Rangel de Quadros, Aveirenses Notáveis. Aveiro, 1ª edição, Aveiro, Câmara Municipal de Aveiro, 2000, (Revisão de J. Gonçalves Gaspar), pp. 113-118.


Antónia Rodrigues
(1580-c.1620)

Antónia Rodrigues, chamada também Antónia de Aveiro, não foi só uma notabilidade desta terra. Foi, outrossim, uma celebridade deste país e fez a admiração de nacionais e de estrangeiros.

Acerca da data do seu nascimento há diversas opiniões, mas a mais seguida e a mais conforme às datas dos diversos factos da sua vida afirma que ela nasceu em 31 de Março de 1580. Era filha de Simão Rodrigues Mareares e de Leonor Dias, que viviam no bairro piscatório, na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, da vila de Aveiro. Seu pai dedicava-se à vida marítima e, ao que parece, fez algumas viagens à Terra Nova, quando da barra de Aveiro saía anualmente para aquelas paragens um grande número de embarcações com a finalidade da pesca do bacalhau. A mãe tratava dos trabalhos domésticos, sempre pesados e sempre complicados, porque era grande a sua prole.

Os trabalhos marítimos, as doenças e não poucas contrariedades acabrunharam demasiadamente Simão Rodrigues que, rodeado de filhos e de miséria, se viu obrigado a mandar esta filha para Lisboa, onde haveria de viver com uma irmã, cujo nome se ignora, mas que lá estava casada e em melhores circunstâncias.

/ pág. 114 / Tinha então Antónia Rodrigues cerca de doze anos. Os pais, com grande sentimento, lhe disseram ser melhor que ela fosse para Lisboa. A filha ouviu resignada aquela notícia, lamentando o ter de ausentar-se dos pais, mas desejosa de ver outros lugares e de dar largas ao seu génio, que já então era irrequieto.

Eles muito choraram a ausência da filha e esta não chorou menos o ter de desapartar-se dos autores de seus dias e das suas companheiras de inocentes brinquedos, assim como se mostrou saudosa da terra, onde nascera.

Pouco depois de haver chegado a Lisboa, manifestou um génio altivo e sempre impróprio da sua idade e da sua humilde posição. Repugnavam-lhe os trabalhos domésticos e recusava-se a executar os que eram próprios do seu sexo.

A irmã admoestava-a e o cunhado, desgostoso com tal procedimento, repreendia-a com tanta aspereza, que na sua habitação os ralhos eram constantes e as contrariedades eram sucessivas. A irmã passou das admoestações às ameaças e o cunhado não poucas vezes a espancava.

O procedimento daqueles cônjuges não abateu o génio irascível de Antónia Rodrigues. Ameaçaram-na de novamente a mandarem para Aveiro e isso mais lhe irritava a exaltação do génio. Antónia fugia de casa com muita frequência.

Procurada pelos seus hospedeiros, raras vezes deixavam de a encontrar na praça da Ribeira, olhando para os navios ancorados nas proximidades. Alongava os olhos para o ocidente, conversava com os grumetes e quase sempre lhes manifestava a mágoa de não ter nascido homem, para, com eles, seguir a vida aventurosa dos mares e ver sempre novos horizontes. Os grumetes sorriam-se e tomavam-na como louca ou como visionária. Quando podia, alongava mais os seus passeios e ia até onde visse o bater das ondas do Oceano e aí se ficava, como enlevada em êxtase, desejosa de sulcar aquelas águas. Aquelas contínuas saídas concorriam para que os castigos fossem mais frequentes e mais graves.

Antónia saiu um dia, em que o tempo era sereno e formoso. Sentada abaixo do Tejo, meditou, lamentando a sua triste sorte e tomou uma resolução, estudando logo o plano de a pôr em prática. Às ocultas, foi vendendo alguma da sua pouca e muito pobre roupa e foi comprando outra, própria do sexo masculino, que muito cautelosamente foi escondendo. Apurou ainda algum dinheiro e tratou de indagar se algum navio estava preparado para próxima viagem.

