Vaga e lata matéria, neste ensejo me
propus pare discretear, «currente calamo», sem cabedal de
erudição pois ocasional excursionista em matérias do domínio da
etnografia, e eu próprio a distanciar-me das consuetudinárias
propensões dos meus conterrâneos – cagaréus, ceboleiros e bicudos –
das gerações passadas ou da minha meninice já remota.
Prescrever-me-ei a um tema de
estreme sentido aveirense: aos costumes de uma terra que, ainda,
ingloriamente, tenta perseverar nalguns predicados e tendências
próprias, mas, na cola das mais volúveis ou permeáveis, arrastada na
avassaladora corrente planificante e uniformizadora, as vem
adulterando, degradando e proscrevendo à dissolução, ao abandono ou
às delidas lembranças.
Os costumes autóctones, de criação
local, ou os aceites e afeiçoados ao estilo aveirense, pareceriam,
porventura, tão funda e irremovivelmente integrados na vida social
da cidadezinha desabafada e radiosa, desta terra de gente que remava
ou remara, e se tisnara ao iodado sol dos esteiros, cales e praiões
da laguna, muito mais do escorreito povo e de uma empreendedora
classe burguesa, a que o Vouga e o mar abriam caminhos de tráfego
mercante e onde a aristocracia, embora numerosa, nunca lançou as
raízes intransplantáveis, afigurar-se-iam tão arreigados no povo
vinculado, perpetuado, como os caracteres geo-paisagísticos mais
identificadores e insinuantes.
E, todavia, esses como que genes
telúricos de colectiva hereditariedade, vão sendo submergidos pelas
caudalosas correntes, na miscigenação ou na invasão por múltiplos
meios dos elementos dominantes da cosmopolitização, absorvente de
todas as singularidades.
Vão desaparecendo e deixando vazios.
Memorizam-se já, nesta hora, mais do
que se exercem. Flores emurchecidas, ou despertadoras de
enternecidas recordações – entre folhas de albuns conservadas, mas
esquecidas – avolumam as cargas que em nossa capacidade de
reminiscências vinculatórias e sensibilizadoras, constituem as
lembranças e as saudades, o que passou e apenas se evoca.
Os costumes representam permanência,
mais ou menos dilatada, um agarrar-se no tempo e furtar-se-lhe à
fugacidade e, assim, um legado e património. O dia de hoje
caracteriza-se pela instabilidade, por movimento renovador, e pela
osmose do que a industrialização e a sugestão por via dos meios de
comunicação – tão benfazejos na generalidade das consequências – e a
propaganda, com suas insinuações predeterminadas, se interpõem às
nossas faculdades de opção, e impõem nos gostos e nos hábitos cada
dia mais universalmente uniformizadores.
E, no entanto, neste mundo – agora,
certamente, em menor grau, mas ainda como há mais de um milénio,
quando Aveiro nasceu –, na Terra existem terras e sítios. As terras
são os sítios habitados, onde os homens se estabeleceram e lançaram
raízes no solo. E deram frutos. São sítios onde os homens se fixaram
e nasceram outros homens. Que, a terra deserta, nunca é uma terra,
mas um sítio: geografia física e não geografia humana.
As raízes lançadas pelos homens
transformam a fisionomia do solo meramente orológico, infiltram-Ihe
o que deles transpira – suor e alma – animam-no, caracterizam-no.
Infunde-lhes o solo, por processos ecológicos, alguma sua
peculiaridade influencia-os pelo clima, a alimentação que
directamente lhes prodigaliza e o género de trabalho que lhe
faculta.
A mesologia é mista. Resulta da
terra e simultaneamente da permeabilidade da gente que a habita; da
receptividade e do modo como responde às suas suscitações e, assim,
do que lhe transmite. O seu reverso actuante provém do que se
generaliza nos membros da comunidade que nalgum trecho do globo se
radicaram, e, como agregado, unidos por laços de solidariedade,
/ 70 /
medraram como unidade gregária, integrante mas diferenciada.
A mesologia processa-se como um
fenómeno receptivo e um eco. Como uma satelização, que se alimenta
da luz alheia e a reflecte, com suas faculdades próprias de espelhar
e dar novos rumos e diversas intensidades aos raios luminosos
incidentes.
Aveiro, a cidade que nasceu, como
uma tremonha de sal marinho, da laguna em gestação, reverberadora de
luz, apegadora dos operosos marnoteiros originários – como o cristal
do cloreto de sódio é a concentração do que à água do mar de eles
extraem, com o travo picante e o ressaibo de uma fisiologia
alentadora, se não um diferenciado animismo da própria linfa
mineral.
Aveiro era um vago lugar no mundo,
diferente mas ainda não humanizado, aqui há pouco mais de um período
milenário, que convencionamos atribuir à sua nascença.
Tinha água – que, insistimos, é
espelho – e sedimentava-se com os resíduos da terra arrastada, ou
pela erosão das rochas serranas, que em suspensão outra água
carreava. Era Iodo e argila branda. E desse barro, dessa matéria
maleável se moldou e se tornou habitáculo para os homens vindos das
regiões da serra ou das velhas praias da costa, estabilizada e, como
a montanha, firme.
Capturariam na água o peixe, usando
de artes incipientes ainda não adaptadas às novas condições e,
quiçá, a patinhar nela, caçariam as aves aquáticas migratórias,
afluídas ao acidente lagunar em formação.
Com ela, a água marinha que o cordão
litoral crescente abraçava, produziriam o sal – a faina de todas a
mais influente na fixação do homem, na sobrevivência do povoado e na
própria paisagem rasa, onde, apenas, como tendas, nas eiras, de chão
mais firme, acampam os cónicos montes, brancos como as velas e as
asas, e cintilantes.
Dessa protohistória alvariense
ficariam a lição e os vestígios vocabulares dos árabes –
introdutores ou não da salicicultura nesta costa marina – que pela
península investiram até paragens nortenhas.
E, então, com rudimentaríssimas
moradias – por maioria de razão ainda mais sumárias do que as
referenciadas por Marques Gomes,
(1) em relação a meados do
século XV, na área hoje abrangida pela zona ribeirinha da freguesia
da Vera-Cruz, construídas de adobos de lama e cobertas de colmo – se
estabeleceram uns quantos homens animosos, para grangeio de nova
vida de maior proveito.
Então criaram a Alavarium medieva,
paupérrima, formada de casebres, cujas cérceas – se é cabido o
hodierno termo da nossa arquitectura urbanística – não excederiam os
cumes dos montes de sal das safras normais, e, na área, não
excederiam as «mulas» dos mais vastos malhadais.
Foram esses os nossos ascendentes
mais remotos, vindos de algures, de raça não determinada,
gerescedores da grei aveirense a que podemos chamar indígena. Os
filhos desses pioneiros da nossa característica actividade de amanho
das salinas vieram já parturejados alvarienses, e, primeiros de
nascimento, pela primeira luz que os olhos lhes captaram, e pelo
primeiro ar salgado que nos pulmões lhes penetrou, e lhes enrubesceu
o sangue e lhe entrou no coração e os tornou tributários de algum
sentimento de adesão à terra.
As casas cobriam-se de colmo, talvez
da própria bajunça com que das chuvas dos Invernos se protegiam os
cónicos montes de sal. Cobriam-se do colmo que nascia, espontâneo e
abundante, nos terrenos alagadiços recém-formados. Só com o andar
dos tempos, a incipiente capacidade artesanal – já que seria
pretenciosa impropriedade empregarem relação a essas remotas épocas
termo tão dos nossos usos como que é a tecnologia –aproveitaria o
barro do ao redor da moradia rústica para produzir a malga do caldo
e a telha. Só com esta colocaria a primeira nota avermelhada no
ambiente onde dominavam os tons verdes, de larga gama, tenros ou
secos, e tão só se evidenciava nos róseos arrebóis ou nos escarlates
dos poentes – esses mais remotos que a Pelagia Insula que se tem
visto coincidir com o advento da formação lacustre que, centúrias de
anos após, tomou o nome de Ria de Aveiro. E adoptou esse crisma da
Ria, que é legenda dos nosso cartazes, espelho do nosso narcisismo
bairrista e nosso «slogan» sintético para proclamação de
divulgadoras aliciações, e satisfez a nossa ufania glóssica para a
designação e fixação nas retentivas, nossas e alheias, dessa
primacial fonte de beleza e riqueza.
E pouco importa se, por analogia não
muito rigorosa com outros complexos aparelhos hidráulicos naturais,
que não estamos obrigados, cidadãos comuns, aveirenses-homens da rua
a acompanhar os geógrafos que velam pela austera e estrita
propriedade terminológica da sua ciência.
