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Artigo de ALBERTO
PIMENTA |
O Teatro grego nasceu
de uma devoção, o Teatro medieval renasceu por uma devoção e o Teatro de
hoje surgiu por devoção e por anti-devoção — já se vê que várias são as
devoções do homem e nem todas o conduzem a um mesmo resultado (estático
ou dinâmico), porque nem todas procedem de uma mesma atitude espiritual.
Mas, qualquer que seja, é essa atitude espiritual de devoção a única que
conduz a um resultado-base de criação artística. Teatro-arte é,
portanto, o primeiro Teatro grego, é o primeiro Teatro medieval e é o
Teatro de hoje, todos diversos pela nascença e pelos resultados, mas
todos acrescidos do denominador comum — Arte. Entre estas três fases de Teatro-arte há intervalos vazios e intervalos preenchidos por um Teatro
técnica aparentemente em evolução, e aparentemente porque as evoluções
se lhe apontam e restringem ao segundo termo — técnica, e este, como
substituto do termo — arte, falseia o que há de missão
independente no Teatro. |
Quer dizer: as primeiras e equilibradas criações
de um génio em devoção ou de uma grande devoção genial passam a
reconstruir-se e a repetir-se depois de privadas desse impulso-mola
humana para o super-humano e perdem o equilíbrio interior de realização
que esse impulso lhes transmite. O Teatro romano e o Teatro medieval
tardio, depois o Teatro do Renascimento, o Teatro romântico e o Teatro
moderno (desde o Realismo até hoje) são fases técnicas ou evoluções
técnicas de marcação aplicadas a um texto literário apropriado (drama).
É no momento em que o texto açambarca cena e personagens e constrói por
si uma acção-escrita com valor independente que o Teatro passa a ser
técnica aplicada ou simples valorização visual e espectacular da
acção-escrita, O Teatro tinha começado por ser acção-vivida e, porque
vivida, feita de ritmo, de cor, de música e de harmonia falada — e a
história da preponderância deste último elemento, levada até à
independência, é a história de um compromisso selado com o espectador
(que sempre pretendeu entender o texto e poucas vezes a arte...), e
determina um desleixo do Teatro na sua qualidade de arte independente.
O Teatro de Ésquilo é
ainda uma arte de equilíbrio: equilíbrio entre o ritmo, a música e a
dança (tempo da acção) e a íntima determinação psicológica dos
personagens (acção-ideia). Estes acabam como títeres pela mão do
Destino, mas não o são nunca pela mão do autor — Electra interroga o
coro e este impõe-se-lhe em movimento-força e em intenção; Orestes é o
resultado infeliz do que os oráculos haviam profetizado ou exigido: o
conflito estabelece-se entre o homem e o que está para além do seu
círculo, o super-humano, e o desencadear da luta é de certa maneira
governado por um coro-escultura em movimento. Esse coro, guiado
exteriormente pela música e dotado da força quase super-humana das
massas em harmonia, é o elemento-arte que melhor caracteriza a acção
nesse Teatro. Em «Os Persas», a cena da invocação do espírito do rei
Dario vale, não como criação literária de pormenor, mas como
transposição e recriação teatral de uma cena viva composta de ritmo, de
som e de sombra, suficiente para definir uma certa mentalidade em face
de um certo problema.
Mas, pouco depois de
Ésquilo, já Eurípedes prepara o longínquo compromisso com o espectador,
ao humanizar e reduzir o coturno dos seus heróis, dando ao texto o lugar
predominante no esquema total da cena. Como é diferente da dos heróis de
Ésquilo e humana acção-apaixonada de Medeia a encher o palco com o seu
caso, a esmagar com as suas falas a escultura recortada do coro! Do
conflito com as forças transcendentes e da imediata tentativa de
libertação e ascensão humana pouco fica; tudo se passa em um plano
constante, alto e digno, é certo, mas quase literário, que mais tarde
haverá de ser o plano de intriga doméstica. Assim, desse primeiro
compromisso é fácil o salto para o Teatro-apresentação de um texto e de
um caso, e deste para o Teatro de intriga e para o Teatro de tipos;
e a estilização máxima do tipo é o títere, o D. Cristobal, o
Hans Wurst ou o D. Tancredo.
Ora a preponderância
do texto seria sustentável em Teatro, e é-o, quando aquele é servido por
altas qualidades de vigor e originalidade — de resto, o que é o Teatro
espanhol de 500 e o Teatro elizabethiano senão uma soma de vigor e, por
vezes, de génio ao serviço de um género através de um texto? Mas os
génios, ao contrário dos temas, não se reproduzem, e a predominância e
valorização do texto (drama) acaba por um cómodo descuido do autor (com
a cumplicidade do espectador). O Teatro romano deixara, quer na
tragédia, quer na comédia, os tipos que haveriam de subsistir, apegados
como vermes, em certa tradição medieval e através do Teatro do
Renascimento em quase tudo o que se lhe seguiu.
