Acesso à hierarquia superior.

N.º 15

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1973 

 

Antologia Aveirense

Clicar para ampliar.

Júlio Dinis

Por Waldemar Gomes de Lima

É preciso salvar a casa onde viveu em Ovar Júlio Dinis, para nela se instalar uma Casa-Museu Júlio Dinis,

Círculo ou Centro Dinisiano

Passara no dia 12 de Setembro de 1971 a data da efeméride do 1.º Centenário da morte do tão popular romancista que se chamara pseudonimamente, primeiro, Diana de Aveleda, para depois se denominar Júlio Dinis, o célebre pseudónimo com que se tornara sobejamente conhecido no campo da literatura portuguesa, dado que o seu verdadeiro nome de baptismo era Joaquim Guilherme Gomes Coelho, a quem a vila de Ovar dedica uma extremosa afeição e carinho.

Para tal, Ovar, orgulha-se de ter sido uma das terras que, para além de haver sido onde o romancista vivera mais que uma vez, ser esta a terra berço do seu muito ilustre pai, José Joaquim Gomes Coelho, médico cirurgião distinto, nascido, salvo erro, na actual Rua Marechal Zagalo, situada no típico Bairro do Outeiro, em 22 de Agosto de 1802, sendo filho de José Gomes Coelho e de Rosa Rodrigues, ambos vareiros por nascimento, assim como muitos outros familiares.

Ovar, desde há longos anos que consagra um grande afecto e um carinho em extremo à vida e à obra de Júlio Dinis, por a ela se encontrar ligada, em virtude de ter sido uma humilde «Casinha», implantada no antigo Largo dos Campos, (erradamente designado Largo 5 de Outubro), em pleno coração da velhinha «urbe vareira» e, nessa data, propriedade de sua tia D. Rosa Zagalo Gomes Coelho, onde Júlio Dinis escrevera um dos seus mais célebres livros, «As pupilas do Senhor Reitor» e ainda dera início «A Morgadinha dos Canaviais», além de «O Canto da Sereia».

 

Clicar para ampliar.

 

 

Actual vista da Casa de Júlio Dinis, onde se vê o portão marcado com um X e substitui naquele lugar a janela em crivo, dentro da qual o escritor ouvira a conversa de sua prima com a beata. Marcado com XX está o portão de ferro que agora, serve de urinol a pessoas sem respeito por um imóvel que lhe deveria merecer toda a veneração.

 

Todas as figuras constantes nas «Pupilas do Senhor Reitor» eram e foram muito bem conhecidas no meio local e ainda hoje algumas delas são recordadas com a mais infinda saudade, como sejam o tão relembrado médico João Semana, assim como o tão bucólico e aprazível lugar e Fonte do Casal. Esta agora, infelizmente, encontra-se bastante abandonada e esquecida pelo Município de Ovar e sujeita à condenável e destruidora inutilização processada pelo garotio ou por vândalos inconscientes, no que diz respeito à fotografia e aos quadros em azulejo que adornam a tão típica fonte dedicada ao seu patrono, que é Júlio Dinis.

Foi por isso que foram muitos destes lugares da sempre bela e campesina paisagem vareira que prenderam as atenções do escritor, entre elas, figurou como atrás já dissemos, o edénico Casal, sempre verdejante e com o seu murmúrio contínuo das águas tranquilas do Rio Caster a caminho da sempre formosa Ria de Sonho, onde palravam alegremente, junto à ponte, as encantadas e bonitas lavadeiras de Ovar, de tão saudosa recordação.

Mas, de tudo o mais, que ainda actualmente existe em parte nesta vila, como que a marcar um pouco de uma luz votiva de uma candeia a fenecer-se e que outrora estivera tão luxuriante como uma chama ainda muito viva, semelhante à sua passagem e permanência em Ovar nos anos de 1863, 1864 e 1866, etc.; (terra que ele tanto adorara como está devidamente comprovado através dos seus numerosos escritos, nomeadamente, cartas dirigidas ao seu velho amigo Custódio de Passos).

No entanto, para além do seu busto, que a Câmara Municipal de Ovar mandara erguer em sua homenagem / 40 / em 1966, erigido num pedestal de granito no centro de um jardim público, mais conhecido pelo «Roseiral», orgulho do Município Ovarense. Este, por sinal, situa-se mesmo em frente do imóvel que recorda avivadamente onde o escritor se inspirara e vivera os dias mais felizes da sua tão abalada saúde, na altura em que veio viver para esta vila, no propósito de a recuperar, a conselho de seu primo, o boticário do Porto, Bernardo de Oliveira Ramos.

Este imóvel já fora há anos decepado da sua anterior estética, por determinação de um seu antigo proprietário e, possivelmente, com a prévia autorização da Câmara Municipal de Ovar, a quem cabem as responsabilidades morais de semelhante paradoxo!...

Mas, este singelo e lindo prédio, que há anos um seu antigo dono em parte modificara, demolindo uma das janelas que a mesma possuía, provida exteriormente de duas peças em crivo e, (por onde, segundo dizem, de dentro e através das quais ele ouvira uma conversa que sua prima propositadamente provocara com duas «Beatas»). No local onde se situava a referida janela, mandara o seu proprietário construir um portão, destinado a dar acesso para uma garagem, conforme se pode verificar na fotografia que acompanha este artigo. Essa atitude bem chocante e de certo modo reveladora de um verdadeiro atentado à conservação de um imóvel, que se deveria ter procurado conservar em toda a sua anterior estética, como autêntica relíquia da grandeza literária, da vida e da obra de Júlio Dinis. Todavia, cabe àqueles que, nessa data, contrariando a própria doutrina bem expressa e definida no próprio Código Administrativo, autorizaram semelhante paradoxo, a responsabilidade moral de não se ter conservado este relicário vareiro, que fora decepado e que se impunha manter incólume entre nós, o que infelizmente não acontecera.

E, já há anos o ilustre Professor da Faculdade de Letras do Porto e seu Director, Professor Dr. António Cruz, apoiara no desaparecido jornal da Cidade-Invicta, “Diário do Norte”, de que era seu distinto Director, a excelente ideia de um nosso conterrâneo e muito acérrimo dinisiano vareiro, chamado Manuel Rodrigues de Pinho Cascais, transformando aquele pequenino «Solar» numa Casa-Museu de Júlio Dinis  / 41 /

Entretanto, o seu apelo gorou-se e não fora ouvido, quer pelo Governo, quer pelo Plenário Ovarense, ou até, por quaisquer outros Organismos ou Entidades a quem incumbiria o dever de conservar para a posteridade um modesto prédio, que já há muitos anos se deveria ter considerado, classificando-o como imóvel de interesse público, através do Ministério a quem estão confiadas essas démarches.

 

Clicar para ampliar.

 

 

A vista da Casa de Júlio Dinis tirada em 1944, antes de ter sido alterada a sua frontaria, isto é, anterior à substituição da janela por um portão que dá acesso à garagem, como se pode verificar na fotografia anterior.

