Estádio chamava-se e
continua a chamar-se “Campo de Futebol” ou “Campo do Beira
Mar”. Assim, é neste Ficheiro que tenho guardados os
respectivos documentos, dos quais, hoje, vou tornar públicos
alguns.
Curiosamente, o primeiro que
me apareceu, e que estou agora a visualizar, refere-se à
inauguração de um pequeno monumento a Mário Duarte, erigido
no topo do grande canteiro, plantado diante da entrada
principal do recinto. Não sei se esta cerimónia não terá
estado integrada no baptismo do Estádio com o nome do
ilustre e eclético desportista, avô do poeta Manuel Alegre.
Mais estranho ainda, é que,
tendo eu assistido a inúmeras e variadas manifestações no
Mário Duarte – Juramentos de Bandeira, Concertos Musicais,
um jogo de Basquetebol entre o Harlem Globetrotters e uma
equipa chinesa, um jogo de Andebol de 7 entre uma equipa
alemã e a Selecção de Aveiro e um jogo de Hóquei em Campo,
creio que entre o Leixões e o Futebol Benfica, para não
falar das milhares de horas de Futebol –, o acontecimento
passado naquele recinto, que ficou mais indelevelmente
gravado na minha memória, nada tenha a ver com isso, sendo,
até, bastante macabro, como a seguir se verá. Em garoto,
andava a brincar aos “Polícias e Ladrões”, perto dos antigos
balneários, que ficavam junto ao Parque, numa zona bastante
arborizada. Vislumbrei um vulto, com a cabeça inclinada e
saquei a minha pistola de barro preto, comprada na Feira de
Março, mandando-o pôr as mãos ao ar; como ele não obedeceu,
fui-me aproximando, cautelosamente, e repeti a ordem; quando
cheguei perto, vi que se tratava de um homem novo que se
tinha enforcado. A corda estava presa na forcada dum ramo
baixo e, como o tronco da árvore era fino e flexível, os pés
rasavam o chão. Gritei pelos meus colegas e chamámos o
senhor Adriano, o Guarda do Parque, que avisou a Polícia.
Nos anos sessenta, quando o Turismo estava instalado no n.º
95 da Avenida Dr. Lourenço Peixinho, vi outro enforcado, mas
isso foi outra história.
Quando, na década de
quarenta, foi proibido jogar futebol na rua, a rapaziada das
“5 Bicas” continuou a utilizar, à sorrelfa, os seus campos
privativos – Largo, Rua do Quartel e Travessa das Olarias –
e, quando alguém pressentia a aproximação de um agente da
autoridade, dava o grito de “Olha o Cuco!”; quem estivesse
de posse da trapeira punha-a no bolso e cada um desaparecia
para o seu lado. Mas, quando começámos a ser mais velhos, ou
para jogos internacionais contra o Alboi, São Domingos ou
Pombinhas, passámos a utilizar, durante o dia, um terreno
existente por trás das primitivas bancadas de madeira, no
Campo do Beira Mar.
No que respeita ao campo
propriamente dito, que teve duas orientações topográficas,
joguei lá dois ou três jogos inter-turmas do Liceu. Para
além da autorização da Câmara Municipal, proprietária das
instalações, tínhamos que contar com a colaboração do Carlos
Mosca (Carlos Martins Arroja), empregado do Clube que
tratava do campo de terra batida e dormia num pré-fabricado,
junto da entrada principal.
Como elemento da Milícia –
Instituição paramilitar que se seguia à Mocidade Portuguesa
e em cujas actividades eram obrigados a participar todos os
alunos do 3º Ciclo do Liceu, às quartas-feiras e sábados, à
tarde –, no local, onde em garoto, tinha jogado à bola, fiz
tiro ao alvo com a “Menelik” (com a “Mauser” disparei nas
Carreiras de Tiro Militares), e, em aproximadamente um terço
do perímetro exterior do recinto, percorri o Campo de
Obstáculos, lá montado, para instrução dos militares do
Regimento de Infantaria 10. Lembro-me da Trave de
Equilíbrio, da Vala, do Muro, da Paliçada, do Arame Farpado
e do Galho.
Tínhamos, também, de prestar
várias provas atléticas: saltos, lançamentos e corridas.
Havia uma Caixa de Saltos e as corridas eram efectuadas no
campo.
Como utente, recordo-me de,
durante uns meses, ter treinado o lançamento de dardo, com o
então colega do liceu Carlos Candal, que, hoje, tem nome de
avenida, utilizando um tubo de ferro galvanizado, com uma
ponteira adaptada e um cordel enrolado, a servir de pega.