Depois dos gregos, só
os primeiros e anónimos autores medievais tinham conseguido reerguer /página
19/ o edifício do Teatro em moldes de arte independente — a cena
do sacrifício de Abraão, prenhe do alto e eterno conflito entre o humano
e o super-humano, é Teatro pela essência, e o magnífico quadro de Andrea
deI Sarto confirma que também o é pela forma, através do movimento das
suas figuras. Esse Teatro de mistérios e moralidades não nasceu
só para o texto (porque a sua missão foi precisamente acrescentar-lhe
vida e movimento), nem teve uma técnica, porque se Criou sem
compromissos, filho da devoção e seu ramo lateral. Este movimento-vida
foi arte independente, forte pela beleza da expressão e pelo poder do
tema. As moralidades, personificando os conceitos de valor e
certas categorias teológicas, animando o abstracto de uma realidade
humana e concreta, recriaram, por processo oposto ao dos gregos, um
Teatro puro, do mais alto e mais verdadeiro em expressão e em essência,
Mais tarde, a
desvalorização do texto é também aparentemente realizada pela
Comedia delI’arte, mas esta só prescinde do texto escrito, porque lhe
decorou os moldes, e as glosas que lhe introduz são falas de convenção
entre os seus consumados tipos — entretanto, a lei que a regeu
revelou-se válida, porque conseguiu, dentro do Teatro de tipos,
um modelo de arte nova, directa, composta de elementos líricos e humanos
muito simples, hoje impossíveis de conjugar.
Mas o espectador,
cioso de compromisso, continuaria a reclamar as equações enunciadas,
desenvolvidas e solucionadas; o compromisso tendia igualmente a
manter-lhe a ilusão e, para isso, o caminho mais fácil e mais seguro era
manter a intriga e dar-lhe as fábulas revelhas dentro de roupas novas,
ou seja, com novas técnicas aplicadas, e nem o Teatro romântico, nem o
realista ou o expressionista têm hoje a arcar com a responsabilidade
expressa de ter rompido com o pacto. (Passemos entretanto por cima de
algumas criações e de alguns casos — nomeadamente o Fausto — que
levariam outras tantas páginas).
Ora no Teatro grego e
no primitivo Teatro medieval o espectador começou por ser o devoto e ele
é que tinha por compromisso subir ao que o Teatro-arte lhe encantava,
sem muletas de texto e de técnica. Por isso, novo Teatro de devoção
haveria de surgir.
Rainer Maria Rilke,
que não foi homem de Teatro, mas homem de desencantação psicológica, é
dos primeiros a desmascarar a ilusão do Teatro de intriga, onde o
terceiro tem, desde começo, o lugar reservado e o plano estabelecido
para destruir o equilíbrio dos dois primeiros. A par dessa atitude
crítica de anti-solução nasce, pela mesma época, a revolta dos
encenadores: StanisIawsky, Appia, Copeau reagem para que o Teatro deixe
de ser uma técnica aplicada e passe a ser a arte independente que fora
de nascença: arte servida um pouco por todas as outras, mas fundamentada
essencialmente numa revisão dos valores estéticos aplicados. Mas é só
com Gordon Craig e Gaston Baty que se chega ao ponto de reencontro em
que autor e texto, por um lado, e actor e texto, pelo outro, se
transformam em meros elementos contributivos de um plano geral mais
complexo e de novo também mais equilibrado. Nasce a auto-devoção do
Teatro — este passa a assentar numa conjunção de realizações estéticas,
espiritualmente ideadas para si-arte completa, e não em si-desdobramento
aberto à compreensão imediata do espectador. O encenador toma o primeiro
lugar nesta edificação e o seu único cânone é a realização-liberta. O
seu arrojo de construção ultrapassa e, portanto, denuncia a falibilidade
do Teatro de intriga e a falibilidade do actor-intérprete desse género —
aspira-se a um texto novo, não para a Literatura mas para o Teatro, e a
um actor super-títere, elemento artístico — puro, quase plástico,
privado de convenções; aspira-se ao encontro com o super-humano,
elemento essencial e permanente em toda a criação artística.