O sentido estético da linguagem e a
consagração do uso sobejariam para uma adopção perene e inalienável,
e para uma cabal justificação semântica. E uma coisa são os
cientistas com seus rigores e definições, e outra nós, que, se não
fizemos, baptizámos, e deste costume e gosto, e espírito afectivo de
família de dizer Ria de Aveiro, não abdicamos. Seria como que uma
abjuração. Raul Proença o notava uma vez a um dos mais ilustres e
prestantes aveirenses deste nosso século.
A evolução do mais que milenário
povoado lagunar – Ria é substantivo feminino, de que ainda se não
parturejou um adjectivo condigno – o seu processo longo de formação
e configuração multi-pseudópica,
/ 71 /
está cheio de soluções de continuidade, no que chegou ao nosso
conhecimento documental ou à nossa inteligibilidade.
Sabemos, todavia, de ciência certa,
largamente evidenciada e comprovada, ser o sal um produto
essencialmente comerciável. Para temperos, para salgas de carnes e
peixes – exclusivos modos de conservação antes das aplicações
generalizadas do frio para curtumes, e para a ministração do
sacramento do baptismo – ao menos anteriormente às dissaboridações
que os tempos de hoje, simplificadores, redutores dos actos da vida
à expressão mais desnudadamente simples, trouxeram à nossa
comodidade.
Ora, como o sal de Aveiro –
repare-se – através de todos os séculos da história nacional, se
baptizaram, na generalidade, os habitantes de todo o norte do País,
e de larga parcela das Beiras. Nesta nação de cristãos essa
cooperação aveirense, em consagrá-los como tal, foi constante – e
creio que nunca assinalada.
Mas o comércio é troca, corrente de
vai e vem, como as nossas marés, que, em cada dia, levam a água
poluída, ou destemperada com a dos rios, a água venosa ou
desatonizada, e no-Ia devolvem depurada e revitalizadora.
As mercadorias são conduzidas por
homens que andam de lá para cá, e regressam, como o aquiliniano
Malhadinhas – «Aveiro vai, Aveiro vem!...» – símbolo de almocreves,
hoje motorizados. Alguns estanceiam e permanecem.
Os homens, efectivamente, vieram da
serra ou de outros locais de chão firme, como os materiais
arrancados ao solo, que o rio carreia, deposita e sedimenta. E com
eles germinou e medrou a terra – a terra com gente identificado, com
uma personalidade colectiva própria, de gestação e apropriação
assimilada.
A terra foi-se personalizando e
criando história, dando nova e naturalizada feição ao usos
confluentes de diversas proveniências, ajustando-as ao ambiente, e
radiculando e reamoldando, e forjando tradições e modas, e estilos.
Salineiros, os alavarienses dos
primórdios da povoação originadora de Aveiro, algum dia tornaram
festiva a «botadela» das marinhas – a passagem decisiva da fase
preparatória para o início da produção do sal.
Celebrariam nesses longínquos
tempos, ou coevos da famosa Condessa Mumadona, ou, provavelmente, já
precedentes, apenas a congratulação por haverem atingido o momento
retribuidor de obter o proveito concreto de um canseiroso trabalho
prévio? Ou representaria esse acto simbólico e jubiloso, qualquer
espécie de ritual propiciatório, com cantares e danças, farta
refeição e abundantes libações alegradoras?
É tão contingente, tão dependente
das volúveis condições metereológicas, cada safra salineira, que não
será presunção excessivamente ousada admitir tal conjectura.
Para essa prática costumeira,
subsistente mas em decadência, não se encontra similar em qualquer
fase inicial do amanho agrícola da região. Verificamos manifestações
de regozijo nas alturas das colheitas. Quando ainda se não colheu o
produto do trabalho, só na salinagem.
Aí se encontrará, porventura, o mais
remoto dos costumes locais. E esse, persiste, ainda que desbotado de
colorido, com decresci da alegria – que o marnotear perdeu prestígio
e aliciação, e já não dá salário que compense. Repare-se, salário,
com o consabido significado de remuneração do trabalho, a partir do
sal. Do sal e nem sequer do pão.
Nos primeiros lustros deste século
vertiginoso, a «botadela» era ainda festa, dia de lida tensa,
afanosa, célere, contra-relógio, de suar as estopinhas e deitar os
bofes pela boca fora, de esforço extenuador; mas dia de triunfo, de
alegria esfusiante, de solidariedade e comunhão. Era o chegar à
meta, na primeira grande etapa de uma corrida.
Um escritor aveirense – tipo,
talvez, do que, com muitos motivos de injustiça, se convencionou
acoimar ironicamente como «literato provinciano» – descreveu o
«botar» da marinha, com pormenor vivaz, num dos seus contos de mais
flagrante sabor local.
Um marquês tomara-se de amores por
uma tricana, uma dessas beldades já lendárias da genuína casta
aveirense, popular e patrícia, que, nos momentos de lida intensa da
marinha amanhada pelo pai, se dobrava em «salineira». Sem esforço se
identifica o titular de alta estirpe que o inspirou, e cuja morte
súbita ficou como que a sugerir suspeitas de um drama passional.
(2)
A «botadela» de uma marinha
Chamava-se Ermezinda essa rapariga
«de talhe esbelto, graciosa, de olhos húmidos e meigos», dotes
naturais a que juntava «um donaire sedutor, uma especial fascinação
que ressaltava do seu gosto fino, quase aristocrático».
Em largas pinceladas que o decorrer
do romancezinho entrecortava com a narrativa de feição etnográfica,
dava-nos o ficcionista – nesses bons tempos da «belle époque» em que
havia tricanas deslumbradoras e se podiam chamar Ermezindas,
romântica e enlevadoramente – um quadro vivo, movimentado e alegre,
dessa hora em que o trabalho se efectuava em sua própria
glorificação.
Sigamos-lhe o relato. Haviam
abordado à marinha exuberantes ranchos de raparigas, gárrulas,
graciosas e sadias, se calhar trigueiras, como aquelas que
impressionaram Júlio Dinis – «trigueiras como em parte nenhuma» –
porque nadas e criadas na Beira-Mar, em torno do S. Gonçalinho ou de
S. Roque.
/ 72 /
Comandava as operações do amanho da
salina o Faneca. Repare-se, o Faneca. Ainda a gente se conhecia, em
Aveiro, sem vislumbre de melindres, pelas alcunhas, hereditárias
como apelidos familiares e tão inalienáveis como se na pia baptismal
fossem consagradas. Vinham chegando os marnotos vizinhos para
fraterna ajuda, que a faina exigia rapidez, e constantemente o
máximo de robustos braços experientes.
Faneca, marnoto e general das
operações, distribuíra as tarefas pelos cooperadores. E, então, o
contista-regionalista, com rigores meticulosos de etnógrafo e
propósitos de registo do léxico específico, fixa, em cuidada prosa,
a faina agitada desse dia, como que do parto das primeiras tremonhas
alvas e cintilantes: (3)
«Os meios já secos,
solidamente batidos, apenas aguardavam a ândua. Os homens
começaram a derretê-Ia com os ugalhos, e a estendê-Ia,
amaciando-a depois com os vasculhos numa camada fina, muito
igual».
Não importa que surpreendamos
enbevecidas trocas de olhares entre a esbelta, a fascinadora filha
do marnoto, e o aristocrata – que o ficcionista, como dissemos, não
inventou, senão parcelarmente –, nem fazer reparo nos ciciados
segredinhos do furtivo namoro, – não havia tempo a perder. Todos se
atiravam ao trabalho com ardor. Surgiu um borborinho afanoso. As
raparigas correram a encher as canastras de areia do mar. As
cantigas reboaram cristalinas, desafiando o estro dos rapazolas.
Deslizavam como arvéloas – eram as mesmas que seguravam a chinela
quase só com o dedo polegar dando à marcha desenvolta, a beleza
volátil de um passo balético ou precisamente do saltitar de uma ave
– por cima das barachas, o busto erecto, airoso,
deliciosamente requebrado, fazendo tremer os seios redondos e
pequenos».
Era o termo, o ponto culminante da
tarefa; «A marinha refulgia, agora, areada e branca, toda
riscada de marachões e barachas semelhando uma ampla
folha de papel quadriculado». (José de Almada Negreiros, poeta,
pintor, vidente com proféticos olhos egípcios, dizia, «os caixilhos
das janelas do céu» e via melhor que o patrício, literato e músico,
mas de vistas de mais limitado alcance.) E o nosso conterrâneo
registrador da característica lida da salinagem, prosseguia: «Dos
lagrimais escorria um fio ténue de moura, que alastrava
vagarosa, insensivelmente, até, por fim, inundar os meios,
fazendo-os brilhar como espelhos». A botadela da marinha
estava assim efectuada, só restando, daí em diante, a acção do tempo
para se operar uma completa cristalização.