 

Também o muito ilustre escritor reguense Dr. João de Araújo Correia, num seu artigo Publicado no jornal «O Comércio do Porto», sob o título «Friúme, Samardã e Ovar», dizia no final do mesmo e naquilo que diz respeito à casa onde vivera em Ovar Júlio Dinis, o seguinte:

«Em Ovar, aquela casinha de porta e janela, no antigo Largo dos Campos, onde Júlio Dinis esteve a ares e onde escreveu, como quem pinta do natural, os principais quadros das Pupilas, ainda hoje se pode visitar. Ainda se pode ver a cama e a casinha? Pense nisto Ovar, que tanto quer progredir em matéria como em espírito.

É mau que não suceda a Ovar nem a Vilarinho da Samardã, o que sucedeu a Friúme».

Mas, para que tal efectivamente não venha a acontecer e se guarde, convenientemente, esta preciosidade das velhinhas TERRAS DO VAR, do camartelo do progresso da era presente, obstando-se que um dia ela possa vir a ser derrubada, para no seu local dar lugar

à construção de qualquer outro prédio moderno, particular ou de rendimento, alguma coisa teremos de fazer.

Trata-se de um velho património vareiro, que é preciso preservar para os nossos vindouros, por a ele estar inteiramente ligada a vida e a obra de tão ilustre escritor, durante o tempo em que vivera em Ovar, à qual o ligavam os mais estreitos laços de amizade dos seus familiares e amigos.

Razão, por que lançamos este nosso veemente apelo, para que por intermédio do Senhor Governador Civil de Aveiro, Junta Distrital e Câmara Municipal de Ovar, se interceda para que o referido imóvel e todo o seu valioso recheio seja considerado de interesse nacional ou público, para seguidamente, ser adquirido pelo Estado, através do Ministério da Educação Nacional e ainda com o valioso auxílio da Secretaria de Estado da Informação e Turismo e da sempre benemérita Fundação Calouste Gulbenkian. Este, após ser adquirido, passaria para o património do Estado ou da Câmara Municipal, embora, como é óbvio, entregue à guarda do Museu de Ovar, por se tornar muitíssimo mais aconselhável.

 

Clciar para ampliar.

 

 

O quarto com a cama onde Júlio Dinis dormira, vendo-se ainda a mesinha de cabeceira e a cómoda, mobília essa que fora por ele utilizada.

 

Só dessa maneira se poderá ainda salvar o muito que resta da casa onde o inesquecível romancista vivera nesta vila e os móveis e utensílios por si usados, considerando-se tudo de grande interesse artístico da própria Nação, para depois, mais tarde, se transformar / 42 / este prédio numa Casa-Museu Júlio Dinis, Círculo ou Centro Dinisiano.

Salve-se pois, enquanto é tempo, aquela pequena «JOIA» do tesouro Ovarense, guardando-o de um dia não ser demolido e a vir-se perder tudo o que nela existe e que nos fala e retrata saudosamente a vida do autor de «As Pupilas do Senhor Reitor».

Se um dia ele chegar a ser demolido ou abandonado pelos seus actuais proprietários, não deixaríamos de ser severamente criticados, e com inteira justiça, por todos os verdadeiros amantes da obra literária de Júlio Dinis, quer em Ovar, quer em todos os outros pontos do país.

Por isso, aqui deixamos bem expressa esta nossa solicitação, no sentido de que algo se possa conseguir nesse sector cultural, fazendo ardentes votos que ela não se perca como a areia que se calca nos nossos caminhos vicinais, dado que ainda existem por todos os lados muitos admiradores dos livros de Júlio Dinis.

Se isso já tivesse acontecido, alguma coisa de válido teria ficado da grande ressonância das conferências, discursos e das homenagens de que o romancista fora alvo e muito justamente pelos povos de Ovar, Grijó (Vila Nova de Gaia) e pela própria cidade do Porto, sua, terra natal, na data em que se comemorara o 1.º Centenário do seu falecimento, em 12 de Setembro de 1871.

 

Clicar para ampliar.

 

 

A mesa que o escritor utilizou para escrever as Pupilas do Senhor Reitor, na qual ainda se encontrava o relógio para se orientar nas horas, cadeiras com as quais se servira para se sentar.

 

Conserve-se pois em Ovar a «Casa» onde Júlio Dinis vivera durante a sua permanência na nossa terra, considerando-a Património de Interesse Nacional ou Público, – pois assim o impõe o próprio brio e orgulho do povo vareiro – tanto mais que, segundo julgamos saber já nem sequer existem, na cidade-invicta, as casas onde o chorado escritor nascera e residira durante a maior parte da sua atribulada vida.

Com a criação nesta de uma Casa-Museu Júlio Dinis, Centro ou Círculo Dinisiano em Ovar, ver-se-ia ainda enriquecer o património cultural da vila de Ovar, a qual ficaria muito mais rica no seu já tão valioso espólio artístico, quer na ARTE, quer na CULTURA, graças ao estoicismo e à «carolice» de um dedicado grupo de vareiros, capitaneados pelo incansável José Augusto de Almeida, que, chefiando uma verdadeira equipa coesa, conseguiram dar uma grande vida e alma ao MUSEU DE OVAR, tornando-o numa obra que tanto orgulha os seus mentores e a própria vila de Ovar.

Clicar para ampliar.

Porém, este poderá ainda ficar mais completo no seu já tão valioso recheio artístico, desde que passasse também para si, como uma sua «Secção complementar», / 43 / a futura Casa-Museu de Júlio Dinis, Centro ou Círculo Dinisiano, se as entidades governativas e municipais procurarem tirar o devido aproveitamento de uma tão boa iniciativa que visa unicamente o não deixar-se morrer para todo o sempre um pouco do historial da vida e da obra de Júlio Dinis, em Ovar.

Todas as ideias esboçadas valem sempre apenas na medida em que elas podem ser realizáveis, nunca se tornando insolúveis, sejam quais forem os graus do seu conteúdo, desde que a essas as mãos sábias dos homens lhes prestem o devido carinho e a atenção para as suas resoluções definitivas, como é o caso da criação em Ovar da Casa-Museu Júlio Dinis, a instalar no imóvel onde vivera o insigne autor de «As Pupilas do Senhor Reitor», etc.

A cómoda e o oratório existente no seu quarto, com duas pequenas imagens, jarras de flores, lanterna de luz, vendo-se ainda a janela e cortina ali existente.

Ainda agora acaba de ser adquirido pelo Ministério da Educação Nacional, por cedência da Administração dos C. T. T., um imóvel existente no Carquejo, a uns 16 quilómetros de Coimbra, onde funcionou uma das 23 Estações da Malaposta entre Lisboa e o Porto.

Será no mesmo edifício instalado o Museu da Mala-Posta, que ficará integrado no Museu Nacional da Ciência e da Técnica, sob a direcção do Professor Mário Silva, presidente da respectiva Comissão de Planeamento e que à mesma vem dando uma actividade notável / 44 / e relevante, no sentido de desenvolver o seu variado campo de acção.

O mesmo também poderá acontecer com a Casa de Júlio Dinis em Ovar, se os homens bons da nossa terra e as suas autoridades governativas e administrativas prestarem todo o seu acrisolado carinho, de um «vareirismo» são e cheio de AMOR, sempre julgados imprescindíveis em empreendimentos desta natureza. Só assim se poderá conceber que esta futura obra cultural sonhada e idealizada para a VILA DE OVAR e em singela homenagem a um seu romancista tão querido, arreigado nos corações de todo o bom povo vareiro, apesar das atoardas que alguns estranhos pretenderam levantar no que respeita à estadia de Júlio Dinis em Ovar, mas cuja sua presença ficará a marcar inexoravelmente a sua passagem pela nossa terra!...

