Antónia Rodrigues,
chamada também Antónia de Aveiro, não foi só uma notabilidade desta
terra. Foi, outrossim, uma celebridade deste país e fez a admiração de
nacionais e de estrangeiros.
Acerca da data do seu nascimento há diversas
opiniões, mas a mais seguida e a mais conforme às datas dos diversos
factos da sua vida afirma que ela nasceu em 31 de Março de 1580. Era
filha de Simão Rodrigues Mareares e de Leonor Dias, que viviam no bairro
piscatório, na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, da vila de
Aveiro. Seu pai dedicava-se à vida marítima e, ao que parece, fez
algumas viagens à Terra Nova, quando da barra de Aveiro saía anualmente
para aquelas paragens um grande número de embarcações com a finalidade
da pesca do bacalhau. A mãe tratava dos trabalhos domésticos, sempre
pesados e sempre complicados, porque era grande a sua prole.
Os trabalhos
marítimos, as doenças e não poucas contrariedades acabrunharam
demasiadamente Simão Rodrigues que, rodeado de filhos e de miséria, se
viu obrigado a mandar esta filha para Lisboa, onde haveria de viver com
uma irmã, cujo nome se ignora, mas que lá estava casada e em melhores
circunstâncias.
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Tinha então Antónia
Rodrigues cerca de doze anos. Os pais, com grande sentimento, lhe
disseram ser melhor que ela fosse para Lisboa. A filha ouviu resignada
aquela notícia, lamentando o ter de ausentar-se dos pais, mas desejosa
de ver outros lugares e de dar largas ao seu génio, que já então era
irrequieto.
Eles muito choraram a
ausência da filha e esta não chorou menos o ter de desapartar-se dos
autores de seus dias e das suas companheiras de inocentes brinquedos,
assim como se mostrou saudosa da terra, onde nascera.
Pouco depois de haver
chegado a Lisboa, manifestou um génio altivo e sempre impróprio da sua
idade e da sua humilde posição. Repugnavam-lhe os trabalhos domésticos e
recusava-se a executar os que eram próprios do seu sexo.
A irmã admoestava-a e
o cunhado, desgostoso com tal procedimento, repreendia-a com tanta
aspereza, que na sua habitação os ralhos eram constantes e as
contrariedades eram sucessivas. A irmã passou das admoestações às
ameaças e o cunhado não poucas vezes a espancava.
O procedimento
daqueles cônjuges não abateu o génio irascível de Antónia Rodrigues.
Ameaçaram-na de novamente a mandarem para Aveiro e isso mais lhe
irritava a exaltação do génio. Antónia fugia de casa com muita
frequência.
Procurada pelos seus
hospedeiros, raras vezes deixavam de a encontrar na praça da Ribeira,
olhando para os navios ancorados nas proximidades. Alongava os olhos
para o ocidente, conversava com os grumetes e quase sempre lhes
manifestava a mágoa de não ter nascido homem, para, com eles, seguir a
vida aventurosa dos mares e ver sempre novos horizontes. Os grumetes
sorriam-se e tomavam-na como louca ou como visionária. Quando podia,
alongava mais os seus passeios e ia até onde visse o bater das ondas do
Oceano e aí se ficava, como enlevada em êxtase, desejosa de sulcar
aquelas águas. Aquelas contínuas saídas concorriam para que os castigos
fossem mais frequentes e mais graves.
Antónia saiu um dia,
em que o tempo era sereno e formoso. Sentada abaixo do Tejo, meditou,
lamentando a sua triste sorte e tomou uma resolução, estudando logo o
plano de a pôr em prática. Às ocultas, foi vendendo alguma da sua pouca
e muito pobre roupa e foi comprando outra, própria do sexo masculino,
que muito cautelosamente foi escondendo. Apurou ainda algum dinheiro e
tratou de indagar se algum navio estava preparado para próxima viagem.