Alguns grumetes afiançavam-lhe que em breve partiria para Mazagão uma caravela, intitulada de Nossa Senhora do Socorro, com um carregamento de trigo. O nome da caravela mais a animou a pôr em prática essa resolução, esperando que o socorro da Virgem seria o seu amparo no heróico passo a que iria arriscar-se. Antónia Rodrigues tinha então quinze anos.

/ pág. 115 / Era formosa e elegante: - Os seus vastos e longos cabelos pretos; os olhos da mesma cor, mas sempre brilhantes; a regularidade de suas feições; a sua tez um tanto morena, mas corada; a alvura de seus dentes e o carminado dos seus lábios, que não eram demasiadamente grossos, tudo concorria para que esta aveirense fosse considerada uma beleza e chegasse a arrecear-se de que os castigos do cunhado não fossem tantos pelas suas travessuras, mas por ela já se esquivar a quaisquer galanteios.

Ela própria cortou os seus cabelos e, vestida com as roupas que havia comprado, apresentou-se ao capitão da caravela, pedindo-lhe que admitisse António Rodrigues, como simples grumete e sem remuneração, além do frugal sustento, que durante a viagem poderia receber como qualquer dos seus companheiros. António Rodrigues era aquela jovem que assim, disfarçando o andar, mudou de nome.

O capitão não quis logo aceitá-la para o seu serviço um tão suposto mancebo. Não o conhecia, nunca dele ouvira falar, nem ele se abonava com as menores informações ou com quaisquer documentos.

António Rodrigues não desanimou. Verteu muitas lágrimas. E, por sua natural inteligência, soube urdir uma história da sua personalidade, queixando-se da sorte, da perda dos pais, do desamparo dos parentes e das perseguições dos inimigos da família. Alegou em seu favor o desinteresse, com que se arriscava nos trabalhos marítimos, tão-somente pelas mal adubadas sopas, com que se contentaria.

O capitão, comovido e já compadecendo-se daquele jovem, aceitou-o para o serviço. E António Rodrigues logo entrou para a caravela, empregando-se em diversos trabalhos e sem que ninguém suspeitasse do seu verdadeiro sexo.

Saiu a embarcação e aquele grumete trepava agilmente aos mastros pelas enxárcias, sem receio de cair nem de perturbar-se com as oscilações, causadas pelos ventos e pelas ondas. Durante a viagem algumas nuvens ameaçaram tempestade, mas o suposto moço aveirense sorria das ameaças da natureza e escarnecia, sem desejo de ofensa, os companheiros receosos de qualquer mudança do estado atmosférico.

Sem incidente notável, entrou a caravela em Mazagão. O jovem grumete tratou de despedir-se do serviço marítimo. Para isso poderia concorrer qualquer motivo, em que nem todos os escritores são concordes. Ou o próprio capitão despediu o grumete, por já não precisar de serviço deste; ou este se deu por despedido, por querer entrar em aventuras, seguindo outro modo de vida.

Não falta, porém, quem afirme que, logo à chegada, se descobrira um desfalque ou de objectos da embarcação, ou de dinheiros que nela existiam ou que se apuraram na venda de parte do carregamento. Recaíram as suspeitas em diversos indivíduos; António Rodrigues também foi apontado, como um dos criminosos. Mas o grumete aveirense tão bem soube defender-se que pôde descobrir os verdadeiros culpados, / pág. 116 / salvando assim a própria inocência e a do capitão da caravela, que ficaria comprometido, se tal defensor lhe não acudira.

O capitão estimava o grumete e, tanto na viagem como em terra, afirmava que António Rodrigues viria a ser um grande náutico, que muito havia de honrar a marinha portuguesa. Mas o grumete não quis voltar na mesma caravela e, desejoso de novas e variadas empresas, despediu-se do capitão, que manifestou por isso um íntimo desgosto.