«No dia seguinte as razoilas
já teriam que arrastar, formando sobre os tabuleiros pequenos
montículos de sal novo, os pintaínhos, brilhantes como açúcar
candi.»
Depois, terminada a operosa faina,
meio extenuados, atiraram-se todos à sopa apetitosa, ao conduto
quente, oloroso, reparador, e fizeram girar de mão em mão as cabaças
de bom palhete refrigerante. E dançou-se, soaram cantigas,
maliciosos improvisos, até ao cair da tarde. Findara a «botadela»,
que remontaria, de certo, aos árabes, com evidente rasto na arte da
salinagem e na terminologia.
/ 73 /
E, se, verosimilmente, comecei pelo
primeiro dos costumes, consinta-se que trace alguma ordem neste rol,
forçosamente desconexo. Procurarei, quanto me for possível, manter a
cronologia do calendário anual. E recuo, assim, de salto, um longo
semestre. Retrocedo do tempo estival, calmoso, propício à labuta
salicícola, para o cortante início do ano, porventura com as nuvens
acasteladas no céu de maus presságios e açoitadas pela nortada
frígida, ou com enluaradas noites de Janeiro, celebradas pelos
vates, e frio húmido, penetrante até aos ossos, emperrante dos
gonzos articuladores dos membros, e, pois, a requerer agasalhos
aconchegadores e, assim, os gabões, a peça de vestuário criada,
digamos, ecologicamente.
Os gabões de Aveiro, uso
perdido – apesar de uma, mais ou menos vã, ainda que louvável,
tentativa de ressurgimento – relegaram-se à evocação da passada
indumentária característica.
Tão ao sabor de Aveiro como as
embarcações da Ria, havia irradiado como agasalho e vestimenta ou
envoltório para disfarce ou ocultação previdente de divagações
furtivas, maus passos, ou aventuras que exigiam capas não
translúcidas. Em certas circunstâncias de sigilo conveniente às boas
reputações, cada um, com o gabão, se poderia furtar a olhares
indiscretos e a línguas malévolas, badaladoras da novidadezinha
comprometedora.
Eça de Queirós – esse imorredouro
«pobre homem da Póvoa do Varzim» que, no fundo e até final, ficaria
um «filho de Aveiro, quase peixe da Ria» – lembra-os nesta função
acobertadora de passos a que não convém as testemunhas mais ou menos
incontinentes e linguareiras. E, também, no seu espesso pano de
surrobeco, ou mais graduada fazenda, as reminiscências da meninice,
passada em Verdemilho ou na cidade, a dois passos da igreja
paroquial de Nossa Senhora da Apresentação, na mais específica
função agasalhadora.
Um grupo de salineiras. |
Já algures o apontei nestes precisos
termos, mencionando as referências do grande escritor a Aveiro:
...«O gabão, agasalho então em voga por todo o país, dentro do qual
se encolhia o «famoso Craveiro» enquanto congeminava a «Morte de
Satanaz» e que o próprio Carlos da Maia, elegante e rico, não
desdenhava de encafuar nas suas visitas à «Toca», para mais fácil
dissimulação».
Na quadra dos «Ramos», nas noites
gaudiosas, aparece ainda hoje, em esporádicas exumações – que o
costume exige-o, como à opa pela manhã.
Com efeito, no início do ano, como
na derradeira semana do precedente, a cerimónia festiva do
calendário tradicional subsiste ainda – e cremos que por longos anos
ainda – na «Entrega dos Ramos».
|
Esta decaiu, desluziu, humildou-se
na ostentação e nos ruídos comunicativos. Perdeu o vigor de
centrípeta aglutinação dos espectadores partícipes de mera adesão
comunitária ao júbilo e à emoção dos mordomos. Tornou-se uma festa
que já não envolve a generalidade dos fregueses de cada paróquia, e
se cinge aos que nela efectivamente actuam, mas perdura. Declinou
quase exclusivamente nos «parceiros», em cortejo que passa, de dia
ou à noite, sem despertar na gente moça o desejo de o acompanhar e
acrescer, desfile garrido ou gárrulo, mas já de escassíssimo eco nos
sentimentos e nos hábitos.
Na sobranceria indiferente de
evolvidos usos e predilecções, pelas usanças consideradas residuais,
e, dia a dia, demudados e em cosmopolitização, alheadamente se
presencia como uma banal estampa em movimento.
E, entretanto, mais de dois séculos
e meio de alterações de costumes, e mais salientemente este em que
vivemos – uniformizador, com progressivas e aceleradas tendências
para o monótono figurino universal – ainda não extinguiram esta
típica, porventura singular tradição aveirense.
Atribuiu-se uma data relativamente
remota, dos princípios do século de setecentos, ao início desta
/ 74 /
cerimónia de motivações de pura religiosidade, naturalmente
influenciada por uma colectiva psicologia aveirense mas mesclada de
paganismo ou, pelo menos, de um flagrante laicismo, nos orgíacos
folguedos e ágapes, aliás sem imoderações que escandalizem, e sem
esquecer, quanto a estes, famas e proveitos de apetites
pantagruélicos de abades que por eles deixaram maior aura que pelas
virtudes apostólicas.
Socorrer-me-ei do escritor e
pensador aveirense de evidência nacional, que foi Jaime de Magalhães
Lima. Testemunha qualificada das entregas, em tempos de um esplendor
e expressão que já não pude observar nem partilhar, na evocação que
delas deixou, no seu estilo pessoalíssimo, há boas quatro décadas,
(4) considerava os Ramos como «um símbolo precioso de uma
sujeição apetecida», como «uma bênção, um consolo e um conforto, luz
do céu, afago que protegia de todos os males o lar onde entrara».
A descrição tem tanto de exacta como
de sugestiva.
«Quem recebia o ramo à porta, descia
à entrada da casa, no melhor trajo, a acolher o hóspede bendito. No
patamar punham-se almofadas, quanto mais ricas melhor, e sobre elas
ajoelhavam o irmão que recebia o ramo e o que o entregava.
«O que o entregava beijava-o antes
de o deixar, e quem o recebia, beijava-o por sua vez, ao tomá-lo nas
mãos, e imediatamente o passava à mulher mais graduada da família.
/.../ que ali estava já /.../ para desse modo confessar a sua fé
enternecida e prestar culto e reconhecimento às honras que
partilhava. Depois, os dois parceiros erguiam-se e abraçavam-se, e
os irmãos que vinham no cortejo apressavam-se, um por um, a abraçar
o neófito.
A
Capela de S. Gonçalinho. |
«Na igreja ou nas capelas o ritual
da entrega era o mesmo». (E aqui interromperei, para observar que
ainda é). «E sempre, enquanto a entrega se consumava, se ouviam as
músicas e os foguetes, e muitas lágrimas de comoção se derramavam.
Era a visita do Senhor!... A ela se associavam os estranhos amigos
dos «irmãos», concorrendo para a realçar com grande número de
foguetes. Se se tratava de pessoa de muitas relações e estimada, os
foguetes, no momento da entrega, eram um chuveiro atroador.»
Prossigamos com o mesmo depoimento,
inexcedível de precisão e relevo literário:
«À noite, a exaltação orgíaca
coroava o alvoroço religioso e cedia lugar à festa pagã,
pantagruélica.
|
Quem recebeu o ramo «à porta»
recebeu também presentes formidáveis de amigos e dos clientes,
arráteis e arráteis de doce, vinhos finos e toda a sorte de manjares
e iguarias, e, chegada que fosse a noite, começavam os banquetes por
singulares cartas de admissão. Quem lá ia, não era convidado pelo
dono da casa; convidava-se, dando testemunho de o felicitar e de se
alegrar com a sua alegria. Chegava à porta, lançava a sua dúzia de
foguetes, e o beneficiário da graça do Santíssimo e do carinho dos
amigos, sentindo os foguetes, vinha à porta abraçar e receber quem
os lançava, e, feita esta vénia, que era de rigor, imediatamente
sentava à mesa aquele que acabava de lhe significar a sua amizade.»
|
Capela de Nossa Senhora da Alegria. |
E para não alongar a citação,
passemos a referência ao gabão, da praxe nessa visita, que era
idêntica, somente mais modesta, entre os que recebiam o
/ 75 /
ramo num templo da freguesia, e ao barrete garrido, à faixa com que
se cingia e ainda hoje cinge aquela típica, e já praticamente só
nesta circunstância usada, peça da indumentária local, para
sublinhar apenas mais um passo:
«Receber o ramo era uma consagração,
um título de dignidade, cobiçado dos humildes e apreciado pelos mais
subidos – para os humildes a honra suprema da sua vida, à qual não
raro sacrificavam o melhor dos seus haveres». Também nesse ponto se
não afastou da realidade, mais estrita, o atrás transcrito Renato
Franco, aveirense férvido, no seu conto de inspiração local sobre
«Os Ramos» (5).