Alguns grumetes
afiançavam-lhe que em breve partiria para Mazagão uma caravela,
intitulada de Nossa Senhora do Socorro, com um carregamento de trigo. O
nome da caravela mais a animou a pôr em prática essa resolução,
esperando que o socorro da Virgem seria o seu amparo no heróico passo a
que iria arriscar-se. Antónia Rodrigues tinha então quinze anos.
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Era formosa e
elegante: - Os seus vastos e longos cabelos pretos; os olhos da mesma
cor, mas sempre brilhantes; a regularidade de suas feições; a sua tez um
tanto morena, mas corada; a alvura de seus dentes e o carminado dos seus
lábios, que não eram demasiadamente grossos, tudo concorria para que
esta aveirense fosse considerada uma beleza e chegasse a arrecear-se de
que os castigos do cunhado não fossem tantos pelas suas travessuras, mas
por ela já se esquivar a quaisquer galanteios.
Ela própria cortou os
seus cabelos e, vestida com as roupas que havia comprado, apresentou-se
ao capitão da caravela, pedindo-lhe que admitisse António Rodrigues,
como simples grumete e sem remuneração, além do frugal sustento, que
durante a viagem poderia receber como qualquer dos seus companheiros.
António Rodrigues era aquela jovem que assim, disfarçando o andar, mudou
de nome.
O capitão não quis
logo aceitá-la para o seu serviço um tão suposto mancebo. Não o
conhecia, nunca dele ouvira falar, nem ele se abonava com as menores
informações ou com quaisquer documentos.
António Rodrigues não
desanimou. Verteu muitas lágrimas. E, por sua natural inteligência,
soube urdir uma história da sua personalidade, queixando-se da sorte, da
perda dos pais, do desamparo dos parentes e das perseguições dos
inimigos da família. Alegou em seu favor o desinteresse, com que se
arriscava nos trabalhos marítimos, tão-somente pelas mal adubadas sopas,
com que se contentaria.
O capitão, comovido e
já compadecendo-se daquele jovem, aceitou-o para o serviço. E António
Rodrigues logo entrou para a caravela, empregando-se em diversos
trabalhos e sem que ninguém suspeitasse do seu verdadeiro sexo.
Saiu a embarcação e
aquele grumete trepava agilmente aos mastros pelas enxárcias, sem receio
de cair nem de perturbar-se com as oscilações, causadas pelos ventos e
pelas ondas. Durante a viagem algumas nuvens ameaçaram tempestade, mas o
suposto moço aveirense sorria das ameaças da natureza e escarnecia, sem
desejo de ofensa, os companheiros receosos de qualquer mudança do estado
atmosférico.
Sem incidente
notável, entrou a caravela em Mazagão. O jovem grumete tratou de
despedir-se do serviço marítimo. Para isso poderia concorrer qualquer
motivo, em que nem todos os escritores são concordes. Ou o próprio
capitão despediu o grumete, por já não precisar de serviço deste; ou
este se deu por despedido, por querer entrar em aventuras, seguindo
outro modo de vida.
Não falta,
porém, quem afirme que, logo à chegada, se descobrira um desfalque ou de
objectos da embarcação, ou de dinheiros que nela existiam ou que se
apuraram na venda de parte do carregamento. Recaíram as suspeitas em
diversos indivíduos; António Rodrigues também foi apontado, como um dos
criminosos. Mas o grumete aveirense tão bem soube defender-se que pôde
descobrir os verdadeiros culpados,
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salvando assim a própria inocência e a do capitão
da caravela, que ficaria comprometido, se tal defensor lhe não acudira.
O capitão estimava o
grumete e, tanto na viagem como em terra, afirmava que António Rodrigues
viria a ser um grande náutico, que muito havia de honrar a marinha
portuguesa. Mas o grumete não quis voltar na mesma caravela e, desejoso
de novas e variadas empresas, despediu-se do capitão, que manifestou por
isso um íntimo desgosto.