 

Clicar para ampliar.

 

 

O busto de Júlio Dinis mandado erguer pela Câmara Municipal de Ovar no Jardim existente no Largo 5 de Outubro, mais conhecido vulgarmente pelo Jardim dos Campos e que deveria ter sido denominado Jardim Júlio Dinis. À esquerda do busto vê-se a casa onde o escritor vivera e que está marcada com um X.

 

*

Sobre esta casa escreveu Antero de Figueiredo em «Os Serões»: «Oh! Casa amiga insinuante que tiveste a caridade da ilusão para com um doente, e estimulaste um espírito abatido a criar livros que a tantas almas levou o deleite subtil duma arte amena!»

*

Da última vez que visitamos este imóvel em companhia de um fotógrafo para este nos revelar umas / 45 / chapas, disse-nos com a mais profunda mágoa a Senhora D. Rosa Ribeiro Torres, de 70 anos, que cuida e olha por ela com um acrisolado carinho e amor há cerca de 25 anos, que estava a chover mesmo em cima da cama onde dormira Júlio Dinis. Efectivamente, verificamos ser verdadeira a triste notícia, o que bastante lamentamos, pelo que lançamos um apelo para a sua reparação.

Waldemar Gomes de Lima


Clicar para ampliar.
 

Fonte de Júlio Dinis reconstruída pela Câmara Municipal de Ovar quando era seu Presidente o Dr. Manuel Pacheco Polónia, já falecido, a cuja memória rendemos o preito da nossa gratidão pelo muito que fez pelas coisas de Ovar. Nomeadamente, alindou o encantador Casal onde esta fonte se situa e pela qual é conhecida pelo nosso povo. Como se pode verificar através da fotografia, são bem visíveis as marcas das pedras atiradas pelo garotio na fotografia de Júlio Dinis que adorna o centro da Fonte e por debaixo do brasão de armas do antigo reino de Portugal. Esta «Fonte» e bem assim toda a zona que a circunda carece urgentemente de ser reparada e dotada de uma moderna iluminação pública.

CARTAS E ESBOÇOS LlTERÁRIOS

Prólogo pelo Prof. Dr. Egas Moniz

As cartas dos homens célebres são compiladas com carinho, por poderem mostrar certas facetas dos seus talentos, ainda ignoradas. Todos os grandes autores têm tido essa rebusca entre pessoas das suas relações ou outras a quem, pela força das circunstâncias, tenham escrito.

Desde Voltaire, cuja correspondência, na primeira edição das suas obras completas, ocupa 18 volumes, do tomo 68 ao 95, até ao nosso Camilo Castelo Branco, as cartas por eles escritas têm sido lidas e interpretadas ou, pelo menos, publicadas para estudo dos eruditos.

Não são apenas as cartas em que são tratadas questões de vulto, também as de assuntos menos elevados, e até familiares, pois estas podem trazer aspectos novos na apreciação dos seus autores.

São elementos de análise, conduzindo, por vezes, longe, na interpretação de factos a que, a princípio, se não dera a importância devida.

A correspondência de Jean-Jacques Rousseau, outro autor, e dos maiores do século XVIII, que pela sua originalidade marcou lugar difícil de atingir, é também digna de estudo e reflexão.

O autor do «Emílio» e do «Contrato Social» é ali muitas vezes surpreendido em aspectos inesperados. É grande o número das cartas publicadas; ocupam seis volumes da edição da sua obra completa, de 1825. De outros autores não me consta que se tenha ido tão longe no apuro de documentos desta natureza; mas, relendo-os, tiram-se ensinamentos biográficos de grande valia. Cada leitor pode esboçar o retrato psicológico dos dois geniais escritores citados, que não só dominaram na literatura francesa, mas absorveram a atenção dos filósofos e homens de letras de todo o mundo. Cada um, na sua esfera de acção, contribuiu largamente para a reforma social que adveio da grande revolução, pois, apesar dos seus exageros, representou um dos maiores progressos na história da Humanidade.

 

Clicar para ampliar.

 
 

Uma vista geral do Jardim dos Campos (Roseiral), designado oficialmente por Largo de 5 de Outubro, onde está situado o busto de Júlio Dinis, mandado erguer pela Câmara Municipal de Ovar em 1966, cujo jardim deveria passar a denominar-se «Jardim de Júlio Dinis».

 

Comprazo-me, nas horas de repouso, a ler a correspondência desses notáveis escritores e, pergunto a mim próprio, como pôde coligir-se tão vasto material / 46 / epistolográfico, espalhado por toda a parte e algum de marcada intimidade.

Em Portugal nunca seria possível, guardadas as devidas proporções, reunir um espólio literário tão vasto e tão disperso como o desses dois autores, que um grupo de admiradores conseguiu juntar e publicar em numerosos volumes, podendo com vantagem dar-lhe ordem cronológica.

O primeiro volume da «Correspondance» de Voltaire, da edição de 1830, abrange as suas cartas de 1713 a 1733, isto é, dos 19 aos 39 anos; mas os volumes seguintes trazem apenas a correspondência de pequenos prazos de tempo, pois a sua actividade literária, mesmo neste campo restrito, foi intensíssima. A sua correspondência com Frederico II da Prússia, páginas interessantes de história, é vasto manancial de informações e de consultas.

Aos 84 anos, idade em que Voltaire faleceu, ainda escreveu cartas cheias de interesse. A última foi dirigida, já no limiar da morte, ao conde de Lally, em 26 de Maio de 1778, quando soube da boa nova da anulação da sentença de morte de seu pai. A sua pena ainda pôde traçar estas linhas:

«Le mourant ressuscite en apprenant cette grande nouvelle; il embrasse bien tendrement M. de Lally; il voit que le roi est le défenseur de la justice; il mourra content.»

Este espírito admirável, que se conservou alerta até aos últimos momentos, deixou uma documentação epistolar, que nenhum outro escritor ou homem de ciência, e Voltaire foi as duas coisas, conseguiu legar à posteridade.

Nas cartas póstumas dos dois grandes escritores, que foram publicadas, tomam lugar de realce as missivas amorosas.

A correspondência de Voltaire abre com uma série de cartas a Mademoiselle Dunoyer: «Je crois, ma chère demoiselle, que vous m’aimez...» Assim principia a primeira carta.

Na colecção epistolar de Jean Jacques Rousseau, também as há desta natureza. E que belas cartas de amor! Dizia a Mademoiselle Serre em 1736:

«J’ai achevé de perdre auprès de vous le peu de raison qui me restait, et je sens que, dans l’état ou vous m’avez réduit, je ne suis plus bon à rien qu’à vous adorer.»

Pode parecer um pouco estranho que traga à colação referências a factos que se perdem em horizontes longínquos, mas sempre irisados da mágica luz do século XVIlI. Desejei apenas mostrar a importância que se tem dado, através dos tempos, a estes preciosos documentos para o estudo das personalidades que ilustram as letras, as ciências, as artes e a política.

Em Portugal não se tem dado grande atenção ao assunto; apenas Camilo conseguiu despertar estímulo para a colheita destes elementos, mais apreciados como autógrafos do que como material de estudo sério, sobre o autor. Mas foi alguma coisa.