Pouco tempo depois, festeja-se o
S. Gonçalinho. Assim, no diminutivo, que não quer significar um
santo infantil, um Menino Jesus que vestisse aos modos de bispo e
ganhasse por virtudes e saber as dignidades correspondentes. S.
Gonçalinho, por que se venera na capela, e não na igreja que
posteriormente lhe tomou a invocação; na capelinha que é o oratório
da grande família desse Bairro casticíssimo da Beira-Mar, e onde um
sino repica como quem brinca, como uma ladina criança ri, cândida e
feliz, em casquinadas cristalinas. O S. Gonçalinho, severo com as
irreverências, delas castigador pronto como um raio, como provou ao
irrespeitoso Maracas, marido de Maria Augusta Tenaz, e, todavia,
como uma criança incontaminada nos sentimentos malfazejos, sensível
para a aberta benevolência, mercê da oferta tão desvaliosa de uma
guloseima, rústica e difícil de rilhar como são as «cavacas», –
Iançadas da platibanda da capela ao rapazio traquina e guloso. O «S.
Gonçalinho» que deve ter nascido também na proa de uma bateira como
o bondoso D. João Evangelista de Lima Vidal, e é «cagaréu», não sei
se capaz de praguejar, mas que em todo o caso, se falasse,
fonetizaria com o cantado e as deturpações da gente do bairro a que
preside tutelarmente. O S. Gonçalinho, para o qual não é preciso ser
católico na rigorosa acepção da palavra, para ceder – garanto-o de
ciência certa – os castiçais para a festa. O S. Gonçalinho, no terno
diminutivo de S. Gonçalo Velho, que precedeu, como recurso, na
função paroquial, a igreja, com a mesma invocação, mas, então, para
a gente do bairro, de S. Gonçalo, o Novo – sede setecentista da
freguesia de Nossa Senhora das Candeias ou dos Candais.
E, logo a 20, prestava-se culto a
S. Sebastião, até aos princípios de oitocentos com a obrigatória
participação dos vereadores e do presidente da Municipalidade, ao
tempo como é consabido, o juiz de fora. Uma relíquia do Glorioso
Mártir, oferecida à cidade, não se sabia se por D. João III ou por
D. Sebastião, era objecto
/ 76 /
de veneração fervorosa, mormente nas mortíferas pestenenças que
assolaram o país, e ainda no século passado quando grassou a
epidemia da «cólera-morbus».
Anos depois, em 1857, o cirurgião
Manuel Martins de Almeida Coimbra lembrava à Câmara essa obrigação
(«costume sempre usado e mandado observar nestes Reinos por
pragmática do Senhor Rei D. Sebastião»)
(6), pois
representava ela os habitantes, os quais naqueles dias de luto e
aflição, pronunciaram o nome daquele invicto Mártir como seu
protector para com Deus, a fim de este Divino Senhor fazer cessar
aquele flagelo.»
Também as freiras do convento da
Madre de Deus, de Sá, eram muito devotas do mesmo santo, que hoje
conserva a sua festa mas incaracterística, na capelinha de Nossa
Senhora da Alegria – antiga sede da confraria medieval de pescadores
e mareantes. Em 20 de Janeiro lhe dedicavam uma celebração, ao jeito
dos outeiros, mas mais ingénua e comedida.
Tricana do
segundo decénio do século XX. |
Passemos o Carnaval, com as
suas folias e chistes, o pó de tijolo e a graxa, as livres
mascaradas, o bombardeio de saquinhos cheios de areia, as saraivadas
fustigantes de milho, os arremessos de favas e bolotas, e os
arremedos de algum caso caricato – e dos bailes do Aveirense,
foliões, com pendor para o desregramento, com senhoras e tricanas
anonimizadas nos dominós e nos espessos gabões desindividualizadores
e, assim, complementos eficientíssimos das máscaras. Intrigantes
gabões que eram o passe para uma noitada liberta das pautadas
circunspecções exigidas pelos rígidos hábitos de então. Essa mesma
função saudosa perderam.
|
Lembremos, já que corre o risco de
desaparecer definitivamente a Procissão das Cinzas – solene,
grave, de penitência. Recordemos o contraste das tricanas, que ainda
na véspera, envoltas no gabão do pai ou dos irmãos, davam largas à
irrequietude moça intrigando os interlocutores, e provocantes nas
brincadeiras do teatro, e agora, surgiam, na prova maior da sua
elegância patrícia, impecáveis de compostura e respeito às
convenções sociais, com o jeito tão seu e tão elegante de pôr o
xaile, e sem um deslize, um esboçado gesto ou sorriso que
denunciasse a noite anterior. O xaile abandonado, que era adorno,
mas era como que o prolongamento dos braços maternais quando
envolvia uma tenra criança, também se perdeu já.
A procissão das Cinzas, a mais
espectacular, com os seus treze andores, franciscana mesmo nas opas
de burel delido, mas que, em ordenação rigorosa e alinhamento, não
receava quaisquer confrontos com as de maior ostentação, era a que
mais devotos e público mirone atraía a Aveiro, desde que na de
«Corpus Christi» deixavam de figurar as imagens, aliás pouco
inspiradoras de verdadeiro espírito religioso, de S. Jorge e do
Gigantesco S. Cristóvão. O número de terceiros já não basta para
conduzir os andores, que constituíam o motivo anual para
peregrinação de largos milhares de pessoas. Nem lhes supre já a
escassez, o auxílio dos soldados aquartelados em dependências no
antigo convento franciscano de Santo António, onde ela se
organizava.
Nesta terra que, repetimos, proveio
do sal, a crise do amanho das marinhas, e o estilo de vida dos novos
tempos, com legítimas aspirações de maior exigência, fizeram
desertar dessas fainas típicas da gente da nossa Beira-Mar a
juventude ali nada e criada. Prefere novos rumos, menos penosos e de
maior e mais certo proveito.
Praticamente deixaram de existir
«moços» de marinhas naturais de Aveiro. Esse facto, que na história
social aveirense constitui uma das mais profundas modificações,
equivale, num próximo futuro, ao desaparecimento dos marnotos
aveirenses, que representavam um dos estratos da comunidade local
com maior genuinidade e expressão. E constituirá, a par dos aspectos
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económicos, uma causa de abandono das tradicionais e genetrizes
salinas, a curto trecho, ou a prazo que nos esforcemos, contra a
corrente, por dilatar com teimosas panaceias de transparente
precariedade.
E, assim, como já dissemos algures,
não fenecerão apenas os usos e tradições, cortejos religiosos e
costumeiras festividades, não desaparecerão somente marnotos e
tricanas – onde vão as «lendárias tricanas», como as qualificava
Homem Cristo, esbeltas raparigas do povo em vias de promoção, que
deslumbravam?
Transformar-se-á, também,
desindividualizar-se-á a paisagem e perderemos o próprio assento de
baptismo de Aveiro ou os seus ancestrais traços mais identificadores
da genitura.
Nem velas na laguna, que os
«moliceiros» avizinham-se da agonia, e os «mercantéis» são
substituídos pela camionagem, nem montes de sal, que desde o
nascimento de Aveiro constituem um específico elemento panorâmico
desta sedimentada formação geográfica litoral.
|
Pormenor da Procissão das Cinzas. |
A procissão das Cinzas ter-se-á
desfeito em cinza, revertido a cinza como tudo o que nasce. Mas já,
noutro ensejo fizemos essa reflexão: «As crianças de Aveiro, mesmo
as mais tardonhas em articular as palavras, pelo facto de não
poderem passar, em qualquer das artérias citadinas, por debaixo do
andor de Santa Clara, e do de S. Luís, rei de França, não deixarão
de falar o seu tempo, com a língua desentaramelada e escorreita
pronúncia. Mas continuarão, mesmo que depois rilhem as duras
«cavacas» de S. Gonçalinho, e, em Dia de Todos-os-Santos,
comam as «papas de carolo», e os padrinhos as mimoseiem com os
folares pascais, continuarão a proferir, pela vida além, o nome
de Aveiro, com a mesma vinculada e férvida unção?»
E, não haverá mais, se acaso a
Procissão da Venerável Ordem Terceira cessar de vez, um dia certo,
no calendário aveirense, para mercar e saborear os primeiros figos
passos, de ceira? Ou ficará transferido para dez dias depois, para
as Procissões dos Passos – as dos mantos e opas roxos, como as
feridas e as dores aculeantes, e os prenúncios da morte –
cadenciados como dobres, ao som cavo, já funéreo, dos tambores que
ritmam a marcha e as pulsações do crente compartilhador do
sofrimento de Jesus.