Em seguida,
dirigiu-se ao governador militar da praça e tratou de alistar-se, como
simples soldado. O governador aceitou essa voluntária proposta,
admirando a beleza e a elegância daquele jovem aveirense.
É Mazagão uma praça
do império de Marrocos, na Província de Duquela, distante dez
quilómetros de Azamor. Pertenceu, desde 1502, aos portugueses, que logo
a fortificaram e a fizeram ocupar militarmente. Em 1769, foi abandonada
aos mouros, depois de lhe serem destruídas as fortalezas.
Em 1562, fizeram ali
os mouros diversas tentativas, para se apossarem da praça, mas num
encontro foram vergonhosamente repelidos. Contudo, não cessaram de fazer
constantes correrias, especialmente nos campos próximos, sofrendo quase
sempre novas derrotas.
Já em Mazagão estava
António Rodrigues, e essas empresas militares continuavam. O jovem
suposto, agora como soldado, mostrava-se sempre intrépido nos combates e
hábil no manejo das armas, pelo que chegou a ser incumbido do comando de
algumas tropas em diversos recontros.
Soube António
Rodrigues, que os mouros pretendiam numa noite fazer uma sortida em
forma aos campos mais próximos e destruir as searas, que então estavam
muito abundantes e quase maduras. Animou-se pelo ensejo de alcançar
maior glória e pediu ao governador da praça que lhe entregasse um troço
de tropas, para, sob o seu comando, fazer uma derrota completa nas
hostes mauritanas. O governador acedeu ao pedido, esperando que António
Rodrigues cumpriria com valor o que prometera por dedicação.
Quando os mouros
menos os esperavam, aparece o jovem militar com a sua tropa e com tanta
valentia se houveram os portugueses, e tão bem comandados foram, que os
invasores tiveram de fugir feridos e envergonhados. António Rodrigues
entrou em Mazagão, ouvindo as aclamações de vitória e recebendo os
maiores elogios.
Por este e já por
outros feitos foi elevado a oficial, sendo então mudado para cavalaria.
Se até aí era destro nos manejos das armas e valente, subjugando sempre
os cavalos que montava, ainda que fossem bravos e que a outros militares
parecessem indomáveis.
Enquanto foi simples
soldado de infantaria, divertia-se e folgava com os seus camaradas. E,
nos seus divertimentos, soube sempre portar-se com tantas precauções,
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que nenhum dos seus
camaradas pôde supor que tinha a seu lado uma donzela. Por isso, pode
bem dizer-se que, se Antónia Rodrigues foi notável pela valentia, não
menos o foi pela honestidade.
Elevado aquele
suposto mancebo à posição de oficial de cavalaria, começou a ter entrada
nas casas das famílias mais respeitáveis. Assistia aos saraus, dirigia
galanteios às damas, apresentava-se com garbo e gentileza e era fluente
com suas conversações, apesar de não ter tido estudos regulares. Como,
porém, era dotado de memória e de inteligência, não só adquiriu
instrução pela convivência, mas também pela simples leitura de alguns
livros, para o que aproveitava as horas de ócio.
Não poucas damas se
apaixonaram por António Rodrigues e ele facilmente deixava alimentar
essas paixões, para assim poder mais facilmente encobrir a verdade do
seu sexo. Entre aquelas damas, conta-se principalmente D. Beatriz de
Meneses, filha de D. Diogo de Mendonça, um dos principais fidalgos, dos
que então viviam em Mazagão. E tanto se apaixonou que adoeceu
gravemente, chegando o pai, que muito a estimava, a recear que ela
sucumbisse.
D. Diogo entendeu-se
com o governador da praça, insinuando-lhe que obrigasse António
Rodrigues a desposar D. Beatriz. Chamado o jovem oficial à presença do
governador e tendo ouvido a proposta do casamento, corou, tremeu e
perdeu completamente a coragem. O governador estranhou que um tão
valente militar, que nem temera as armas inimigas nem a fúria dos
ginetes, sucumbisse e até derramasse lágrimas diante de uma proposta,
que não poucos desejariam e com que muitos deviam lisonjear-se. Supôs
que seria acanhamento ou efeito do prazer de uma prevista felicidade.