De outros autores se tem pretendido fazer o mesmo. De Eça de Queirós foi publicado um interessante volume com o título «Correspondência», contendo peças valiosas que seu filho José Maria de Eça de Queirós em boa hora conseguiu reunir e dar à estampa. Na Introdução escreveu estas palavras que, sendo inteiramente justas aplicadas à obra e pessoa do que foi um dos maiores escritores contemporâneos da nossa terra, merecem ser transcritas, pois advogam princípios que podem ser generalizados.

«Com efeito, para mim, este pequeno volume representa apenas uma base, um esboço, o ponto de partida de uma importante publicação, de uma larga obra de estudo e de arte, a verdadeira Correspondência de Eça de Queirós, organizada e definitiva, e que será além do «comentário constante que acompanhe e ilumine a sua obra», o espelho em que possamos seguir com precisão a sua vida íntima, e nos ajude a discernir, sob o escritor humorístico e um pouco irreverente que o grande público se habituou a conhecer, o homem encantador, simples, fino e infinitamente bondoso que era na realidade.»

Mas voltemos ao ponto fundamental donde nos temos afastado: as cartas de Júlio Dinis.

São relativamente poucas, e bom seria que o seu número fosse aumentado, com o concurso dos que possuam autógrafos do nosso romancista.

Estes poderiam formar, no futuro, um volume que, trazendo luzes ao estudo da sua individualidade, satisfizesse a curiosidade dos seus admiradores.

Escrevi no meu livro Júlio Dinis e a sua Obra uma informação que convém aqui recordar, pois na sucessão das cartas alguma coisa há a acrescentar ao que então conhecia.

Seu pai, o médico Dr. José Joaquim Gomes Coelho, acompanhou-o durante toda a sua vida, sobrevivendo-lhe por largos anos.

Das relações entre o pai e o filho, e que de alguma maneira vêm retratadas no romance Uma Família Inglesa, bastante se tem dito. É, porém, testemunho insuspeito o fornecido por seu sobrinho, o almirante Guilherme Gomes Coelho, a Henrique Lopes de Mendonça, quando redigia os Serões e de que nos deu conta Maximiano Lemos: (1)

«As relações entre pai e filho tiveram sempre uma certa tensão, não devida a quaisquer conflagrações que o mútuo amor não consentiria, mas / 47 / proveniente do conflito permanente de dois temperamentos igualmente reservados, austero no primeiro, melindroso no segundo. Raro trocavam palavras que não fossem de mera saudação quotidiana. Quando o velho doutor julgava urgente alguma comunicação a seu filho, fazia-o geralmente por uma carta ou nota que lhe deixava no quarto, quando o sabia ausente. Exactamente o que se reproduz no romance aludido (2) entre o fleumático comerciante inglês e seu filho Carlos.»

A carta, dirigida a seu pai por Júlio Dinis, a quando do seu despacho para professor, e que Sousa Viterbo classifica de «jóia das mais preciosas do escrínio epistolar português», é uma prova concludente de que, apesar do seu carácter manifestamente reservado, era terno e afectuoso, lembrando-se, na hora decisiva do triunfo, ao ascender à cátedra, de endereçar a seu pai as primeiras palavras de alegria e de agradecimento. Ao ler-se, tem-se a impressão de que o mais comunicativo e melhor dos filhos não poderia expressar-se de maneira mais sincera e mais amiga. Sousa Viterbo expressa-o de um modo bem significativo:

«...; a carta é escrita tão despretensiosamente que mais é para admirar o efeito maravilhoso que ela nos produz, devido exclusivamente à profunda sinceridade do sentimento que a ditou.» (3)

Já depois de publicado o meu trabalho, em 1924, recebi do sr. visconde do Marco, com data de 15 de Junho do mesmo ano, uma carta em que me dizia:

«Tenho uma pasta com bastantes autógrafos que pertenceram a meu pai. Entre eles está uma carta sem data em que meu pai lançou esta nota:

«Carta de Júlio Dinis a seu pai – escrita de Lisboa.»

«Como é possível que V. lhe ache algum interesse, mando-lhe aqui uma cópia e se quiser ler o original terei muito prazer em lho facultar. Com toda a consideração, etc. Visconde do Marco.»

Essa carta de Júlio Dinis é mais uma prova do afecto que o ligava a seu pai, não o esquecendo numa hora de júbilo; pois ela vem demonstrar que não ficou insensível ao sucesso que as «Pupilas» alcançaram no palco do Trindade.

É a segunda carta da colecção que vai ser lida.

Vem trazer luz sobre este acontecimento que, por certo, o emocionou. Quanto se havia de ter lembrado das suas peças teatrais, jóias literárias da sua juventude agora trazidas a público, representadas no Teatro das Liceiras! Quantas revivescências do passado, ligadas à agradável impressão da inolvidável noite em que as personagens do seu romance saíram das páginas do livro, para passearem pelo palco com a naturalidade com que o autor ali as poderia ter inicialmente colocado!

Ainda bem que o não fez, porque o seu romance é das obras-primas da literatura nacional e esta forma avantaja-se, em expansão e divulgação, sobre a peça teatral, embora esta tenha o encanto da movimentação dos personagens. Mas Júlio Dinis conseguiu também dar-lha nos seus romances da vida rústica portuguesa.

Essa carta a seu pai mostra que quis compartilhar com ele a alegria que tinha dominado, naquele dia, o seu feitio concentrado e fleumático.

A carta não tem data, mas deve ser de 25 (?) de Março de 1868.

Júlio Dinis nunca esquecia seu pai, como digo no meu volume. Quando segue para a Madeira, pela primeira vez, escreve a Custódio Passos:

«Não é o amor ao Porto o que me prende. A minha família é cada vez mais limitada. Se não fosse meu pai, talvez me resolvesse a dar um golpe-de-estado desses que me atrairiam dos homens sensatos o epíteto de pateta. Meu pai, porém, está hoje mais isolado do que nunca. Eu imagino o quanto lhe há-de ter custado a separação, a um tempo do filho e da neta. Basta que te diga que foi isso o que o obrigou a vir a Lisboa, onde ontem me apareceu. Como lhe custaria se a minha ausência fosse permanente!»

A amisade do pai pelo filho foi também muitas vezes demonstrada. Este trecho bem a documenta. Em outras passagens de cartas a Custódio Passos é ela posta em relevo. Basta que citemos a última que lhe escreveu, em 24 de Maio de 1871 e em que se patenteia a estima mútua que os unia:

«Meu pai está aqui e, como mostra desejos de ir comigo, é provável que não me demore.»

Júlio Dinis vinha desiludido do Funchal. Sentia a morte avizinhar-se. O pai aguardava-o em Lisboa, à chegada, e o filho quis logo precipitar a sua partida para o não contrariar. Não se pode compreender melhor entendimento nem maior dedicação.

Entre as cartas familiares há as dedicadas a sua sobrinha D. Ana Gomes Coelho da Silva que mostra a afectividade do romancista e o carinho pela criança que foi acompanhando no seu desenvolvimento e predilecções. A suavidade das suas recomendações e as demonstrações duma estima inexcedível marcam como prova duma afectividade paternal presa à graça e encantos da criança.