Em seguida, dirigiu-se ao governador militar da praça e tratou de alistar-se, como simples soldado. O governador aceitou essa voluntária proposta, admirando a beleza e a elegância daquele jovem aveirense.

É Mazagão uma praça do império de Marrocos, na Província de Duquela, distante dez quilómetros de Azamor. Pertenceu, desde 1502, aos portugueses, que logo a fortificaram e a fizeram ocupar militarmente. Em 1769, foi abandonada aos mouros, depois de lhe serem destruídas as fortalezas.

Em 1562, fizeram ali os mouros diversas tentativas, para se apossarem da praça, mas num encontro foram vergonhosamente repelidos. Contudo, não cessaram de fazer constantes correrias, especialmente nos campos próximos, sofrendo quase sempre novas derrotas.

Já em Mazagão estava António Rodrigues, e essas empresas militares continuavam. O jovem suposto, agora como soldado, mostrava-se sempre intrépido nos combates e hábil no manejo das armas, pelo que chegou a ser incumbido do comando de algumas tropas em diversos recontros.

Soube António Rodrigues, que os mouros pretendiam numa noite fazer uma sortida em forma aos campos mais próximos e destruir as searas, que então estavam muito abundantes e quase maduras. Animou-se pelo ensejo de alcançar maior glória e pediu ao governador da praça que lhe entregasse um troço de tropas, para, sob o seu comando, fazer uma derrota completa nas hostes mauritanas. O governador acedeu ao pedido, esperando que António Rodrigues cumpriria com valor o que prometera por dedicação.

Quando os mouros menos os esperavam, aparece o jovem militar com a sua tropa e com tanta valentia se houveram os portugueses, e tão bem comandados foram, que os invasores tiveram de fugir feridos e envergonhados. António Rodrigues entrou em Mazagão, ouvindo as aclamações de vitória e recebendo os maiores elogios.

Por este e já por outros feitos foi elevado a oficial, sendo então mudado para cavalaria. Se até aí era destro nos manejos das armas e valente, subjugando sempre os cavalos que montava, ainda que fossem bravos e que a outros militares parecessem indomáveis.

Enquanto foi simples soldado de infantaria, divertia-se e folgava com os seus camaradas. E, nos seus divertimentos, soube sempre portar-se com tantas precauções, / pág. 117 / que nenhum dos seus camaradas pôde supor que tinha a seu lado uma donzela. Por isso, pode bem dizer-se que, se Antónia Rodrigues foi notável pela valentia, não menos o foi pela honestidade.

Elevado aquele suposto mancebo à posição de oficial de cavalaria, começou a ter entrada nas casas das famílias mais respeitáveis. Assistia aos saraus, dirigia galanteios às damas, apresentava-se com garbo e gentileza e era fluente com suas conversações, apesar de não ter tido estudos regulares. Como, porém, era dotado de memória e de inteligência, não só adquiriu instrução pela convivência, mas também pela simples leitura de alguns livros, para o que aproveitava as horas de ócio.

Não poucas damas se apaixonaram por António Rodrigues e ele facilmente deixava alimentar essas paixões, para assim poder mais facilmente encobrir a verdade do seu sexo. Entre aquelas damas, conta-se principalmente D. Beatriz de Meneses, filha de D. Diogo de Mendonça, um dos principais fidalgos, dos que então viviam em Mazagão. E tanto se apaixonou que adoeceu gravemente, chegando o pai, que muito a estimava, a recear que ela sucumbisse.

D. Diogo entendeu-se com o governador da praça, insinuando-lhe que obrigasse António Rodrigues a desposar D. Beatriz. Chamado o jovem oficial à presença do governador e tendo ouvido a proposta do casamento, corou, tremeu e perdeu completamente a coragem. O governador estranhou que um tão valente militar, que nem temera as armas inimigas nem a fúria dos ginetes, sucumbisse e até derramasse lágrimas diante de uma proposta, que não poucos desejariam e com que muitos deviam lisonjear-se. Supôs que seria acanhamento ou efeito do prazer de uma prevista felicidade.