Procissão do Senhor dos Passos, da Vera
Cruz.
Essas, com as violetas e açucenas,
coroas de espinhos e sudários, com filas de penitentes descalços a
atestar que são cortejos mais para aprazer na dor sofrida do que
para presenciar, essas persistem, renitentemente duas. Só que
começam a baralhar-lhes as datas, e, por fas ou por nefas, a alterar
o calendário aveirense, acordado por consenso com os oragos das
nossas capelas, não infrigido em séculos, o uso consuetudinário –
religiosamente respeitado – de tão rigorosa observância, que chegava
a fazer coincidir a festa de Nossa Senhora das Febres, com o alagar
das marinhas, para termo da safra.
Como acontecia no tempo em que
Esgueira – vila gémea de muitas centúrias, que medrou até menor
estatura e não atingiu a robustez da siamesa irmã aveirense – ainda
não fora englobada na área citadina, as duas procissões constituíam
um dos pares que caracterizavam o Aveiro na sua fisionomia, física e
humana, de até às proximidades da meia centúria deste vigésimo
século de modificações aceleradas.
Havia duas bandas rivais, com «amantéticos»
afervorados, que nem concebiam cotejos possíveis de beleza e fôlego
interpretativo das óperas e zarzuelas mais famosas, e das rapsódias
e marchas, mais alegres ou empolgadoras. Havia, entre um punhado
deles, dois émulos clubes de ferrenhas parcialidadedes, e duas
corporações de beneméritos bombeiros – agora de mãos dadas,
fraternalissimamente, mas que chispavam faíscas no despique do luzir
dos capacetes e do denodo e espírito de abnegação.
E havia, manifestamente, Alboi e
Rossio – de onde a rapaziada, amiga, mas separada pela raia do Canal
da Ria, trocava pedradas e motejos – para cá e para
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lá das pontes. E duas pontes a separar e a ligar: a da Praça, na
enfiadura da Costeira e dos Balcões, a que com as nossas
irresistíveis propensões de mudar, crismamos depois de rua de
Coimbra e de Arcos, ou Arcada; e a das Almas – as Alminhas, pegadas
ao café desértico e estático da Senhora Perpétua, que assim se
chamava e ilusoriamente parecia – onde os estudantes cábulas e
crédulos muitas vezes rogaram angustiosamente a graça inspiradora,
nas vésperas de qualquer prova difícil de passar como o Rubicão, em
troca de um magro níquel.
São dois os Senhores dos Passos,
desde aquele dia famigerado em que os cagaréus, desde o Rossio ao
Carmo e a Sá, conjurados em rigoroso sigilo – pescadores e
burgueses, analfabetos e a mais alta figura de letrado e pensadar –
foram a S. Domingos raptar a velha imagem usurpada, restituindo-a ao
seu vero altar, no templo carmelitano. E desde que, por via desse
acto – oh! quase sacrílego – de reapropriação, os «ceboleiros»,
ludibriados e vexados, se puseram nas suas tamanquinhas, e, briosos,
responderam à provocação dotando a cidade com a mais expressiva
imagem religiosa que possuímos, concebida por Teixeira Lopes e, por
suas mãos de artista, com insaciáveis buscas de perfeição,
finalizada.
A curta trecho, separada no último
quartel do século passado, pela minuciosa regulamentação do Dr.
Elias Pereira, da que vendia de tudo como na botica, realizava-se a
feira de S. José – precisamente a 19 de Março. Já nem sequer
se lhe topa o rasto. E, no entanto, no primitivo arranzel da feira
medieval, criada em 1430 por iniciativa do donatário, que então era
o Infante D. Pedro, «o mais claro príncipe das Espanhas», os
artefactos de madeira e tabuado, os carros de bois e cangas,
ocupavam a maior parte do rol dos itens da meticulosa tabela de
taxas. Pois extinguiu-se.
E, a propósito de cangas, cangas ou
jugos, nomes que soam a sujeição, a humilhação, talvez a prepotência
quando referidas aos homens, mas que, quando aplicadas aos bois,
embora denotem o predomínio da inteligência sobre a força bruta, são
necessárias e até belas, observemos como o mundo muda e se
monotoniza. As cangas tomam maior ou menor exuberância de ornatos,
diversa vivacidade de colorida, ou resumem-se ao estritamente
funcional, consoante as regiões. Apresentam-se com um aspecto no
Minho e diferente no Douro; sobriíssimas lá para os alcantis de
Arouca, com barrocos filigramados nas da zona marinha do distrito;
umas ao norte, outras ao Sul do Vouga. E já estamos todos a pensar
em uníssono, com certeza: em toda a parte há bois a jungir, e em
cada terra o jugo tem seu cunho distinto. Pois pululam por aí não
sei quantas linhas de montagem de automóveis, e os carros saem
iguaizinhos sem tirar nem pôr, na traça, no tom da tinta, no timbre
com que businam e nas azoinam os ouvidos, e, depois, no cheiro à
gasolina, com a inalterável composição química, ou ao gasóleo
fumento, que é próximo parente. Faz saudades já dos menos poluidores
adubos orgânicos sapidificadores dos produtos do agro, dos mostos
capitosos, dos moliços ou dos escassos. É um sintoma de igualização
achatante dos nossos tempos. E, notemos que se toma como um sinal do
nosso atraso, em comparação com as mais avançadas sociedades de
produção e consumo, a existência
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de alfaiates que ainda nos fazem os fatos por medida. É mais caro, e
mais incómodo, e sinal retrógrado na acelerada evolução a que
estamos assistindo, mas ainda, por feliz contrapartida, nos dá a
sensação de sermos indivíduos e não apenas utilitariamente
consumidores.
Um aspecto da «Feira de Março» antes de
1911.
Depois da «feira de S. José», que
Deus haja, porque o espírito humano se tornou cada vez mais
inventivo e empreendedor, e a tornou dispensável, vinha a «Feira
de Março». Iniciara-se em Maio, mas não persistira nessa época.
Aí se enganara o lúcido e benemérito Infante das Sete Partidas. A
feira só tinha viabilidade com a chegada da Primavera e as
proximidades da quadra Pascal. E era sempre diferente, e era
idêntica. O «Zé das mentiras», com o seu cornetim não seria o mesmo
que o circo com o altifalante; havia mais barquilhos e menos
farturas; diferente disposição e maior variedade de artigos;
feirantes com poiso vitalício; o Zé Manhanhas que vendia berços sem
cedilha; o oculista, a boa mulher das mimosas flores de papel que
por aí enfeitavam os oratórios; o «Silva 5», que na minha imaginação
devia ter semelhanças de família, já não sei por que traços, com o
João da Cruz, do «Amor de Perdição», e por aí espalhou talheres de
Guimarães sem conta. E os ourives, os cobertores de papa,
autenticamente serranos, como atestavam os queijos que nas mesmas
barracas se mercadejavam.
Mas era a mesma, ainda sem a invasão
actualizadora dos plásticos, para as crianças, e a rapaziada moça,
que aqui há dois carros de anos ainda não acamaradava com as
conversadas, mas ia lá vê-Ias, ao largo, embevecidamente.
E teríamos chegado à Semana Santa.
Mais geral e devotadamente concelebrada pelos Ieigos. Com outras
maneiras, abolidas ou novamente abandonadas, mas com um sentimento
mais vivo e de mais significativa exteriorização.
Procissão do «Senhor Ecce Homo». |
No Domingo de Ramos, conta Homem
Cristo (7), aqui há pouco mais de um século, e por aí à
volta, vinham mulheres do campo vender alecrim. Com ele, outros
arbustos, lilases e outras flores, iam crianças e adultos benzer o
ramo, compósito e oloroso, e conduzi-lo em procissão para o templo
paroquial. Como hoje, mas com mais acentuado cunho, maior
generalização nos hábitos ainda não contaminados e postergados. E já
não importa lembrar que, desde a Idade Média, até que eles ruiram ou
foram imolados à obra ressuscitadora da fixação da Barra Nova, «os
meninos do coro (depois de juncarem o caminho com aquele ou outro
género de verduras) subiam para os muros de defesa e pediam que se
abrissem as portas, que tinham sido fechadas».
|
As muralhas desapareceram. Eram uma
cintura, mas uma coroa honorífica, quase um diadema. Já se lhe não
fechariam as portas, por ventura, desde há muito, se não em ocasiões
desse género. Franqueava-se dia e noite a entrada dos marítimos que
demandavam o porto. E o próprio «sino da ronda» cessou, ao menos em
certos períodos, de tanger, para cominar a obrigação de recolher a
casa a horas de conveniente morigeração.