Escrevi:

«D. Ana Gomes Coelho da Silva teve sempre por seu tio Júlio Dinis a maior dedicação e devotada / 48 / estima. Após a sua morte, esta ilustre senhora, seu irmão, o almirante Guilherme Gomes Coelho e seu tio, pai do escritor, Dr. José Joaquim Gomes Coelho, que faleceu em casa de sua sobrinha, D. Ana, em Lisboa, com 83 anos de idade, em 21 de Julho de 1885, formaram um pequeno círculo em que o culto pela memória do grande escritor, que foi ao mesmo tempo um amigo devotadíssimo de todos eles, era vigorada nas conversas de todos os dias.»

As cartas a «Anitas», primores literários deste género, são bastante numerosas. Às publicadas nos Inéditos e Esparsos outras juntamos, treze ao todo. Formam um interessante conjunto, pois acompanham a idade da sua sobrinha dos 13 anos aos 17 anos. Daí a pouco, aos 18 anos, esposava seu tio materno. Não houve filhos. Veio a falecer, viúva, em Lisboa.

Além das cartas dadas a lume, outras há anteriores, sem data; brincadeiras com a Anitas em idade infantil em que Júlio Dinis a trata por V. Ex.ª, ora mandando-lhe um papel, por certo com uma poesia, «para entretenimento dos seus criados», ora propondo-lhe adivinhas, ora aconselhando-a a «tomar chá de alteia muito quente e adoçado», porque a sabe doente, ora ainda oferecendo a sua companhia para o teatro, etc.

É todo um conjunto de dedicações e cuidados, que a Anitas guardou através da vida como uma preciosa relíquia de infância.

Quando Júlio Dinis esteve em Ovar, em 1863, tinha a Anitas 13 anos. Pouco tempo antes ela ali o visitara. À partida de seu tio, do Porto, não se cansou de lhe pedir que escrevesse e desse notícias da terra, recordando-lhe as suas brincadeiras debaixo dos álamos, que, ao tempo, ensombravam o largo da Igreja.

Essas cartas, do período mais interessante da vida do romancista, pois de Ovar trouxe matéria para dois dos seus melhores romances, as Pupilas e a Morgadinha, merecem bem ficar arquivadas. Sendo a exteriorização de uma amizade que foi correspondida pelo culto de uma vida inteira, mostram, ao mesmo tempo, a boa disposição de espírito de Júlio Dinis nesse período da sua existência.

São também curiosas as cartas escritas a seu primo José Joaquim Pinto Coelho, com referências aos seus trabalhos e preocupações literárias. Não menos interessantes, sob aspecto diferente, as que enviou a sua madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho, senhora de grandes qualidades, bondosa, inteligente e ilustrada, irmã de seu primo José Joaquim Pinto Coelho e que na sentimentalidade do romancista substituiu, um pouco, sua mãe, D. Ana Constança Patter, falecida em Novembro de 1845, quando Júlio Dinis tinha seis anos de idade.

A estas cartas familiares seguem-se neste volume as cartas particulares e literárias.

Escreveria o romancista cartas amorosas perdidas no rolar do tempo?

Não sabemos de cartas deste género que tenham sido salvas da destruição. Contudo podemos recordar um episódio que me foi revelado por D. Emília Simões, filha de D. Ana Simões que, como julgo ter demonstrado, foi a «Margarida» das Pupilas do Sr. Reitor.

Do meu livro sobre «Júlio Dinis e a sua Obra» destacamos este passo:

«Tinha-nos contado o Dr. José de Almeida que uma cena real de amores se passara entre Júlio Dinis e a Margarida. Coisa fugaz, por certo. Ao estudarmos Júlio Dinis sobre este aspecto, traremos à colação o que os seus biógrafos referem e, sobretudo, o que fora um capricho de momento no romancista, perdurou na alma delicada da Guida, das Pupilas.»

«Ousámos inquirir:

«– Sim! Minha mãe, três dias antes de falecer, chamou-me para me pedir que fosse à gaveta do armário que está lá dentro e deitasse ao lume um embrulho de cartas e um retrato de Júlio Dinis publicado num almanaque de lembranças.

«E acrescentou:

«Junto está um coração, uma lembrança. Essa podes guardá-la para ti.

«– Naquele momento não hesitei. Fui à gaveta, tirei o pequeno embrulho e deitei-o à fogueira. Talvez não devesse fazê-lo; mas era um pedido de minha mãe e naquela hora... Obedeci.

«E, levantando-se, foi lá dentro buscar o cordão que enfaixava as cartas e a prendazita, um coração de madrepérola rendilhado, com letras gravadas em ouro, ao redor. Tomámo-lo com veneração. As letras estavam bastante sumidas, mas conseguimos ler a legenda que circunda a relíquia. Diz assim:

Venceste meu coração

Com subtil arte de amor.

«As cartas tinham sido escritas no papel fino e regrado da época, dobrado em quatro, e estavam dentro de um dos sobrescritos pequenos que toda a gente de há quarenta anos conheceu. Pelo que nos disse a nossa informadora, deviam ser mais de dez. Preciosos documentos que o lume levou!»

Essas cartas que julgo hoje deviam ser aproveitadas, não teriam talvez grande intensidade amorosa, pois Júlio Dinis encontrava-se frequentemente com aquela que celebrizou no romance. Depois da sua saída de Ovar, esqueceu rapidamente a que entusiasmou / 49 / com as suas frases, no convívio que com ela teve.

Perderam-se, purificou-as o fogo, delas não ficaram vestígios.

Outras deve ter escrito; mas não se acusaram as que tiveram a ventura de as receber e ler. É um aspecto da sua vida que apenas se adivinha através do romance e do teatro que nos legou.

Às cartas dirigidas a seu primo José Joaquim Pinto Coelho junta-se uma já publicada no meu volume, de Julho de 1870. É um modelo de gentileza e de ternura. Avizinhava-se a hora da partida para o além e oferecia à sua primita recém-nascida, filha do amigo de sempre, uma lembrança da Madeira «como uma prova de que, antes de conhecê-la, a tinha já no pensamento.» Das cinco cartas endereçadas a seu primo é esta a última conhecida.

Este conjunto mostra na evolução da sua existência uma amizade fortalecida, não só por laços de família, mas também por afinidades de sentimentos e até de predilecções literárias.

Júlio Dinis dirigiu-lhe também bastantes cartas em verso, por ocasião dos seus aniversários. Julgámos mais conveniente relegá-las para o volume «Poesias», pois nele devem ser arquivadas.

«Epístola a meu primo José Joaquim Pinto Coelho no dia dos seus anos, 20 de Outubro de 1859» é assim que ele denomina a sua primeira missiva em verso.

A ela outras se seguiram, algumas longas e, por vezes, com interessantes e magistrais descritivos. Não resistimos à tentação de trasladar para aqui um pequeno trecho do cântico ao Douro, rio dos seus enlevos:

«Amo-te sempre, ó Douro, quer em fúrias

Invistas contra as rochas, quer sereno

Deslizes, retratando em tuas ondas

Os álamos das margens...»

Cartas escritas, por certo, ao correr da pena, mas a que deu atenção, pois guardou cópia. São primorosas pelo recorte métrico, interessantes pelo relevo literário e apreciáveis pelo carinho que traduzem na estima dedicada ao seu grande amigo.