O autor, pela nova
lanterna do Teatro e não pelos anti-dogmas da nova Literatura, sente a
necessidade de colaborar nesse Teatro independente, e não de escrever
para ele; sente que já só lhe cabe marcar o chão, porque ao encenador
cabe agora a construção do edifício segundo o seu estilo, onde a
estética aplicada toma o lugar da técnica aplicada, provocadora da
ilusão-compromisso. As primeiras tentativas nesse campo excedem-se e
Marinetti não passa de um construtor de cenas ou de momentos de Teatro,
ainda que momentos de excelso Teatro, e Pirandello apercebe-se do estado
das coisas e revela-o nas suas personagens... à procura de um autor.
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Mas Bertold Brecht é
o primeiro a saber em consciência qual o novo lugar do autor perante
a devoção recém-nascida, e é o construtor de um Teatro épico,
Teatro-arte original, com pilares construídos fora dos limites do
antigo elemento lírico construtivo. B. Brecht, através de um
contacto de expressão com os antigos, e não um contacto de essência,
cria um Teatro diferentemente verdadeiro, porque cenicamente
prescinde da ilusão-compromisso e intrinsecamente reanalisa os
conflitos. Em face da moderna estrutura, os mais altos conflitos são
os das sociedades, e esses é que lhe nascem. O espectador já não vai
aliar-se com o plano da intriga, mas tomar consciência da sua
responsabilidade de homem perante os problemas-em-arte postos por um
Teatro que de novo o transcende e o subjuga. Esse Teatro,
apresentado em equações directas, sem subterfúgios de ilusões, quase
em guerra, dá-lhe lugar a uma meditação nova sobre conflitos
internamente já resolvidos: em «A excepção e a regra» a condenação
de uma sociedade é dada pelo trágico abuso do seu poderio quase
super-humano sobre o elemento humano de uma outra sociedade, e o
desencadear da acção é feito sobre um espaço e um tempo largos
demais para o palco, numa exigência à colaboração do
espectador-homem devoto. |
JÚLIO POMAR — pintor, escultor,
ceramista e publicista dos mais notáveis da actual geração — não é
grande apenas quando cobre de magníficas pinturas murais cem metros
quadrados no Cinema Batalha; é ainda grande nos pequenos desenhos, como
o da presente gravura, em que o vigor do seu traço tão bem exprime a
grandeza do seu talento multiforme. |
Que este participe da
nova devoção e se levante pelo espírito ante os novos conflitos das
sociedades desencontradas. Este novo Teatro, desnudado e impiedoso por
todos os lados, é o reencontro, sem compromissos, de novos e mais
flagrantes conflitos. Depois dele, o autor já não pode fugir a servir o
Teatro — por isso Marcel Marceau se ultrapassa e se esgueira por uma
porta lateral pare o mimodrama, o Teatro puro, liberto de palavras, mas
essa é uma experiência demasiado afastada da solução que se requer, onde
a palavra tem o seu lugar necessário.
Entretanto, os
conflitos do homem novo têm raízes por explorar — é notório que assentam
em um interior mesquinho e tragicamente /página
21/ ridículo, dificilmente adaptável à construção da tragédia;
por esse lado, o castigo do homem-espectador está por realizar — é
lonesco que lhe pega pela aba e o sacode no palco público. No fundo de
todos os grandes conflitos, na base da devoção-caminho para a Arte e
para a ascensão, há os elementos mesquinhos do dia e da noite, os
recalcados insucessos e os dramas inapercebidos das horas tristemente
ridículas do homem; sacudi-los e expô-los seria um processo de
anti-devoção, (tal como as religiões qualificam a descida às causas),
mas foi precisamente por aí que lonesco começou. Na luta surda entre o
encenador em devoção e o público «ludibriado», Ionesco assume uma
atitude de prejuízo para os dois, criando um anti-Teatro pronto a
defraudar a devoção de um e a desmascarar a intriga do outro.
Pala primeira vez a
devoção dos encenadores resulta supérflua, porque o Teatro de Ionesco
não pretende desdobrar-se em consequências orientadas por uma construção
de cena.
Em «As Cadeiras»,
cada frase resulta em Teatro vivido para além da fala e da personagem, e
a luta dos dois velhos contra uma imaginária sociedade avassaladora é um
desafio à elaboração do espectador em luta contra uma real sociedade
avassaladora, sem outro contributo do lado do palco que não seja o
daqueles dois esquemas da humanidade.
Em a «Lição», a rede
tece-se à volta de cada um que a possa relembrar em si, até acabar por
envolver os grandes conceitos de valor da moderna estrutura social. No
fim, tudo se prolonga em uma nova anunciação, nem desfecho nem resultado
imediato, antes aceitação ou harmonia de sentimentos falhados.
Assim se realiza,
afinal, por uma nova devoção, o Anti-Teatro, Teatro aparentemente
negativo (e só aparentemente) e fase do eterno Teatro-Arte.
Alberto Pimenta
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