Em quarta-feira de Trevas era, e é,
mas mais discreta nestes dias de hoje que nos de antigamente, a «Visita
do Senhor aos Enfermos». E eu ainda aqui me
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abono, com um trecho memorialístico do mesmo insigne aveirense, de
conhecido agnosticismo
(8): «A unção com que o doente,
macerado, emagrecido, osso e pele, quase toda espírito, tanto o
corpo desaparecera lambido pelo sofrimento, abria a boca para
receber a hóstia consagrada. Depois, a calma que lhe vinha! O
desprendimento de tudo! A satisfação íntima! Nem mais dores, nem
mais miséria! /... / Não o assustaria o caixão, se estivesse ali
aberto! Não lhe causariam horror os vermes se os visse, prontos já a
devorarem-no no fundo da sepultura!»
No dia imediato, a Santa Casa da
Misericórdia organizava a procissão do Senhor Ecce Homo. Fora
à noite, ao som cavo e lúgubre, cadenciado, de matracas. Conheci-a
já a meio da tarde, silente, em austero recolhimento. Solenes, com a
exigida circunspecção, de rigoroso luto, no fato e nas próprias opas
negras, os irmãos e todos os mesários, acompanhavam o andor
magnífico do «Senhor da Cana Verde», desde a sua Igreja própria até
à do Carmo. Daí regressavam, após um breve descanso. E na cauda do
préstito, de extrema compunção, o Leandro erguia, ufano, o painel
com a Nossa Senhora da Misericórdia a receber as preces de
angustiados fiéis.
Era apoucado o Leandro, irascível
aos dichotes da pequenada traquina e irreverente. Nessa ocasião,
todavia, tão compenetrado da dignidade que lhe conferiam, poderiam
dirigir-lhe o mais grave dos apodos, insistir no que e para ele
representava o mais intolerável dos ultrajes, chamando-lhe «cavalo
branco» – se mesmo alguém nessa hora a tal se atrevesse, – que ele
seguiria imperturbável, invulnerável à injúria.
O dramaturgo e poeta aveirense
Joaquim da Costa Cascais evoca esse dia solene num poema
rememorativo da sua meninice, datado de 1855
(9).
«As igrejas visitando
Anda gente, hoje, sem fim
Quem viu quinta-feira santa,
Que a não visse andar assim?
E já noite, infindo povo
Vê-lo junto, sem motim
Descoberto, de joelhos...
Faz pasmar! Mas não a mim;
Que no seu andor, lá vejo,
Com seu manto carmesim,
Veneranda imagem, feita
De um só tronco de alecrim.
É do Senhor – Ecce-homo
– E eu por vê-Ia também vim
Procissão – e a mais solene,
Té mouros dirão que sim.»
Na sexta-feira, com as cerimónias
litúrgicas próprias da data, seguintes às dos dias anteriores, a «Procissão
do Enterro», salvo na circunstância de não se efectuar à noite,
como agora, não variava sensivelmente da que hoje presenciamos. No
sábado, a Aleluia celebrava-se na igreja, e por aí onde quer que
fosse, por toda a cidade.
«Eu – escreveu Homem Cristo, na
evocação que me venho abonando – lá estava, de campainha na mão, à
espera dela. (Da Aleluia, entenda-se). Desde alta manhã! Sonhava com
ela! /.../ E tocava, tocava, espantando gatos e pássaros, pondo cães
a ladrar, galinhas
a cacarejar!...».
Mas volvamos ao General Costa
Cascais, militar, professor, homem de teatro e vate, e vejamos como
ele nos descreve as Trevas, de há centúria e meia, num dos templos
locais: (10)
«Porque seu melhor adorno
Agora o templo não tem?
Nem Senhor crucificado,
Nem santos vejo também!
/ 81 /
Porque, o sol dessas imagens
Alegrá-Ia hoje não vem?
Tristes, roxos véus, só vejo
Pendentes, aqui, além.
Incensos, festivos cantos,
Som de mágoa hoje os detém;
É que dor maior não houve
O mundo para maior bem.
Hora fatal se aproxima,
Pranteia Jerusalém,
Vai nas trevas submergir-se
Pura estrela de Belém.
E prossegue, relatando as suas
reminiscências do primeiro quartel do século passado, talvez o mais
digno de ser assinalado na história de Aveiro, ainda então muita
presa e prezadora de tradições e, então como nunca, rasgadamente
aberta aos ideais progressivos da Liberdade:
«Já tocam matracas,
Já moças aprontam
Rapazes que cantam,
À noite, na igreja,
As trevas bater
A mais não poder.»
E da mesma poesia, que fixa os
costumes dessa já remota época, voltando à ordem cronológica,
vejamos a recordação da Aleluia:
«Já se ouviu – Glória in excelsis,
Aleluia já soou;
E nem sinto nem garrida,
Nem uns só deles tocou!
Pois se as trevas já findaram,
Se luz nova já raiou,
Nem um toque de alegria
Em Aveiro ressoou!
Inda não; que ao sinal dado
Da Matriz,
(11) tudo
ficou;
E num tempo, agora, tudo,
Tudo em cheio repicou.
... ... ... ... ... ...
...
E um Judas pendente,
Na corda dansava;
Ao som da algazarra,
Que a plebe soltava.
E o povo, e mais povo,
Se o caso era novo!
Que o Judas, Aveiro
Não era vezeiro.
... ... ... ... ... ...
...
– Cairam-Ihe as calças!
«É Judas sem alças».
– Espera – traz saia!
«Mas Judas é macho!»
Este é de outra laia;
«Será macho-fêmea!»
– E nisto, um gaiato
Doutor no pião,
Em pela, e bilharda
Lhe chega um tição.
E o fogo se ateia,
E o Judas rabeia.
E bichas sibilam
E forte rebomba
O estoiro da bomba,
– E oJudas então,
Caído é no chão.»
(12)
Já, de novo, se não queima o Judas.
O último, que me lembre, remonta já há uns quatro decénios. No auge
da campanha a favor do ressurgimento do porto de Aveiro, um leigo
atrevido, nunca estulta pretensão, gizou um pseudo-projecto que se
julgou nefasto aos interesses regionais, pelo pretexto que oferecia
aos que, com objectivos inconfessados, poderiam aproveitar o ensejo,
para contrariar as aspirações aveirenses. Foi esse o último Judas,
embora fosse o autor de uma sátira que visava Homem Cristo, campeão
estrénulo desse anseio – e que intitulara «Iscariote».
O Judas já não se queima, e estoira
e estilhaça, para simbólica execração e gáudio. Mas, à parte o nosso
desprendimento por ninharias, ou o que como tal tomamos, e julgamos
desmerecedoras, o Domingo de Páscoa quase não sofreu alteração.
As procissões da Ressurreição já não
coincidem, como era frequente, na passagem por uma e outra margem do
Canal. Agora sai apenas uma, na freguesia da Vera-Cruz. Mas é ainda
alegre, gloriosa, como o sol primaveril que, normalmente, aviva, no
zénite do meio dia dominical, o vermelho brilhante das opas dos
aprumados e aprimorados mordomos do Santíssimo Sacramento, e reluz o
metal nas fivelas dos sapatos de entrada alta e no oiro velho do
pálio e paramentos, e ilumina os sorrisos ingénuos e felizes dos
«anjinhos», cândidos como as brancas asas.
/ 82 /
E é dia dos folares, folares
aveirenses, de massa doce sem demasia – do mesmo gosto desenjoado do
também muito aveirense «bolo de vinte-e-quatro horas», com
que se acompanha o chá. Com variável número de ovos, consoante as
posses e as generosidades dos padrinhos, têm-nos incrustados na
massa fofa, a ela apresilhados com algumas tiras, um tudo nada mais
tostados, do mesmo pão dulcificado.
Um folar de ovos aveirense
O folar com esta feição arreigou-se
tanto nos usos de Aveiro, ou mais ainda, do que as «papas de carolo»
do Dia de Todos-os-Santos, ou as «cavacas» de S. Gonçalinho. Páscoa
aveirense integral pressupõe folares com ovos. Sem eles torna-se
incompleta, dissaborida e desnaturada.