Diz nessa primeira poesia:

«O nosso pátrio Douro que sombrio,

Em torturado leito se revolve,

Nem sempre ao levantar a húmida fronte,

Depara montes íngremes e aspérrimos

Que o fazem suspirar de angustiado.

Aqui e ali, a natureza amena

Com ele se mostrou. Risonhos vales,

Gratas colinas, ginjeirais formosos,

Verdes campinas que interceptam veias

De límpido cristal, lhe orlam as margens...

Aí, um brando enleio voluptuoso,

Vence o soberbo rio, namorado

Dos verdores que o circundam. Brandamente

Se deixa adormecer, acalentado

Pelas canções que entoa a leve brisa,

Ao som das folhas dos virentes olmos.

Então, ferventes beijos deposita

Nas enfloradas margens, que perfumes

Lhe dão em troca. A fronte majestosa

Desenruga, olvidando seus pesares.

Lascivo, espraia suas frescas ondas

Em mais ameno leito. Já não geme,

Não brame enfurecido, maldizendo

As enormes montanhas que o oprimem

Em apertado espaço. Canções ternas,

Canções de amor, que só quem ama entende,

Enlevado murmura em brandas notas.

 

Em capítulo à parte vêm cartas, que merecem ser arquivadas, a Herculano, Castilho, Costa Basto e Custódio Passos; notas e impressões de uma curta mas intensa vida literária. A correspondência publicada com o pseudónimo «Diana de Aveleda» e outra que vai junta, é obra definitiva do autor, primeiro apreciada pelos leitores do “Jornal do Porto”, hoje admirada pelos que as possuem nas colecções.

Sobre ela notarei a que se refere a um folhetim de Ramalho Ortigão, a última da série, e em que Júlio Dinis é descaroável e violento, ao contrário do seu feitio benevolente e tolerante. É certo que vem em travesti feminino e isso obrigava-o à defesa das qualidades que exornam o sexo frágil, neste caso transformado em forte e até agressivo.

A colecção das cartas dirigidas a Júlio Dinis é bastante reduzida em número. Muitas mais deviam existir; mas até agora outras não foram encontradas.

Juntamos-lhe algumas referências aos seus trabalhos. Devem completar a falta de epistolografia estranha e mostrar como foi sentida a sua perda por alguns escritores portugueses.

Mas não podemos passar de amostras, pois seria longo e fastidioso arquivar o que foi escrito, mesmo em época remota, sobre o romancista portuense.

O volume termina com a publicação de esboços literários. São já conhecidos. Há um, todavia, «Excelente Senhora», que merece uma pequena referência.

Júlio Dinis manifesta na sua obra uma predilecção pela época de D. João ll.

«Estamos em Março de 1490», assim inicia o esboço da sua novela. Já no seu teatro, «Um Rei Popular», se refere ao reinado de D. João ll. Nesse outro trecho, que oferece interesse, foca o mesmo cenário e a corte dos nossos reis nesse brilhante período da história pátria. / 50 /

Herculano criou o romance histórico em Portugal. Estabeleceu-se corrente nesse sentido, embora nenhum dos seus imitadores o alcançasse.

Júlio Dinis não podia fugir a esta influência. A obra do grande historiador, no campo do romance, tinha-se espalhado pelos quatro cantos do país e penetrado em todos os sinédrios literários. Com certeza lera, como toda a gente de certa cultura, o Eurico, o Bobo, o Monge de Cister... e nesse tempo essas obras deviam tê-lo impressionado. Daí, desejar também explorar o género. Era, porém, necessário escolher a época e o assunto.

Na obra de Júlio Dinis encontramos focadas duas épocas e dois monarcas, em torno dos quais fez movimentar alguns episódios românticos e teatrais.

D. João V atravessa a cena, como príncipe D. João, na comédia «A Educanda de Odivelas». O autor, embora o considere personagem de estirpe, movimenta-o, como outros comparsas, sem respeito pela categoria, colocando-o em certos embaraços, atrás dos móveis do salão e reduzindo-o à categoria sempre desagradável de namorado infeliz.

Adivinha-se que o futuro rei não ganhou a simpatia do autor, como herói a celebrizar.

Já o mesmo não sucede com D. João Il. A sua época foi, por isso preferida para o seu estudo e romantização. A «Excelente Senhora» e o «Rei Popular» o atestam. Júlio Dinis, estrutura moral de eleição, cheio de fé patriótica nos destinos da grei, não preferiu, por acaso, esse período da história, madrugada das nossas máximas glórias, escolheu-o por aprazimento e de acordo com o seu modo de sentir.

No cume das suas idealizações histórico-literárias estava o Príncipe Perfeito.

Avanca, 1946.

EGAS MONIZ

 

______________________

NOTAS:

(1) - Maximiano Lemos, Gomes Coelho e os Médicos, pág. 20, Porto, 1922.

(2)Uma Família Inglesa.

(3) – Júlio Dinis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., tomo lI, pág. 19-20.

 

* * *

A CUSTÓDIO PASSOS

 

Transcritas do «Portugal Artístico»

 

I

Meu Passos

Escrevo-te de Ovar, onde estou desde quinta-feira às sete e meia horas da tarde.

A vila não me parece de todo feia.

Verdade é que eu fazia dela uma ideia tão desfavorável que pouco me bastou para me satisfazer.

De saúde vou alguma coisa melhor; contudo tenho tido ainda por aqui as minhas horas do célebre incómodo nervoso, que mais frequentemente experimentava aí.

Nesses momentos sinto vontade de retroceder para o Porto, tão aborrecido me vejo com todos e com tudo.

Tenho convivido com gente com quem mal me entendo; sou obrigado a admirar tudo quanto querem que admire. As horríveis figuras dos judeus que estão nos Passos deram-me que entender. Eu lia na cara dos que mas mostraram que as mais eloquentes interjeições, de que pude dispor, estavam muito longe de exprimir a admiração que eles julgavam dever esperar de mim.

Eu, por minha vontade, passava o tempo debaixo de um laranjal que há na casa onde moro e no qual, desde pela manhã até à noite, canta um rouxinol. Mas as visitas a fazer e a receber não mo permitem.

O doutor Zagalo, meu principal cicerone, é um tanto original. Tem-me maçado horrivelmente com as suas apologias ao século XIX e ao poder inventivo dos homens; é o Eugénio Pelletan cá da terra.

Falei aqui com o José Correia, que me pareceu um tanto arrependido de ter deixado Aveiro.

Se falares com meu tio Bernardo (1) e ele te perguntar se eu tenho escrito, diz-lhe que sim e que te contei maravilhas da terra. É uma coisa que o lisonjeia e que é de fácil execução.

Aqui já me valeu simpatias gerais o ter dito, logo que cheguei, que do pouco que tinha visto da vila fizera dela um excelente conceito.

Ora, tendo chegado de noite, eu não tinha visto coisa alguma.

Houve logo quem propusesse o vir eu residir para aqui.

Custou-me a achar um fundamento para declinar tão risonha perspectiva.

Se me escreveres, manda-me novas tuas e da tua família e também do Augusto Luso. Se escreveres ao Teixeira Pinto, que a estas horas deve ir a caminho do Fundão, recomenda-me. Adeus.

Ovar, 11 de Maio de 1863.

Teu amigo do coração

Coelho.