Nunca tive muita força, mas, como os meus braços são
compridos, atirava relativamente longe; tive de desistir,
porque, não fazendo uma preparação conveniente, arranjei uma
tendinite. A pista era o predito terreno atrás da bancada.
Por volta de 1953, quando a
ampliação do Hospital fez desaparecer o campo de
basquetebol, utilizado pelo Clube dos Galitos e pelo Recreio
Artístico, foi construído um outro atrás da baliza do lado
do Parque (ainda não havia Peão em rampa), onde eu treinei e
joguei, quando era júnior do Galitos, até se passar para o
saudoso rinque, junto da avenida Artur Ravara.
No que respeita ao Futebol,
assisti a inúmeros jogos. Desde garoto, pedindo, às pessoas,
para me levarem com elas, até ser o sócio de bancada n.º 1
538. O jogador aveirense mais antigo do Beira Mar, que me
lembro de ver jogar, foi o Maximiano, que veio a ter uma
serralharia no Rossio e era especialista em abrir fechaduras
de cofres. No que respeita a estrangeiros, foi o Petrak.
Falarei só do último jogo a que assisti. Estava em casa. Era
domingo, à tarde. Nem me lembrava que havia futebol. Ouvi
barulho no campo e resolvi ir ver. Não fui para o sítio
habitual. O adversário era uma equipa totalmente equipada de
preto, com o nome de um refrigerante no peito. Não vi marcar
golos. O Marcador não tinha nenhum número, nem letras. No
final, quando vinha na avenida das Tílias, um miúdo
perguntou-me pelo resultado e eu respondi: “Zero a zero”. De
imediato, fui corrigido por por alguém, dizendo que o Beira
Mar tinha ganho por 2 a 0. Provavelmente, teriam sido os
aplausos referentes a um desses golos que eu teria ouvido em
minha casa. Aproveitei a oportunidade para perguntar com
quem tinha jogado o Beira Mar. Tinha sido o Académico de
Viseu. Fui para casa a pensar no assunto. Era sócio de
bancada; nem sempre ia ao futebol; às vezes era Dia do Clube
e tinha de pagar; não ligava muito ao futebol, pois eram o
andebol e o basquetebol os meus desportos preferidos. Tomei
uma decisão e quando o senhor Alberto, Contínuo e Cobrador
do Clube, apareceu para cobrar a cota, disse-lhe para
participar à Direcção que eu queria deixar de ser sócio do
Futebol e passaria a ser unicamente sócio do Clube. Passados
uns dias, o senhor Alberto apareceu a dizer que não existia
essa espécie de associados no Beira Mar. Respondi-lhe que
deixaria de ser sócio. Ele tentou demover-me, dizendo que eu
já era sócio há muitos anos e que até tinha sido treinador
de Andebol do Clube, durante dez anos. Não voltei atrás com
a minha decisão. A partir de Dezembro de 1983, nunca mais
assisti, pessoalmente, a nenhum jogo de futebol em Portugal,
a não ser a dois, integrados num Torneio Internacional de
Juniores, patrocinado pela Região de Turismo da Rota da Luz.
Vou terminar este arrazoado,
falando de duas coisas inusitadas de que poucos se
recordarão e que me vieram inesperadamente à ideia. O
“Casino” que funcionou no Peão, ainda de terra batida, do
lado sul, e de algo que acontecia, na parte arborizada,
junto do Parque e na zona relvada, perto do portão do lado
do Hospital.
No supracitado Peão,
estiveram depositados, durante algum tempo, uns grandes
blocos de pedra branca que eram usados, o maior, como mesa e
os outros, como assentos, pela rapaziada que ia para lá
jogar à batota: sete e meio, lerpa e montinho.
A segunda predita actividade
era a prostituição, praticada, especialmente no Verão, entre
outras, pelas vendedeiras de camarinhas, que vinham de uma
praia mais a sul, e que, assim, tentavam ganhar,
literalmente, mais uns tostões, porquanto era essa a moeda
utilizada, há setenta anos, quando o serviço era efectuado
ao ar livre.
As camarinhas, na altura, e
segundo constava de uma bonita canção de uma Revista, levada
à cena pelo Clube dos Galitos, vendiam-se “a três (medidas)
um tostão, / Oh!, quantas saudades minhas, / Oh!, quanta
recordação!”
Quem me diria que num texto
de memórias com este título, eu quase o começaria escrevendo
sobre enforcamentos e o acabaria abordando a mais antiga
profissão, com camarinhas à mistura.
A minha memória prega-me cada
partida!
30 de Junho de 2020
Diamantino Dias |