Inopinados desmancha-prazeres
reincidem em aparecer, todavia, em concorrência aberta com a
costumeira especialidade da nossa época pascal, uns aparatosos
«ninhos». Por sua própria definição acoitam alguns ovos,
maquilhados, polícromos, como as amêndoas que lhes completam a
ornamentação. Intrometem-se em terra alheia estes potenciais bandos
de aves de arribação, e faz raiva que pretendam usurpar o que lhes
não pertence. Que as nossas «raivas», ao fim, serão por vezes
duritas de roer, mas são doces, e também uma das nossas
especialidades mais apreciáveis. Aliás, poucas são e, de certo,
cumpre-nos defendê-Ias de intrusos, aplicando-lhe as pautas
aduaneiras do nosso sentimentalismo bairrista. Muitas já se
perderam. Aqueles biscoitos, idos de Aveiro, por exemplo, que Júlio
Dinis comia em Ovar, com o chá, em casa do recebedor Tomé Simões,
pai das «Pupilas». Conta-o Egas Moniz, que não avançou uma afirmação
sem a mais científica das certezas. E não se cinge a essa
referência. Noutro passo da biografia exaustiva do autor da
«Morgadinha dos Canaviais» acrescenta que D. Doroteia trouxera – de
um convento de Aveiro uma qualidade apreciável; a de saber preparar
uma infinita – repare-se, infinita – variedade de doce, que lhe
grangeara merecidíssima reputação.
Os folares – cujos ovos,
garantidamente, ainda não são de plástico, mas já não poderá
asseverar-se que não provenham de galinhas de aviário – não possuem
os méritos gastronómicos e a nomeada dos ovos moles famosos,
esses que em certas mesas de requintadas exigências, como li
algures, «eram servidos de joelhos, com reverências ritualistas». O
Dâmaso de «Os Maias», pateta e fátuo, mas nesse particular a falar
sentenciosamente, dizia-os «um doce muito célebre mesmo lá fora
/.../, uma delícia!» E o Carlos da Maia, o mesmo que se encafuava no
gabão de Aveiro, para, sem dar nas vistas, visitar a Maria Eduarda,
anuia: – «Ah! Certamente. Certamente.»
O Monumento das Cabeças - à memória
dos justiçados da Revolução de 16 de Maio de 1828. |
Nem despertam o interesse das
caldeiradas que Fialho de Almeida, entendido «gourmet»,
hiperbolizava: – «Quem não comeu já /.../ as caldeiradas patrícias,
inverosimilmente celestes dos Gamelas de Aveiro e a caldeirada da
raia dos pescadores de S. Jacinto?...»
Nem provocam a gula, como as nossas
enguias de escabeche; ou os celebrados leitões do famoso Farruca,
que o Barão de Cadoro registou entre os nossos varões memoráveis
para os pósteros, num dos seus romances, e teve sucessores e émulos;
o carneiro da caçoila de
/ 83 /
barro preto, ou os robalos assados pelo Zé Maio, com uma receita
inspirada no simbólico caldo de pedra.
|
Mos os folares de Aveiro, são os
folares de Aveiro, são patrimoniais heranças, e é altura de o
lembrar com todo o vigor proselítico. Enquanto a indústria dos
«ninhos de Páscoa», com pés de lã não faz o ninho atrás da orelha
dos aveirenses ingénuos, incautos ou infirmes nas suas radicações
sentimentais.
E cumpriria, depois da festa da
Senhora da Alumieira – complementar, com os farneis bem fornidos,
das celebrações pascais – aludir ao Primeiro de Maio, e à
madrugada que se fazia para ir colher, no redor da cidade, as flores
de sabugueiro, «as maias», e depois com elas enfeitar a
escola para ganhar jus a um feriado oficioso. E, não deveria faltar
a menção, a uns vagos comícios, nesse dia consagrado para os
operários idealistas, de que o incipiente proletariado se alheava, e
em que os oradores despejavam os discursos apostolizadores a algum
punhado de estudantes cépticos e reinadios, na circunstância
considerados «proletários do cérebro».
Outra data com imposições cívicas,
poucos dias após das pomposas celebrações em honra da Padroeira da
Cidade – que não mudaram apreciavelmente – era o 16 de Maio,
dedicado à memória dos aveirenses mortos pela Liberdade e imolados
aos seus generosos ideais, subsistira, mesmo depois de no próprio
regime monárquico ter cessado a comemoração da outorga da Carta
Constitucional. Foi feriado municipal, dia de romagem ao cemitério e
de deposição de flores votivas no «Monumento dos Cabeças» dos
justiçados por participação activa na Revolução de 1828 contra o
absolutismo.
O dia da festa do «Corpo de Deus»
figurava entre os dias maiores de Aveiro. Não que ela fosse apenas
nossa, mas era também desta cidadezinha, da qual, como dizia um
nosso bispo tão aveirense que como dissemos se imaginou nascido na
proa de uma bateira: «quem viu uma procissão em Aveiro, não viu
decência maior em parte nenhuma».
Já nos inícios do segundo quartel do
século XVIII fora amputada das costumadas danças e figuras como eram
«a serpe e drago, cavalinhos, fuscas, jucalheiras mouriscas e
ciganos» e «mais cousas indecentes e jocosas» que distraíam a
devoção. Todavia atraía milhares de romeiros, com o S. Jorge a
cavalo, escoltado por soldados em montadas ostentosamente ajaezadas,
e o S. Cristóvão, o Santo Grande, a pé, conduzido por um
homem possante, oculto no manto folgado. E pouco
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valeu que o futuro e virtuosíssimo Arcebispo Bilhano achasse pouco
edificante a incorporação da gigantesca imagem pedestre, pois
sempre, até à queda do antigo regime, acompanhou no préstito, famoso
em todo o alfoz aveirense, o santo tutelar dos nossos exércitos.
|
|
E de Ceca e Meca, desde Vagos a
Ovar, e todo o termo aveirense, que não só, como agora a gente de
Aveiro – e essa em decrescente número – acorriam devotos ou meros
amadores fieis das usanças, a trazer ao «Santo Grande» e nele a
tocá-Ias, boroas clássicas ou adoçadas, regueifas, toucinho e outras
dádivas. Uma metade ficava para a igreja, para os pobres; a outra,
levava-se, que constituia um eficacíssimo remédio para o fastio.
Creio que ainda possui essa estimável virtude. Digo-o de ciência
certa. Todos os anos, sem excepção, me regalo com uma fatia de broa
do S. Cristóvão, com uma dosezinha de açúcar, que me está proscrito,
e uma pitadinha de erva-doce. E ainda não perdi o apetite!..
Chegava, depois, o período dos
Santos Populares.
Um cortejo entre a forma como se
festejam os dias, ou antes, as noites dos chamados Santos Populares
e o modo como se celebravam aí à volta de meio século atrás, daria
margem para detidas reflexões.
Também aí os usos mudaram, porque se
transformaram as pessoas e as suas predilecções. Perdeu-se a
espontaneidade, e, nestes tempos dos sacralizados desportas e da
voga – e proveito incontestável – da educação cívica, das maiores
capacidades toráxicas e das tendência para o ar livre,
desintoxicante e desopressor das tensas ralações da vida, anemiou a
alegria.
Os moços, mesmo os contraditores, de
dentes cerrados, com as aparências de desconvencionalismo, em larga
parcela mostram-se circunspectos como os homens maduros de então, e
parece que tem pejo dos folguedos em que cada um se integra numa
massa de gente sem bitolas, que se expande e diverte, fraternal e
comunicativamente.
Pois aqui há um carro de anos, a
véspera e a data de Santo António, em Aveiro, quase se restringia a
um mero ensaio, a um afinar de instrumentos, que, na verdade, a par
de um septeto, ou valsa que o valha, mais ou menos filarmónica,
marcava o ritmo e a arrancada dos pés dançarinos.
O S. João, esse, sim, trazia uma
noite de plenitude para a folia. A tradição remontava aos tempos
seiscentistas, se não anteriores, em que a depois demolida capela do
Rossio o tinha por patrono, e, no amplo logradoiro, o festejavam,
com espectaculares torneios hípicos e taurinos, os fidalgos e a
arraia-miúda.
Faustosas as festas que descreve, em
1687, o memorialista aveirense Cristóvão de Pinho Queimado. Em «Iuzidas
carvalhadas», os nobres de Aveiro e da vizinha Esgueira apareciam
com «os mais ricos telizes, primorosamente bordados com bordaduras
de ouro e prata, e sedas de várias cores, e veludos ricos de
terciopelo, com suas armas brazonadas e divizadas, trajando os seus
mais ricos vestidos de gala, e plumas, e depois de praticarem com a
maior destreza e a mais brilhante mestria diferentes jogos de
cavalaria correm a sima, pela vida e acabada esta função seguem à
estacada dos touros». E rematava a descrição, depois de acentuar que
raro era o ano em que não se registasse algum desgosto, ocasionado
por descomedido atrevimento e ousadia em acometer os touros, por
mencionar o fim da festa: «e também naquele dia se fazem mui
vistosos fogos de artifício de dia, e também de noute com figuras
como bonifrates de mui engenhosas invenções
(13).