E, ora com ameaças ora com modos carinhosos, exigiu-lhe uma proposta pronta e uma explicação sincera. António Rodrigues desculpou-se com a humildade da sua origem. Declarou que era de Aveiro e filha de um marinheiro pobre e ignorado; e que os seus ascendentes não passavam de umas humildes famílias de pescadores.

O governador, porém, respondeu-lhe que D. Diogo prezava mais a vida e a saúde da filha, do que todos os brasões e títulos de nobreza; por isso era mister que António Rodrigues se sujeitasse, obediente, àquela proposta.

Antónia Rodrigues então chorou, como uma criança comprometida, e, erguendo as mãos, pediu para que não a castigassem; e, entre soluços, declarou que não era homem. Contou então toda a sua história e pediu perdão, por haver vivido com tal disfarce.

O governador fez logo espalhar por toda a praça aquela notícia. Antónia Rodrigues vestiu os trajes do seu verdadeiro sexo e foi levada pelas ruas de Mazagão, ouvindo as aclamações do povo, que lhe dava o epíteto de cavaleira aveirense.

Logo que se soube o verdadeiro sexo de Antónia Rodrigues, como era formosa e inteligente, não faltaram pretendentes que a desejassem para esposa. Entre eles escolheu / pág. 118 / Antónia um brioso oficial, cujo nome se ignora. O seu casamento foi celebrado com grandes festejos, assistindo ao acto as pessoas de posição mais elevada.

Quando Antónia Rodrigues tinha trinta e cinco anos, voltou para Portugal, em companhia de seu marido e de um filho, que ainda era criança. Pouco depois ficou viúva.

El-rei D. Filipe, II de Portugal e III de Espanha, achava-se então em Lisboa e desejou muito conhecê-la. Efectivamente, foi-lhe apresentada Antónia Rodrigues. O monarca muito admirou e bem recebeu a célebre heroína, à qual concedeu duzentos cruzados para ajuda das despesas da jornada, uma tença de dez mil réis anuais e uma fanga de farinha por mês. Também deu ao filho as honras de moço da Real Câmara. É de crer que esse facto se desse em 1619, porque então estava o rei em Lisboa, onde reuniu cortes.

Não se sabe onde nem em que data faleceu esta heroína aveirense, assim como nada se sabe a respeito do filho, nem se este deixou descendência. É possível que a mãe e o filho houvessem falecido em Madrid, onde então era a Corte.

Duarte Nunes de Leão, que muito bem conheceu Antónia Rodrigues, afirma que ela era formosa. O nome desta aveirense também figura no Theatro Heroíno, de Frei João de S. Pedro, onde figuram os das matronas de Diu e o da célebre padeira de Aljubarrota.(1)

________________

(1) - Anotam-se alguns dos autores que se lhe referem: - Conde de Sabugosa, Neves de Antanho, 2ª ed., pgs. 259 e ss.; Duarte Nunes de Leão, Descrição do Reino de Portugal, 1610, pgs. 148 e ss.; D. António da Costa, A Mulher em Portugal, pgs. 52 e ss.; Hipólito Raposo, Mulheres na Conquista de Mazagão, em Brotéria, vol. XXVII, 1958, pgs. 506 e ss.

Textos no espaço Aveiro e Cultura em que se fala de Antónia Rodrigues:

António Christo, Antónia Rodrigues, a heroína de Mazagão, Vol. XIV, pp. 161-176

Adriano Costa, Antónia Rodrigues, a heroína aveirense, 1939.

► Ver também as notas e a bibliografia apresentada por António Christo, no "Arquivo do Distrito de Aveiro" (HJCO)


    Página anterior Menu inicial Página seguinte