E, ora com ameaças
ora com modos carinhosos, exigiu-lhe uma proposta pronta e uma
explicação sincera. António Rodrigues desculpou-se com a humildade da
sua origem. Declarou que era de Aveiro e filha de um marinheiro pobre e
ignorado; e que os seus ascendentes não passavam de umas humildes
famílias de pescadores.
O governador, porém,
respondeu-lhe que D. Diogo prezava mais a vida e a saúde da filha, do
que todos os brasões e títulos de nobreza; por isso era mister que
António Rodrigues se sujeitasse, obediente, àquela proposta.
Antónia Rodrigues
então chorou, como uma criança comprometida, e, erguendo as mãos, pediu
para que não a castigassem; e, entre soluços, declarou que não era
homem. Contou então toda a sua história e pediu perdão, por haver vivido
com tal disfarce.
O governador fez logo
espalhar por toda a praça aquela notícia. Antónia Rodrigues vestiu os
trajes do seu verdadeiro sexo e foi levada pelas ruas de Mazagão,
ouvindo as aclamações do povo, que lhe dava o epíteto de cavaleira
aveirense.
Logo que se soube o
verdadeiro sexo de Antónia Rodrigues, como era formosa e inteligente,
não faltaram pretendentes que a desejassem para esposa. Entre eles
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Antónia um brioso
oficial, cujo nome se ignora. O seu casamento foi celebrado com grandes
festejos, assistindo ao acto as pessoas de posição mais elevada.
Quando Antónia
Rodrigues tinha trinta e cinco anos, voltou para Portugal, em companhia
de seu marido e de um filho, que ainda era criança. Pouco depois ficou
viúva.
El-rei D. Filipe, II
de Portugal e III de Espanha, achava-se então em Lisboa e desejou muito
conhecê-la. Efectivamente, foi-lhe apresentada Antónia Rodrigues. O
monarca muito admirou e bem recebeu a célebre heroína, à qual concedeu
duzentos cruzados para ajuda das despesas da jornada, uma tença de dez
mil réis anuais e uma fanga de farinha por mês. Também deu ao filho as
honras de moço da Real Câmara. É de crer que esse facto se desse em
1619, porque então estava o rei em Lisboa, onde reuniu cortes.
Não se sabe onde nem
em que data faleceu esta heroína aveirense, assim como nada se sabe a
respeito do filho, nem se este deixou descendência. É possível que a mãe
e o filho houvessem falecido em Madrid, onde então era a Corte.
Duarte Nunes de Leão,
que muito bem conheceu Antónia Rodrigues, afirma que ela era formosa. O
nome desta aveirense também figura no Theatro Heroíno, de Frei
João de S. Pedro, onde figuram os das matronas de Diu e o da célebre
padeira de Aljubarrota.(1)
________________
(1) - Anotam-se alguns dos autores que
se lhe referem: - Conde de Sabugosa, Neves de Antanho, 2ª ed.,
pgs. 259 e ss.; Duarte Nunes de Leão, Descrição do Reino de Portugal,
1610, pgs. 148 e ss.; D. António da Costa, A Mulher em Portugal,
pgs. 52 e ss.; Hipólito Raposo, Mulheres na Conquista de Mazagão,
em Brotéria, vol. XXVII, 1958, pgs. 506 e ss.
Textos no espaço
Aveiro e Cultura em que se fala de Antónia Rodrigues:
►
António
Christo,
Antónia Rodrigues, a heroína de Mazagão, Vol.
XIV, pp. 161-176
►
Adriano Costa, Antónia Rodrigues, a heroína aveirense, 1939.
► Ver também as notas e a
bibliografia apresentada por António Christo, no "Arquivo
do Distrito de Aveiro" (HJCO) |