Neste mesmo aspecto sobreexcediam de
longe os fogos das nossas comemorações sanjoaninas, que se limitavam
às fogueiras e às «bichas de rabiar», em que era perito local o já
mencionado Zé Manhanhas, uma caricatura de homem de quem a criançada
irresistívelmente troçava.
Pululavam, disseminados por cada
bairro tradicional, se não por cada rua, as capelinhas e cascatas. A
noitada da Praça do Peixe, com as fogueiras em torno, à roda das
quais se dançava, e que se saltavam, ágil e divertidamente, tomava
uma animação desbordante.
Os «pelotes», do último quartel do
século passado já assim procediam, a par dos marnotos e das tricanas.
Depois, chamavam-se «papos secos»,
mas, da mesma forma, com os tisnados trabalhadores das salinas, ou
os pescadores – que ainda os havia na cidade, ou os «ganha-pães» –
como José Estêvão chamava, aos que ganhavam o sustento do dia-a-dia,
com o «suor do seu rosto» – de todo o género de labutas, e, assim,
os mais abastados em comum com os de pequenos recursos, bailavam e
reinavam. Acotovelavam-se, sem distinção de classes ou posições
sociais, e, às vezes, disputavam para par a mesma rapariga de mais
sedutora formosura.
Havia os petiscos próprios, um
afoito à-vontade sem pisar a risca das conveniências, o saltar não
só das fogueiras mas de todas as barreiras sociais, um convívio
aberto, sem constrangimentos.
Na Barra para a gente da serra, que
afluia desde o Arestal e das Talhadas e do próprio Caramulo, do
velho termo aveirense de largo aro, a festa abrangia o «banho santo»
na Barra, de taumatúrgicas virtudes, mas com os insidiosos perigos
que sempre são de temer a quem, desprecavido, afronta o mar.
O S. Pedro, comemorava-se,
especialmente, à volta da viela que o tinha como patrono, e, num
cunhal, ainda hoje existente, lhe entronizava a imagem de um
barroquismo sem excessos e de boa lavra – e, assim, sem lhe diminuir
em atavios a majestade pontifícia.
Depois, desde os meados da segunda
década deste século, perseverou ainda no largo que se formou a
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partir desse beco, que da rua dos Mercadores enfiava na do Alfeno e
tomaria o nome laico da revolucionária data gloriosa do 14 de Julho,
em homenagem aos franceses, que na Primeira Guerra Mundial
instalaram a aviação marítima em S. Jacinto.
Tinha ali o S. Pedro fogueira,
música e bailarico, alegria, esfusiante como as «bichas de rabiar»,
alvoroçadoras, e copiosos fregueses para as tabernas e botequins das
redondezas.
Aliás, o S. Pedro, tomado o gosto
aos folguedos, prolongava-se por longos dias. E celebrava-se desde o
Espírito Santo até ao Bairro de Sá, se calhava até às bandas do
Senhor dos Aflitos – que, nesses dias de descontracção, as tristezas
deitavam-se para trás das costas, e as angústias esvaíam-se.
Pois tudo passou. Criado como que
uma alegria de modelo único, com sabor a sopas de envelope,
obediente a planos prévios, as festas dos Santos Populares, em
Aveiro, não passam de uma recordação.
Permitam-me, porém, que não me
alongue mais. Que omita sei lá bem o quê. Os funerais nocturnos, com
Iampeões e sem música, soturnos, à «capucha» como os denominavam. As
festas da Senhora dos Febres – no masculino, repito, como dizia a
gente da Beira-Mar e da Praia. Dispenso-me de dizer que, e porque,
transgrido as prescrições da minha dieta, com as «papas de carolo»
do Dia de Todos-as-Santos. Omito o que eram os Arcos do tempo dos
Senhores Barbosas, do Francisco Elias Gamelas, merceeiro acreditado
que durante o ano guardava a imagem de Nossa Senhora das Areias, no
dia da festa conduzida em procissão fluvial para a capela de S.
Jacinto; e da loja do Senhor Ricardo e do Cisne da Arcada onde
pontificava o Dr. Joaquim de Melo Freitas, culto e cintilante
conversador e aveirense da mais pura gema. No Ginásio Polivalente do
Rossio cursavam-se os preparatórios universitários, do curso de
aveirismo. De humanidades e de cultura física. Os Altos Estudos
frequentavam-se nos Arcos e talvez na Praça do Município.
A imagem de S. Pedro que se
festejava na viela de que era patrono. |
Esqueço o «picadeiro» do jardim,
parada das elegâncias locais, durante os concertos da Banda
Regimental, e os serões das boticas, de que fui testemunha
silenciosa e por vezes sonolenta.
Cinjo-me ao primeiro semestre do
ano. Nem sequer, como em certas composições musicais, emprego o «do-copo»,
para findar com as entregas de Ramos do Natal.
Observarei, apenas, que Aveiro, uma
a uma, vai perdendo as tradições e costumes, os mais enraizados,
significativos e caracterizadores, os que tinham mais vincado traço
na sua fisionomia de singular agregado populacional, simultaneamente
apegado aos usos pretéritos e de espírito amplamente rasgado ao
porvir do homem e às suas reivindicações e direitos, e aos da terra,
de horizontes sem obstáculos, onde ele habita.
|
As gerações presentes, como já as
passadas, herdaram-nos, como outras obrigações mais incómodas do que
dispiciendas, dos ascendentes. E, como filhos perdulários,
esbanjadores do abastado património, herdaram, mas pouco ou nada
conservarão para legar aos vindouros. E nada, ou quase nada,
constituirá a sua contribuição para lançar e fixar na terra de
nascimento, na terra-mãe, alguma nova usança digna de perdurar.
Não me julguem contra o progresso, e
os seus benefícios. Nem os combato nem os dispenso. Desejo-os
sincero e profundamente mais disseminados, mais equitativamente
distribuídos. Mas o que a técnica propicia será fatalmente,
irremediavelmente incaracterizador? Não pretendo remar contra a
maré, e contestar, numa época em que se contesta o que subsiste de
anacronicamente tolhedor de anseios legítimos, talvez informuIados
mas a que não faltam justificações. O problema, todavia, a quem como
eu é um homem da sua terra, visceralmente, vai-me penetrando como
uma lenta verruma. Se as terras perderem os seus costumes e
peculiaridades, e desprezarem as suas tradições próprias,
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e abandonarem às correntes uniformizadoras a sua fisionomia
específica, e substituirem o que é tipicamente seu pelo
generalizadamente universal; se as terras nem tiverem seus dias
próprios de confraternidade, e deixarmos de reconhecer-lhe o som dos
sinos, e de cultivar a memória das suas figuras tutelares, e de lhe
celebrar os fastos, e todas se igualizarem, porque hão-de ser
designados por um nome e não por uma etiqueta mecanografada ou um
número? Que quererá dizer Aveiro, ou Viana do Castelo, por exemplo,
se algum dia Viana ou Aveiro forem iguais a todas as terras do
globo? E que significará isto de aveirismo que é devoção a uma terra
singular e a um modo particular de ser cidadão de uma pátria e do
mundo? E porque nos haveríamos então de considerar aveirenses se
nada de distinto houvesse na nossa maneira de estar no mundo dos
homens?
Eu sinto como Homem Cristo: – «sinto
que no meio dos seus encantos, o maior dos encantos, ainda assim, é
para mim ser esta a minha terra. Dobra os encantos. Como não havia,
como não há-de ser assim, se sem encanto nenhum da natureza, esse
seria só por si, um grande encanto!»
E somos aos encantos da natureza, os
sortilégios de uma terra que é a minha, e mesmo desapegando-se, de
sucessivas vinculações, permanece diferente, prossegue, não digo
melhor nem pior, mas como ela só.
________________________________
NOTAS
(1)
– Marques Gomes, Subsídios para a História de Aveiro, pg. 13.
(2)
– Homem Cristo – Notas da minha vida e do meu tempo, VoI. III,
pg. 229.
(3)
– Renato Franco – Beira Mar (Contos), Aveiro, 1914, pg. 61 e
segs.
(4)
– O Correio da Manhã, de 11-1-1928.
(5)
– Obra cit., pg. 29.
(6)
– Eduardo Cerqueira – «Apontamentos sobre antigas Procissões de
Aveiro» 1967, pg. 28.
(7)
– Banditismo Político, pg. 954.
(8)
– Banditismo Político, pg. 955 e segs.
(9)
– Joaquim da Costa Cascais, Poesias, voI. lI, pg. 216, 1898.
(10)
– Ob. cit., pg. 210.
(11)
– A demolida igreja de S. Miguel, que se ergueu, até 1835, onde é
hoje a Praça da República.
(12)
– Ob. cit., pgs. 220 a 223.
(13)
– Arquivo do Distrito de Aveiro, VoI. III, 1937, pg. 99. |