P. S. – Desculpa-me para com o Azevedo por me não ter ido despedir dele quando parti. 

/ 51 /

II

Meu Passos

Entre as poucas distracções que esta vila oferece aos seus visitantes, nenhuma tanto do meu gosto como a da chegada do correio.

Todos os dias me levanto mais cedo para estar às nove horas na loja em que se distribuem as cartas. Imagina tu uma pequena sala humildemente mobilada, com bancos e mesa de pinho e uma estante ao fundo contendo in-fólios de formidável aspecto. Um homem idoso, a quem chamam aqui doutor, mas de cujo grau ainda não tirei informações, como decerto já teria feito um nosso conhecido, toma fleumaticamente a sua pitada, conservando ele só uma imperturbável indiferença no meio da ansiedade de quantos o rodeiam.

Mais de trinta pessoas, homens, mulheres e crianças, sentadas no chão, no limiar da porta e na rua, fitam com impaciência a esquina de onde deve surgir o portador das cartas.

Quando este aparece, todos se levantam a um tempo, e apinham-se sobre o mostrador, como se pretendessem abafar o pobre do doutor.

Este, cônscio da importância da sua pessoa, retira-se, de uma maneira grave, ao seu gabinete, sujeita as cartas recebidas a uma tal ou qual classificação e volta para distribuí-Ias. É o caso de repetir aqui pela milionésima vez o Conticuere omnes perfeitamente aplicável à situação. O homem lê pausadamente o nome da pessoa a quem vem a carta sobrescritada, estende-se um braço, entrega-se a carta e, às vezes, é ali mesmo aberta e lida. Á medida que o maço se vai esgotando, é para ver as transições por que passa a fisionomia dos que ainda nada receberam desde que principia o receio até quando se desvanece de todo a última esperança.

Faz pena vê-los partir tão desconsolados. Escuso dizer-te que eu não sou simples espectador desta cena, mas actor e dos mais Possuídos do seu papel. É com uma quase sofreguidão que eu recebo a correspondência do Porto, que leio ali mesmo pela primeira vez.

Na quinta-feira proporcionaste-me tu um prazer com a tua carta, cuja letra imediatamente reconheci. Li-a no correio, reli-a no adro da igreja, enquanto esperava pela missa e, logo que acabei de jantar, tornei a lê-Ia, e ainda quando me preparei para lhe responder.

Sob o pretexto de dormir a sesta, pude reservar para mim o tempo que medeia entre o jantar e as cinco horas da tarde; é então que leio, escrevo, ou não faço nada, o que é também um passatempo. Se não fora isto, prevejo que me obrigariam a ver quantos nichos e oratórios tem a vila ou quantos quintalejos quis a sorte que meus parentes, próximos e remotos, possuíssem aqui na terra.

Não me aborrece escrever para o Porto; é um trabalho como o das sementeiras, que se faz com a esperança da colheita futura. Actualmente estou em correspondência com toda a minha família, inclusive com meus três sobrinhos, de quem tenho recebido pequenas cartas que me têm feito rir.

Por felicidade minha encontrei aqui o José Correia, em casa de quem passo as noites, conversando em família, e formando castelos de cartas com dois galantes filhitos que ele tem. É uma vida morna a que se passa aqui.

Para falar a verdade, nem sei bem o que me obriga a demorar-me ainda; é certo, porém, que, tencionando partir para Aveiro no domingo que passou, ainda para domingo que vem tenho um passeio projectado com a família Correia e não posso dizer em que dia da semana próxima seguirei viagem.

Têm-se-me proporcionado ocasiões de fazer algumas visitas e frequentar certas partidas que há por aqui às noites, mas tenho-me abstido de as frequentar por me parecer um passatempo sensaborão para quem, mesmo no Porto, não morre de amores por esse género de divertimentos. Mais depressa me verão a escolher feijões na casa da eira, como ontem fiz, ou a conversar no escritório do recebedor de décimas, grande original que vim encontrar aqui, um verdadeiro tipo de romance. Chama-se o Sr. Tomé Simões. Fui-lhe apresentado pelo Correia.

Participo das tuas apreensões em quanto ao Teixeira Pinto; também me parece que, depois de tantas hesitações da parte dele, escolheu mal a carreira que lhe convinha. Concebo quanto lhe devia ter custado deixar o Porto pelo seu desterro para o Fundão. Sinto a sua partida também pela mãe a quem ela deve ter causado um pesar difícil de desvanecer.

Tens falado com o Alfredo Cardoso? Acaso voltará ele deveras aos hábitos literários há tanto tempo perdidos? O quintal que ele possui aqui está perfeitamente situado e, sobretudo, tão povoado de rouxinóis, que, por vezes, me tenho sentado na borda de uma ponte que lhe fica próxima para os ouvir cantar.

Escrevi ao Nogueira Lima; tinha-lho prometido e fi-lo com vontade por saber que é homem exacto em suas contas epistolares; e não há para mim prazer como é o de receber cartas. Não sei já o que lhe disse; nada de interessante. As minha cartas são escritas para ter direito a uma resposta; pois não me querendo meter a descrever a vila de Ovar, não sei o que hei-de dizer em quatro ou seis páginas de papel.

Há oito dias que estou em uma rigorosa abstinência de notícias do reino e estrangeiro; podia mandar que me enviassem para aqui os jornais, mas não quis. Esta ignorância é também higiénica. Não há digestões tão boas como as da gente que não lê folhas depois de jantar. Parece-me que não digeriria tão bem um / 52 / cozinhado de enguias que comi, se estivesse a ler «O Comércio do Porto».

Agora estou à espera que dêem quatro horas para ir com a família Correia a uma aldeola das imediações, que me dizem ser um sítio pitoresco. Vamos visitar uma tal Sr.ª D....., filha de um já falecido capitão-mor e que tem presunções de nobreza tão arreigadas, que não se digna visitar a maior parte das famílias da vila. É uma preciosa ridícula, cuja única boa qualidade é fazer muito bom doce, graças à sua educação do convento.

Visitei aqui o Fonseca; é sempre o mesmo homem. Ainda hoie fala das suas passadas glórias de empresário e nos tempos de saudosa recordação, em que ele tocava rabeca no teatro académico.

Fizeste-me tu um convite na tua carta, que eu de boa vontade aceitaria, se as minhas disposições de espírito, neste momento, me auxiliassem no empenho. Animaste-me a escrever. Com essas tenções vinha eu e até esperava encontrar na localidade os fundamentos da obra.

Todos os dias, depois de jantar, me conservo meia hora pelo menos conversando com a santa gente em casa de que estou hospedado, interrogando-a sobre costumes da terra, crenças e factos sucedidos; mas, por enquanto, a colheita que fiz é escassa e duvido que por ela me seja possível mais tarde fazer obra.

Precisava para isso demorar-me mais tempo por aqui, o que não seria demasiado aprazível.

Por enquanto nada escrevi e até pouco tenho lido. Mas quem dá tais conselhos, porque não os adopta? Acaso terás tu chegado já a atingir aquele grau de desalento de que me falas? Odiar-te-ás a ti próprio?

Ora vamos; esse excesso de misantropia é indesculpável, sobretudo em quem só precisa de um pequeno esforço para avivar um entusiasmo que pode ter adormecido por instantes, mqs que não creio se tenha extinto de todo.

Ovar, 16-5-1863.

Teu amigo do coração

Coelho

 III

Meu Passos

Antes de mais nada quero agradecer-te o interesse que espontaneamente tomaste por o negócio de meu primo, que um mau fado parecia apostado a contrariar em tudo.

Enviei-lhe imediatamente o pós-escrito incluso na tua carta e imagino ter mandado com ele uma nova duplamente agradável para aquele padecente, de quem tenho recebido cartas escritas em cima de lençóis e travesseiros, e ditadas por um espírito em luta com os dissabores de uma impertinente e complicada moléstia.

Há pessoas com quem a sorte se diverte, sujeitando-as a toda a espécie de provações. Se ao fim destas ainda lhes fica um resto de paciência, são verdadeiramente admiráveis. Meu primo está neste caso; poucos terão gozado menos e suportado mais. (2)

Há dias recebi uma carta do meu tio Bernardo em resposta a outra que eu lhe escrevera, agradecendo-lhe os oferecimentos que em nome dele me fizera aqui em Ovar o seu procurador.

Há um período nesta carta que ipsis verbis transcreverei, até porque a redacção tem o estilo do homem.

– «Agora falarei na demanda passada e injustamente vencida em primeira instância; falo do concurso; já se fala pouco nele; maravilhas são três dias, diz o ditado, mas ainda de quando em quando lá leva a sua trincadela algum dos lentes. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele; não tem nenhuma folha do Porto falado nisso, mas há desconfianças de que a Gazeta Homeopática o venha a fazer; o “Jornal do Comércio”, de Lisboa, já o fez. É de 13 do corrente.»

Este período, com sua linguagem um tanto imaginosa, veio-me recordar uma coisa que, para te falar a verdade, me ia passando da ideia, e uma vez que assim aconteceu, sempre desejaria saber o que disse o Jornal do Comércio provavelmente na correspondência do Fr.

Se o leste diz-me em duas palavras o que é.

Favoravelmente para as terras, mas desfavoravelmente para mim, temos a chuva connosco.

O que seja Ovar em dias de chuva, e consequentemente o que seia a minha vida nesta vila, poderás tu facilmente julgá-lo; o que neste caso, ao contrário daquele de que falou Camões, vale muito mais que experimentá-lo.

O dia de quarta-feira e a noite passei-os eu verdadeiramente enclausurado, receando aventurar-me nos arquipélagos insidiosos em que se haviam transformado as ruas desta vila.

Conto por toda a semana que vem partir para Aveiro.

Eu tenho evidentemente tendências para estacionar. Estou aqui há quinze dias, conheço que não me tenho divertido demasiado, e vou ficando, e custa-me resolver a continuar a jornada.

O prazer que experimento nesta vida que levo em Ovar pode-se comparar ao de um banho tépido; agrada-me, adormecendo-me. / 53 /

Porque dormir durmo-lhe bem agora. Felizmente que já não tenho ti-do daquelas insónias insuportáveis que, entre vários incómodos que me afligiam, não eram dos menores.

Será radical esta cura? Veremos.

O Nogueira Lima já me escreveu. Não desmentiu para comigo a sua infalibilidade epistolar. Pediu-me ele daqui algumas curiosidades arqueológicas; vejo-me, porém, tão incapaz de o satistazer como ao Augusto Luso na sua encomenda de moluscos. Tudo o que encontro seria muito novo para um museu de arqueologia e velhíssimo para um de história natural.

Verdade é que os meus olhos não têm os predicados de olhos exploradores e que eu respeito muito os Iodos desta terra para os revolver à procura de caracóis.

Terá sido mais feliz neste particular o Outeiro em Lisboa?

Que é feito dele?

Acabaria já de catequizar o Gaspar Pereira e viverá ainda nas delícias de Cápua, esquecido do Porto, de Fânzeres e de si próprio?

Quem por certo não está a estas horas tão filosoficamente resignado como o padre Outeiro é o Teixeira Pinto.

Tens notícias dele?

Já cairia no Fundão?

Estou curioso por saber qual a natureza das impressões que ele recebeu da terra que vai ser talvez por muito tempo a sua pátria de adopção.

Não sabia da estreia do Noronha; sinto que se metesse a fazer a corte à poesia quando tão bem se dava com a música.

É uma infidelidade indesculpável. O pior dos males não é que a amante lhe seja pouco fiel, mas sim que a esposa ressentida se vingue, atraiçoando-o também.

Acontece disso às vezes e é sempre uma calamidade. Ainda não procurei o original de que me falaste na tua última carta; sei já, porém, onde mora e tenciono visitá-lo antes de me retirar. Apresento-me sob a tua protecção.

Tenho notado que em Ovar os tipos não degeneraram ainda.

Entre os males que traz a civilização consigo, um deles é, a meu ver, a deterioração dos tipos clássicos. No Porto já se não distingue facilmente um médico de um advogado, este de um boticário ou de um padre; a confusão não vem só do vestuário, que todos capricham em fazer à moda, vem dos hábitos, dos assuntos predilectos de conversação, dos gostos e opiniões que dantes variavam em cada classe e hoje tendem cada vez mais a tornarem-se comuns a todos.

Em Ovar não é assim.

O médico é ainda aqui o antigo médico que se denuncia às primeiras palavras; o merceeiro apresenta todos os caracteres próprios da espécie; o padre é o padre tipo; o doutor em direito, ao qual se reserva aqui o nome de bacharel, conserva ilesa a sua bacharelice.

Não podia deixar a terra sem observar o boticário, que espero será um bom exemplar; pois mesmo no Porto é a classe que menos se tem adulterado. O Sr. Teixeira de Pinho será pois o escolhido para este filosófico estudo.

Mas falemos sério. Ovar tem efectivamente mais que notar em quanto a homens do que em quanto a coisas. Há mais biografias excelentes e aproveitáveis do que pontos de vista. Estou fatigado de tantas planícies; é uma monotonia afinal, e, às vezes, chego a sentir desejos de exclamar, quando me mostram qualquer subúrbio da vila:

– Uma montanha, pelo amor de Deus!

Aveiro julgo que é a mesma coisa. Se for ao Buçaco, o contraste deve fazer-mo apreciar ainda mais.

E como o Buçaco é uma solidão e esta é favorável à poesia, não estranhas que eu salte dela para o assunto de que te ocupaste, incitado por mim, no final da tua carta.

O je n’écris... pourquoi? Je n'en sais rien Parce qu’il le faut pas, com que, invertendo as palavras de Chatterton, pretendes responder à minha pergunta, seria razão plausível e irrespondível, se eu pudesse acreditar que ela ou outra qualquer te tem de facto impedido de escrever.

Permite-me usar da franqueza que me concede a amizade para te dizer que não o creio.

Em quanto à possibilidade de escrever em termos de que dizes ser o primeiro a duvidar, também me parece seres tu o mais incompetente juiz para a avaliares, pois julgo que o homem que crê demasiado nas suas forças e se satisfaz completamente com as suas produções é, como diz o Herculano, impotente e incapaz de qualquer educação literária.

E com isto termino.

Ovar, 11 de Maio de 1863.

Teu amigo do coração

Coelho

__________________________________

(1) – Farmacêutico da Rua do Loureiro, no Porto, e natural de Ovar, já falecido.

(2) – Referência a José Joaquim Pinto Coelho.

 

páginas 39 a 53

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte