Acesso à hierarquia superior.

N.º 13

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1972 

Breve digressão pelos

costumes aveirenses tradicionais

Por Eduardo Cerqueira

Jornalista e publicista

Vaga e lata matéria, neste ensejo me propus pare discretear, «currente calamo», sem cabedal de erudição pois ocasional excursionista em matérias do domínio da etnografia, e eu próprio a distanciar-me das consuetudinárias propensões dos meus conterrâneos – cagaréus, ceboleiros e bicudos – das gerações passadas ou da minha meninice já remota.

Prescrever-me-ei a um tema de estreme sentido aveirense: aos costumes de uma terra que, ainda, ingloriamente, tenta perseverar nalguns predicados e tendências próprias, mas, na cola das mais volúveis ou permeáveis, arrastada na avassaladora corrente planificante e uniformizadora, as vem adulterando, degradando e proscrevendo à dissolução, ao abandono ou às delidas lembranças.

Os costumes autóctones, de criação local, ou os aceites e afeiçoados ao estilo aveirense, pareceriam, porventura, tão funda e irremovivelmente integrados na vida social da cidadezinha desabafada e radiosa, desta terra de gente que remava ou remara, e se tisnara ao iodado sol dos esteiros, cales e praiões da laguna, muito mais do escorreito povo e de uma empreendedora classe burguesa, a que o Vouga e o mar abriam caminhos de tráfego mercante e onde a aristocracia, embora numerosa, nunca lançou as raízes intransplantáveis, afigurar-se-iam tão arreigados no povo vinculado, perpetuado, como os caracteres geo-paisagísticos mais identificadores e insinuantes.

E, todavia, esses como que genes telúricos de colectiva hereditariedade, vão sendo submergidos pelas caudalosas correntes, na miscigenação ou na invasão por múltiplos meios dos elementos dominantes da cosmopolitização, absorvente de todas as singularidades.

Vão desaparecendo e deixando vazios.

Memorizam-se já, nesta hora, mais do que se exercem. Flores emurchecidas, ou despertadoras de enternecidas recordações – entre folhas de albuns conservadas, mas esquecidas – avolumam as cargas que em nossa capacidade de reminiscências vinculatórias e sensibilizadoras, constituem as lembranças e as saudades, o que passou e apenas se evoca.

Os costumes representam permanência, mais ou menos dilatada, um agarrar-se no tempo e furtar-se-lhe à fugacidade e, assim, um legado e património. O dia de hoje caracteriza-se pela instabilidade, por movimento renovador, e pela osmose do que a industrialização e a sugestão por via dos meios de comunicação – tão benfazejos na generalidade das consequências – e a propaganda, com suas insinuações predeterminadas, se interpõem às nossas faculdades de opção, e impõem nos gostos e nos hábitos cada dia mais universalmente uniformizadores.

E, no entanto, neste mundo – agora, certamente, em menor grau, mas ainda como há mais de um milénio, quando Aveiro nasceu –, na Terra existem terras e sítios. As terras são os sítios habitados, onde os homens se estabeleceram e lançaram raízes no solo. E deram frutos. São sítios onde os homens se fixaram e nasceram outros homens. Que, a terra deserta, nunca é uma terra, mas um sítio: geografia física e não geografia humana.

As raízes lançadas pelos homens transformam a fisionomia do solo meramente orológico, infiltram-Ihe o que deles transpira – suor e alma – animam-no, caracterizam-no. Infunde-lhes o solo, por processos ecológicos, alguma sua peculiaridade influencia-os pelo clima, a alimentação que directamente lhes prodigaliza e o género de trabalho que lhe faculta.

A mesologia é mista. Resulta da terra e simultaneamente da permeabilidade da gente que a habita; da receptividade e do modo como responde às suas suscitações e, assim, do que lhe transmite. O seu reverso actuante provém do que se generaliza nos membros da comunidade que nalgum trecho do globo se radicaram, e, como agregado, unidos por laços de solidariedade, / 70 / medraram como unidade gregária, integrante mas diferenciada.

A mesologia processa-se como um fenómeno receptivo e um eco. Como uma satelização, que se alimenta da luz alheia e a reflecte, com suas faculdades próprias de espelhar e dar novos rumos e diversas intensidades aos raios luminosos incidentes.

Aveiro, a cidade que nasceu, como uma tremonha de sal marinho, da laguna em gestação, reverberadora de luz, apegadora dos operosos marnoteiros originários – como o cristal do cloreto de sódio é a concentração do que à água do mar de eles extraem, com o travo picante e o ressaibo de uma fisiologia alentadora, se não um diferenciado animismo da própria linfa mineral.

Aveiro era um vago lugar no mundo, diferente mas ainda não humanizado, aqui há pouco mais de um período milenário, que convencionamos atribuir à sua nascença.

Tinha água – que, insistimos, é espelho – e sedimentava-se com os resíduos da terra arrastada, ou pela erosão das rochas serranas, que em suspensão outra água carreava. Era Iodo e argila branda. E desse barro, dessa matéria maleável se moldou e se tornou habitáculo para os homens vindos das regiões da serra ou das velhas praias da costa, estabilizada e, como a montanha, firme.

Capturariam na água o peixe, usando de artes incipientes ainda não adaptadas às novas condições e, quiçá, a patinhar nela, caçariam as aves aquáticas migratórias, afluídas ao acidente lagunar em formação.

Com ela, a água marinha que o cordão litoral crescente abraçava, produziriam o sal – a faina de todas a mais influente na fixação do homem, na sobrevivência do povoado e na própria paisagem rasa, onde, apenas, como tendas, nas eiras, de chão mais firme, acampam os cónicos montes, brancos como as velas e as asas, e cintilantes.

Dessa protohistória alvariense ficariam a lição e os vestígios vocabulares dos árabes – introdutores ou não da salicicultura nesta costa marina – que pela península investiram até paragens nortenhas.

E, então, com rudimentaríssimas moradias – por maioria de razão ainda mais sumárias do que as referenciadas por Marques Gomes, (1) em relação a meados do século XV, na área hoje abrangida pela zona ribeirinha da freguesia da Vera-Cruz, construídas de adobos de lama e cobertas de colmo – se estabeleceram uns quantos homens animosos, para grangeio de nova vida de maior proveito.

Então criaram a Alavarium medieva, paupérrima, formada de casebres, cujas cérceas – se é cabido o hodierno termo da nossa arquitectura urbanística – não excederiam os cumes dos montes de sal das safras normais, e, na área, não excederiam as «mulas» dos mais vastos malhadais.

Foram esses os nossos ascendentes mais remotos, vindos de algures, de raça não determinada, gerescedores da grei aveirense a que podemos chamar indígena. Os filhos desses pioneiros da nossa característica actividade de amanho das salinas vieram já parturejados alvarienses, e, primeiros de nascimento, pela primeira luz que os olhos lhes captaram, e pelo primeiro ar salgado que nos pulmões lhes penetrou, e lhes enrubesceu o sangue e lhe entrou no coração e os tornou tributários de algum sentimento de adesão à terra.

As casas cobriam-se de colmo, talvez da própria bajunça com que das chuvas dos Invernos se protegiam os cónicos montes de sal. Cobriam-se do colmo que nascia, espontâneo e abundante, nos terrenos alagadiços recém-formados. Só com o andar dos tempos, a incipiente capacidade artesanal – já que seria pretenciosa impropriedade empregarem relação a essas remotas épocas termo tão dos nossos usos como que é a tecnologia –aproveitaria o barro do ao redor da moradia rústica para produzir a malga do caldo e a telha. Só com esta colocaria a primeira nota avermelhada no ambiente onde dominavam os tons verdes, de larga gama, tenros ou secos, e tão só se evidenciava nos róseos arrebóis ou nos escarlates dos poentes – esses mais remotos que a Pelagia Insula que se tem visto coincidir com o advento da formação lacustre que, centúrias de anos após, tomou o nome de Ria de Aveiro. E adoptou esse crisma da Ria, que é legenda dos nosso cartazes, espelho do nosso narcisismo bairrista e nosso «slogan» sintético para proclamação de divulgadoras aliciações, e satisfez a nossa ufania glóssica para a designação e fixação nas retentivas, nossas e alheias, dessa primacial fonte de beleza e riqueza.

E pouco importa se, por analogia não muito rigorosa com outros complexos aparelhos hidráulicos naturais, que não estamos obrigados, cidadãos comuns, aveirenses-homens da rua a acompanhar os geógrafos que velam pela austera e estrita propriedade terminológica da sua ciência.

O sentido estético da linguagem e a consagração do uso sobejariam para uma adopção perene e inalienável, e para uma cabal justificação semântica. E uma coisa são os cientistas com seus rigores e definições, e outra nós, que, se não fizemos, baptizámos, e deste costume e gosto, e espírito afectivo de família de dizer Ria de Aveiro, não abdicamos. Seria como que uma abjuração. Raul Proença o notava uma vez a um dos mais ilustres e prestantes aveirenses deste nosso século.

A evolução do mais que milenário povoado lagunar – Ria é substantivo feminino, de que ainda se não parturejou um adjectivo condigno – o seu processo longo de formação e configuração multi-pseudópica, / 71 / está cheio de soluções de continuidade, no que chegou ao nosso conhecimento documental ou à nossa inteligibilidade.

Sabemos, todavia, de ciência certa, largamente evidenciada e comprovada, ser o sal um produto essencialmente comerciável. Para temperos, para salgas de carnes e peixes – exclusivos modos de conservação antes das aplicações generalizadas do frio para curtumes, e para a ministração do sacramento do baptismo – ao menos anteriormente às dissaboridações que os tempos de hoje, simplificadores, redutores dos actos da vida à expressão mais desnudadamente simples, trouxeram à nossa comodidade.

Ora, como o sal de Aveiro – repare-se – através de todos os séculos da história nacional, se baptizaram, na generalidade, os habitantes de todo o norte do País, e de larga parcela das Beiras. Nesta nação de cristãos essa cooperação aveirense, em consagrá-los como tal, foi constante – e creio que nunca assinalada.

Mas o comércio é troca, corrente de vai e vem, como as nossas marés, que, em cada dia, levam a água poluída, ou destemperada com a dos rios, a água venosa ou desatonizada, e no-Ia devolvem depurada e revitalizadora.

As mercadorias são conduzidas por homens que andam de lá para cá, e regressam, como o aquiliniano Malhadinhas – «Aveiro vai, Aveiro vem!...» – símbolo de almocreves, hoje motorizados. Alguns estanceiam e permanecem.

Os homens, efectivamente, vieram da serra ou de outros locais de chão firme, como os materiais arrancados ao solo, que o rio carreia, deposita e sedimenta. E com eles germinou e medrou a terra – a terra com gente identificado, com uma personalidade colectiva própria, de gestação e apropriação assimilada.

A terra foi-se personalizando e criando história, dando nova e naturalizada feição ao usos confluentes de diversas proveniências, ajustando-as ao ambiente, e radiculando e reamoldando, e forjando tradições e modas, e estilos.

Salineiros, os alavarienses dos primórdios da povoação originadora de Aveiro, algum dia tornaram festiva a «botadela» das marinhas – a passagem decisiva da fase preparatória para o início da produção do sal.

Celebrariam nesses longínquos tempos, ou coevos da famosa Condessa Mumadona, ou, provavelmente, já precedentes, apenas a congratulação por haverem atingido o momento retribuidor de obter o proveito concreto de um canseiroso trabalho prévio? Ou representaria esse acto simbólico e jubiloso, qualquer espécie de ritual propiciatório, com cantares e danças, farta refeição e abundantes libações alegradoras?

É tão contingente, tão dependente das volúveis condições metereológicas, cada safra salineira, que não será presunção excessivamente ousada admitir tal conjectura.

Para essa prática costumeira, subsistente mas em decadência, não se encontra similar em qualquer fase inicial do amanho agrícola da região. Verificamos manifestações de regozijo nas alturas das colheitas. Quando ainda se não colheu o produto do trabalho, só na salinagem.

Aí se encontrará, porventura, o mais remoto dos costumes locais. E esse, persiste, ainda que desbotado de colorido, com decresci da alegria – que o marnotear perdeu prestígio e aliciação, e já não dá salário que compense. Repare-se, salário, com o consabido significado de remuneração do trabalho, a partir do sal. Do sal e nem sequer do pão.

Nos primeiros lustros deste século vertiginoso, a «botadela» era ainda festa, dia de lida tensa, afanosa, célere, contra-relógio, de suar as estopinhas e deitar os bofes pela boca fora, de esforço extenuador; mas dia de triunfo, de alegria esfusiante, de solidariedade e comunhão. Era o chegar à meta, na primeira grande etapa de uma corrida.

Um escritor aveirense – tipo, talvez, do que, com muitos motivos de injustiça, se convencionou acoimar ironicamente como «literato provinciano» – descreveu o «botar» da marinha, com pormenor vivaz, num dos seus contos de mais flagrante sabor local.

Um marquês tomara-se de amores por uma tricana, uma dessas beldades já lendárias da genuína casta aveirense, popular e patrícia, que, nos momentos de lida intensa da marinha amanhada pelo pai, se dobrava em «salineira». Sem esforço se identifica o titular de alta estirpe que o inspirou, e cuja morte súbita ficou como que a sugerir suspeitas de um drama passional. (2)

A botadela - Clicar para ampliar.
A «botadela» de uma marinha

Chamava-se Ermezinda essa rapariga «de talhe esbelto, graciosa, de olhos húmidos e meigos», dotes naturais a que juntava «um donaire sedutor, uma especial fascinação que ressaltava do seu gosto fino, quase aristocrático».

Em largas pinceladas que o decorrer do romancezinho entrecortava com a narrativa de feição etnográfica, dava-nos o ficcionista – nesses bons tempos da «belle époque» em que havia tricanas deslumbradoras e se podiam chamar Ermezindas, romântica e enlevadoramente – um quadro vivo, movimentado e alegre, dessa hora em que o trabalho se efectuava em sua própria glorificação.

Sigamos-lhe o relato. Haviam abordado à marinha exuberantes ranchos de raparigas, gárrulas, graciosas e sadias, se calhar trigueiras, como aquelas que impressionaram Júlio Dinis – «trigueiras como em parte nenhuma» – porque nadas e criadas na Beira-Mar, em torno do S. Gonçalinho ou de S. Roque. / 72 /

Comandava as operações do amanho da salina o Faneca. Repare-se, o Faneca. Ainda a gente se conhecia, em Aveiro, sem vislumbre de melindres, pelas alcunhas, hereditárias como apelidos familiares e tão inalienáveis como se na pia baptismal fossem consagradas. Vinham chegando os marnotos vizinhos para fraterna ajuda, que a faina exigia rapidez, e constantemente o máximo de robustos braços experientes.

Faneca, marnoto e general das operações, distribuíra as tarefas pelos cooperadores. E, então, o contista-regionalista, com rigores meticulosos de etnógrafo e propósitos de registo do léxico específico, fixa, em cuidada prosa, a faina agitada desse dia, como que do parto das primeiras tremonhas alvas e cintilantes: (3)

«Os meios já secos, solidamente batidos, apenas aguardavam a ândua. Os homens começaram a derretê-Ia com os ugalhos, e a estendê-Ia, amaciando-a depois com os vasculhos numa camada fina, muito igual».

Não importa que surpreendamos enbevecidas trocas de olhares entre a esbelta, a fascinadora filha do marnoto, e o aristocrata – que o ficcionista, como dissemos, não inventou, senão parcelarmente –, nem fazer reparo nos ciciados segredinhos do furtivo namoro, – não havia tempo a perder. Todos se atiravam ao trabalho com ardor. Surgiu um borborinho afanoso. As raparigas correram a encher as canastras de areia do mar. As cantigas reboaram cristalinas, desafiando o estro dos rapazolas. Deslizavam como arvéloas – eram as mesmas que seguravam a chinela quase só com o dedo polegar dando à marcha desenvolta, a beleza volátil de um passo balético ou precisamente do saltitar de uma ave – por cima das barachas, o busto erecto, airoso, deliciosamente requebrado, fazendo tremer os seios redondos e pequenos».

Era o termo, o ponto culminante da tarefa; «A marinha refulgia, agora, areada e branca, toda riscada de marachões e barachas semelhando uma ampla folha de papel quadriculado». (José de Almada Negreiros, poeta, pintor, vidente com proféticos olhos egípcios, dizia, «os caixilhos das janelas do céu» e via melhor que o patrício, literato e músico, mas de vistas de mais limitado alcance.) E o nosso conterrâneo registrador da característica lida da salinagem, prosseguia: «Dos lagrimais escorria um fio ténue de moura, que alastrava vagarosa, insensivelmente, até, por fim, inundar os meios, fazendo-os brilhar como espelhos». A botadela da marinha estava assim efectuada, só restando, daí em diante, a acção do tempo para se operar uma completa cristalização.

«No dia seguinte as razoilas já teriam que arrastar, formando sobre os tabuleiros pequenos montículos de sal novo, os pintaínhos, brilhantes como açúcar candi.»

Depois, terminada a operosa faina, meio extenuados, atiraram-se todos à sopa apetitosa, ao conduto quente, oloroso, reparador, e fizeram girar de mão em mão as cabaças de bom palhete refrigerante. E dançou-se, soaram cantigas, maliciosos improvisos, até ao cair da tarde. Findara a «botadela», que remontaria, de certo, aos árabes, com evidente rasto na arte da salinagem e na terminologia. / 73 /

E, se, verosimilmente, comecei pelo primeiro dos costumes, consinta-se que trace alguma ordem neste rol, forçosamente desconexo. Procurarei, quanto me for possível, manter a cronologia do calendário anual. E recuo, assim, de salto, um longo semestre. Retrocedo do tempo estival, calmoso, propício à labuta salicícola, para o cortante início do ano, porventura com as nuvens acasteladas no céu de maus presságios e açoitadas pela nortada frígida, ou com enluaradas noites de Janeiro, celebradas pelos vates, e frio húmido, penetrante até aos ossos, emperrante dos gonzos articuladores dos membros, e, pois, a requerer agasalhos aconchegadores e, assim, os gabões, a peça de vestuário criada, digamos, ecologicamente.

Os gabões de Aveiro, uso perdido – apesar de uma, mais ou menos vã, ainda que louvável, tentativa de ressurgimento – relegaram-se à evocação da passada indumentária característica.

Tão ao sabor de Aveiro como as embarcações da Ria, havia irradiado como agasalho e vestimenta ou envoltório para disfarce ou ocultação previdente de divagações furtivas, maus passos, ou aventuras que exigiam capas não translúcidas. Em certas circunstâncias de sigilo conveniente às boas reputações, cada um, com o gabão, se poderia furtar a olhares indiscretos e a línguas malévolas, badaladoras da novidadezinha comprometedora.

Eça de Queirós – esse imorredouro «pobre homem da Póvoa do Varzim» que, no fundo e até final, ficaria um «filho de Aveiro, quase peixe da Ria» – lembra-os nesta função acobertadora de passos a que não convém as testemunhas mais ou menos incontinentes e linguareiras. E, também, no seu espesso pano de surrobeco, ou mais graduada fazenda, as reminiscências da meninice, passada em Verdemilho ou na cidade, a dois passos da igreja paroquial de Nossa Senhora da Apresentação, na mais específica função agasalhadora.

Clicar para ampliar.
           Um grupo de salineiras.

Já algures o apontei nestes precisos termos, mencionando as referências do grande escritor a Aveiro: ...«O gabão, agasalho então em voga por todo o país, dentro do qual se encolhia o «famoso Craveiro» enquanto congeminava a «Morte de Satanaz» e que o próprio Carlos da Maia, elegante e rico, não desdenhava de encafuar nas suas visitas à «Toca», para mais fácil dissimulação».

Na quadra dos «Ramos», nas noites gaudiosas, aparece ainda hoje, em esporádicas exumações – que o costume exige-o, como à opa pela manhã.

Com efeito, no início do ano, como na derradeira semana do precedente, a cerimónia festiva do calendário tradicional subsiste ainda – e cremos que por longos anos ainda – na «Entrega dos Ramos».

Esta decaiu, desluziu, humildou-se na ostentação e nos ruídos comunicativos. Perdeu o vigor de centrípeta aglutinação dos espectadores partícipes de mera adesão comunitária ao júbilo e à emoção dos mordomos. Tornou-se uma festa que já não envolve a generalidade dos fregueses de cada paróquia, e se cinge aos que nela efectivamente actuam, mas perdura. Declinou quase exclusivamente nos «parceiros», em cortejo que passa, de dia ou à noite, sem despertar na gente moça o desejo de o acompanhar e acrescer, desfile garrido ou gárrulo, mas já de escassíssimo eco nos sentimentos e nos hábitos.

Na sobranceria indiferente de evolvidos usos e predilecções, pelas usanças consideradas residuais, e, dia a dia, demudados e em cosmopolitização, alheadamente se presencia como uma banal estampa em movimento.

E, entretanto, mais de dois séculos e meio de alterações de costumes, e mais salientemente este em que vivemos – uniformizador, com progressivas e aceleradas tendências para o monótono figurino universal – ainda não extinguiram esta típica, porventura singular tradição aveirense.

Atribuiu-se uma data relativamente remota, dos princípios do século de setecentos, ao início desta / 74 / cerimónia de motivações de pura religiosidade, naturalmente influenciada por uma colectiva psicologia aveirense mas mesclada de paganismo ou, pelo menos, de um flagrante laicismo, nos orgíacos folguedos e ágapes, aliás sem imoderações que escandalizem, e sem esquecer, quanto a estes, famas e proveitos de apetites pantagruélicos de abades que por eles deixaram maior aura que pelas virtudes apostólicas.

Clicar para ampliar.

Socorrer-me-ei do escritor e pensador aveirense de evidência nacional, que foi Jaime de Magalhães Lima. Testemunha qualificada das entregas, em tempos de um esplendor e expressão que já não pude observar nem partilhar, na evocação que delas deixou, no seu estilo pessoalíssimo, há boas quatro décadas, (4) considerava os Ramos como «um símbolo precioso de uma sujeição apetecida», como «uma bênção, um consolo e um conforto, luz do céu, afago que protegia de todos os males o lar onde entrara».

A descrição tem tanto de exacta como de sugestiva.

«Quem recebia o ramo à porta, descia à entrada da casa, no melhor trajo, a acolher o hóspede bendito. No patamar punham-se almofadas, quanto mais ricas melhor, e sobre elas ajoelhavam o irmão que recebia o ramo e o que o entregava.

«O que o entregava beijava-o antes de o deixar, e quem o recebia, beijava-o por sua vez, ao tomá-lo nas mãos, e imediatamente o passava à mulher mais graduada da família. /.../ que ali estava já /.../ para desse modo confessar a sua fé enternecida e prestar culto e reconhecimento às honras que partilhava. Depois, os dois parceiros erguiam-se e abraçavam-se, e os irmãos que vinham no cortejo apressavam-se, um por um, a abraçar o neófito.

Clicar para ampliar.
              A Capela de S. Gonçalinho.

«Na igreja ou nas capelas o ritual da entrega era o mesmo». (E aqui interromperei, para observar que ainda é). «E sempre, enquanto a entrega se consumava, se ouviam as músicas e os foguetes, e muitas lágrimas de comoção se derramavam. Era a visita do Senhor!... A ela se associavam os estranhos amigos dos «irmãos», concorrendo para a realçar com grande número de foguetes. Se se tratava de pessoa de muitas relações e estimada, os foguetes, no momento da entrega, eram um chuveiro atroador.»

Prossigamos com o mesmo depoimento, inexcedível de precisão e relevo literário:

«À noite, a exaltação orgíaca coroava o alvoroço religioso e cedia lugar à festa pagã, pantagruélica.

Quem recebeu o ramo «à porta» recebeu também presentes formidáveis de amigos e dos clientes, arráteis e arráteis de doce, vinhos finos e toda a sorte de manjares e iguarias, e, chegada que fosse a noite, começavam os banquetes por singulares cartas de admissão. Quem lá ia, não era convidado pelo dono da casa; convidava-se, dando testemunho de o felicitar e de se alegrar com a sua alegria. Chegava à porta, lançava a sua dúzia de foguetes, e o beneficiário da graça do Santíssimo e do carinho dos amigos, sentindo os foguetes, vinha à porta abraçar e receber quem os lançava, e, feita esta vénia, que era de rigor, imediatamente sentava à mesa aquele que acabava de lhe significar a sua amizade.»

Clicar para ampliar.
Capela de Nossa Senhora da Alegria.

E para não alongar a citação, passemos a referência ao gabão, da praxe nessa visita, que era idêntica, somente mais modesta, entre os que recebiam o / 75 / ramo num templo da freguesia, e ao barrete garrido, à faixa com que se cingia e ainda hoje cinge aquela típica, e já praticamente só nesta circunstância usada, peça da indumentária local, para sublinhar apenas mais um passo:

«Receber o ramo era uma consagração, um título de dignidade, cobiçado dos humildes e apreciado pelos mais subidos – para os humildes a honra suprema da sua vida, à qual não raro sacrificavam o melhor dos seus haveres». Também nesse ponto se não afastou da realidade, mais estrita, o atrás transcrito Renato Franco, aveirense férvido, no seu conto de inspiração local sobre «Os Ramos» (5).

Pouco tempo depois, festeja-se o S. Gonçalinho. Assim, no diminutivo, que não quer significar um santo infantil, um Menino Jesus que vestisse aos modos de bispo e ganhasse por virtudes e saber as dignidades correspondentes. S. Gonçalinho, por que se venera na capela, e não na igreja que posteriormente lhe tomou a invocação; na capelinha que é o oratório da grande família desse Bairro casticíssimo da Beira-Mar, e onde um sino repica como quem brinca, como uma ladina criança ri, cândida e feliz, em casquinadas cristalinas. O S. Gonçalinho, severo com as irreverências, delas castigador pronto como um raio, como provou ao irrespeitoso Maracas, marido de Maria Augusta Tenaz, e, todavia, como uma criança incontaminada nos sentimentos malfazejos, sensível para a aberta benevolência, mercê da oferta tão desvaliosa de uma guloseima, rústica e difícil de rilhar como são as «cavacas», – Iançadas da platibanda da capela ao rapazio traquina e guloso. O «S. Gonçalinho» que deve ter nascido também na proa de uma bateira como o bondoso D. João Evangelista de Lima Vidal, e é «cagaréu», não sei se capaz de praguejar, mas que em todo o caso, se falasse, fonetizaria com o cantado e as deturpações da gente do bairro a que preside tutelarmente. O S. Gonçalinho, para o qual não é preciso ser católico na rigorosa acepção da palavra, para ceder – garanto-o de ciência certa – os castiçais para a festa. O S. Gonçalinho, no terno diminutivo de S. Gonçalo Velho, que precedeu, como recurso, na função paroquial, a igreja, com a mesma invocação, mas, então, para a gente do bairro, de S. Gonçalo, o Novo – sede setecentista da freguesia de Nossa Senhora das Candeias ou dos Candais.

E, logo a 20, prestava-se culto a S. Sebastião, até aos princípios de oitocentos com a obrigatória participação dos vereadores e do presidente da Municipalidade, ao tempo como é consabido, o juiz de fora. Uma relíquia do Glorioso Mártir, oferecida à cidade, não se sabia se por D. João III ou por D. Sebastião, era objecto / 76 / de veneração fervorosa, mormente nas mortíferas pestenenças que assolaram o país, e ainda no século passado quando grassou a epidemia da «cólera-morbus».

Anos depois, em 1857, o cirurgião Manuel Martins de Almeida Coimbra lembrava à Câmara essa obrigação («costume sempre usado e mandado observar nestes Reinos por pragmática do Senhor Rei D. Sebastião») (6), pois representava ela os habitantes, os quais naqueles dias de luto e aflição, pronunciaram o nome daquele invicto Mártir como seu protector para com Deus, a fim de este Divino Senhor fazer cessar aquele flagelo.»

Também as freiras do convento da Madre de Deus, de Sá, eram muito devotas do mesmo santo, que hoje conserva a sua festa mas incaracterística, na capelinha de Nossa Senhora da Alegria – antiga sede da confraria medieval de pescadores e mareantes. Em 20 de Janeiro lhe dedicavam uma celebração, ao jeito dos outeiros, mas mais ingénua e comedida.

Clicar para ampliar.

     Tricana do segundo decénio do século XX.

Passemos o Carnaval, com as suas folias e chistes, o pó de tijolo e a graxa, as livres mascaradas, o bombardeio de saquinhos cheios de areia, as saraivadas fustigantes de milho, os arremessos de favas e bolotas, e os arremedos de algum caso caricato – e dos bailes do Aveirense, foliões, com pendor para o desregramento, com senhoras e tricanas anonimizadas nos dominós e nos espessos gabões desindividualizadores e, assim, complementos eficientíssimos das máscaras. Intrigantes gabões que eram o passe para uma noitada liberta das pautadas circunspecções exigidas pelos rígidos hábitos de então. Essa mesma função saudosa perderam.

Lembremos, já que corre o risco de desaparecer definitivamente a Procissão das Cinzas – solene, grave, de penitência. Recordemos o contraste das tricanas, que ainda na véspera, envoltas no gabão do pai ou dos irmãos, davam largas à irrequietude moça intrigando os interlocutores, e provocantes nas brincadeiras do teatro, e agora, surgiam, na prova maior da sua elegância patrícia, impecáveis de compostura e respeito às convenções sociais, com o jeito tão seu e tão elegante de pôr o xaile, e sem um deslize, um esboçado gesto ou sorriso que denunciasse a noite anterior. O xaile abandonado, que era adorno, mas era como que o prolongamento dos braços maternais quando envolvia uma tenra criança, também se perdeu já.

A procissão das Cinzas, a mais espectacular, com os seus treze andores, franciscana mesmo nas opas de burel delido, mas que, em ordenação rigorosa e alinhamento, não receava quaisquer confrontos com as de maior ostentação, era a que mais devotos e público mirone atraía a Aveiro, desde que na de «Corpus Christi» deixavam de figurar as imagens, aliás pouco inspiradoras de verdadeiro espírito religioso, de S. Jorge e do Gigantesco S. Cristóvão. O número de terceiros já não basta para conduzir os andores, que constituíam o motivo anual para peregrinação de largos milhares de pessoas. Nem lhes supre já a escassez, o auxílio dos soldados aquartelados em dependências no antigo convento franciscano de Santo António, onde ela se organizava.

Nesta terra que, repetimos, proveio do sal, a crise do amanho das marinhas, e o estilo de vida dos novos tempos, com legítimas aspirações de maior exigência, fizeram desertar dessas fainas típicas da gente da nossa Beira-Mar a juventude ali nada e criada. Prefere novos rumos, menos penosos e de maior e mais certo proveito.

Praticamente deixaram de existir «moços» de marinhas naturais de Aveiro. Esse facto, que na história social aveirense constitui uma das mais profundas modificações, equivale, num próximo futuro, ao desaparecimento dos marnotos aveirenses, que representavam um dos estratos da comunidade local com maior genuinidade e expressão. E constituirá, a par dos aspectos / 77 / económicos, uma causa de abandono das tradicionais e genetrizes salinas, a curto trecho, ou a prazo que nos esforcemos, contra a corrente, por dilatar com teimosas panaceias de transparente precariedade.

E, assim, como já dissemos algures, não fenecerão apenas os usos e tradições, cortejos religiosos e costumeiras festividades, não desaparecerão somente marnotos e tricanas – onde vão as «lendárias tricanas», como as qualificava Homem Cristo, esbeltas raparigas do povo em vias de promoção, que deslumbravam?

Transformar-se-á, também, desindividualizar-se-á a paisagem e perderemos o próprio assento de baptismo de Aveiro ou os seus ancestrais traços mais identificadores da genitura.

Nem velas na laguna, que os «moliceiros» avizinham-se da agonia, e os «mercantéis» são substituídos pela camionagem, nem montes de sal, que desde o nascimento de Aveiro constituem um específico elemento panorâmico desta sedimentada formação geográfica litoral.

Clicar para ampliar.

Pormenor da Procissão das Cinzas.

A procissão das Cinzas ter-se-á desfeito em cinza, revertido a cinza como tudo o que nasce. Mas já, noutro ensejo fizemos essa reflexão: «As crianças de Aveiro, mesmo as mais tardonhas em articular as palavras, pelo facto de não poderem passar, em qualquer das artérias citadinas, por debaixo do andor de Santa Clara, e do de S. Luís, rei de França, não deixarão de falar o seu tempo, com a língua desentaramelada e escorreita pronúncia. Mas continuarão, mesmo que depois rilhem as duras «cavacas» de S. Gonçalinho, e, em Dia de Todos-os-Santos, comam as «papas de carolo», e os padrinhos as mimoseiem com os folares pascais, continuarão a proferir, pela vida além, o nome de Aveiro, com a mesma vinculada e férvida unção?»

E, não haverá mais, se acaso a Procissão da Venerável Ordem Terceira cessar de vez, um dia certo, no calendário aveirense, para mercar e saborear os primeiros figos passos, de ceira? Ou ficará transferido para dez dias depois, para as Procissões dos Passos – as dos mantos e opas roxos, como as feridas e as dores aculeantes, e os prenúncios da morte – cadenciados como dobres, ao som cavo, já funéreo, dos tambores que ritmam a marcha e as pulsações do crente compartilhador do sofrimento de Jesus.

Clicar para ampliar.
Procissão do Senhor dos Passos, da Vera Cruz.

Essas, com as violetas e açucenas, coroas de espinhos e sudários, com filas de penitentes descalços a atestar que são cortejos mais para aprazer na dor sofrida do que para presenciar, essas persistem, renitentemente duas. Só que começam a baralhar-lhes as datas, e, por fas ou por nefas, a alterar o calendário aveirense, acordado por consenso com os oragos das nossas capelas, não infrigido em séculos, o uso consuetudinário – religiosamente respeitado – de tão rigorosa observância, que chegava a fazer coincidir a festa de Nossa Senhora das Febres, com o alagar das marinhas, para termo da safra.

Como acontecia no tempo em que Esgueira – vila gémea de muitas centúrias, que medrou até menor estatura e não atingiu a robustez da siamesa irmã aveirense – ainda não fora englobada na área citadina, as duas procissões constituíam um dos pares que caracterizavam o Aveiro na sua fisionomia, física e humana, de até às proximidades da meia centúria deste vigésimo século de modificações aceleradas.

Havia duas bandas rivais, com «amantéticos» afervorados, que nem concebiam cotejos possíveis de beleza e fôlego interpretativo das óperas e zarzuelas mais famosas, e das rapsódias e marchas, mais alegres ou empolgadoras. Havia, entre um punhado deles, dois émulos clubes de ferrenhas parcialidadedes, e duas corporações de beneméritos bombeiros – agora de mãos dadas, fraternalissimamente, mas que chispavam faíscas no despique do luzir dos capacetes e do denodo e espírito de abnegação.

E havia, manifestamente, Alboi e Rossio – de onde a rapaziada, amiga, mas separada pela raia do Canal da Ria, trocava pedradas e motejos – para cá e para / 78 / lá das pontes. E duas pontes a separar e a ligar: a da Praça, na enfiadura da Costeira e dos Balcões, a que com as nossas irresistíveis propensões de mudar, crismamos depois de rua de Coimbra e de Arcos, ou Arcada; e a das Almas – as Alminhas, pegadas ao café desértico e estático da Senhora Perpétua, que assim se chamava e ilusoriamente parecia – onde os estudantes cábulas e crédulos muitas vezes rogaram angustiosamente a graça inspiradora, nas vésperas de qualquer prova difícil de passar como o Rubicão, em troca de um magro níquel.

São dois os Senhores dos Passos, desde aquele dia famigerado em que os cagaréus, desde o Rossio ao Carmo e a Sá, conjurados em rigoroso sigilo – pescadores e burgueses, analfabetos e a mais alta figura de letrado e pensadar – foram a S. Domingos raptar a velha imagem usurpada, restituindo-a ao seu vero altar, no templo carmelitano. E desde que, por via desse acto – oh! quase sacrílego – de reapropriação, os «ceboleiros», ludibriados e vexados, se puseram nas suas tamanquinhas, e, briosos, responderam à provocação dotando a cidade com a mais expressiva imagem religiosa que possuímos, concebida por Teixeira Lopes e, por suas mãos de artista, com insaciáveis buscas de perfeição, finalizada.

A curta trecho, separada no último quartel do século passado, pela minuciosa regulamentação do Dr. Elias Pereira, da que vendia de tudo como na botica, realizava-se a feira de S. José – precisamente a 19 de Março. Já nem sequer se lhe topa o rasto. E, no entanto, no primitivo arranzel da feira medieval, criada em 1430 por iniciativa do donatário, que então era o Infante D. Pedro, «o mais claro príncipe das Espanhas», os artefactos de madeira e tabuado, os carros de bois e cangas, ocupavam a maior parte do rol dos itens da meticulosa tabela de taxas. Pois extinguiu-se.

E, a propósito de cangas, cangas ou jugos, nomes que soam a sujeição, a humilhação, talvez a prepotência quando referidas aos homens, mas que, quando aplicadas aos bois, embora denotem o predomínio da inteligência sobre a força bruta, são necessárias e até belas, observemos como o mundo muda e se monotoniza. As cangas tomam maior ou menor exuberância de ornatos, diversa vivacidade de colorida, ou resumem-se ao estritamente funcional, consoante as regiões. Apresentam-se com um aspecto no Minho e diferente no Douro; sobriíssimas lá para os alcantis de Arouca, com barrocos filigramados nas da zona marinha do distrito; umas ao norte, outras ao Sul do Vouga. E já estamos todos a pensar em uníssono, com certeza: em toda a parte há bois a jungir, e em cada terra o jugo tem seu cunho distinto. Pois pululam por aí não sei quantas linhas de montagem de automóveis, e os carros saem iguaizinhos sem tirar nem pôr, na traça, no tom da tinta, no timbre com que businam e nas azoinam os ouvidos, e, depois, no cheiro à gasolina, com a inalterável composição química, ou ao gasóleo fumento, que é próximo parente. Faz saudades já dos menos poluidores adubos orgânicos sapidificadores dos produtos do agro, dos mostos capitosos, dos moliços ou dos escassos. É um sintoma de igualização achatante dos nossos tempos. E, notemos que se toma como um sinal do nosso atraso, em comparação com as mais avançadas sociedades de produção e consumo, a existência / 79 / de alfaiates que ainda nos fazem os fatos por medida. É mais caro, e mais incómodo, e sinal retrógrado na acelerada evolução a que estamos assistindo, mas ainda, por feliz contrapartida, nos dá a sensação de sermos indivíduos e não apenas utilitariamente consumidores.

Clicar para ampliar.
Um aspecto da «Feira de Março» antes de 1911.

Depois da «feira de S. José», que Deus haja, porque o espírito humano se tornou cada vez mais inventivo e empreendedor, e a tornou dispensável, vinha a «Feira de Março». Iniciara-se em Maio, mas não persistira nessa época. Aí se enganara o lúcido e benemérito Infante das Sete Partidas. A feira só tinha viabilidade com a chegada da Primavera e as proximidades da quadra Pascal. E era sempre diferente, e era idêntica. O «Zé das mentiras», com o seu cornetim não seria o mesmo que o circo com o altifalante; havia mais barquilhos e menos farturas; diferente disposição e maior variedade de artigos; feirantes com poiso vitalício; o Zé Manhanhas que vendia berços sem cedilha; o oculista, a boa mulher das mimosas flores de papel que por aí enfeitavam os oratórios; o «Silva 5», que na minha imaginação devia ter semelhanças de família, já não sei por que traços, com o João da Cruz, do «Amor de Perdição», e por aí espalhou talheres de Guimarães sem conta. E os ourives, os cobertores de papa, autenticamente serranos, como atestavam os queijos que nas mesmas barracas se mercadejavam.

Mas era a mesma, ainda sem a invasão actualizadora dos plásticos, para as crianças, e a rapaziada moça, que aqui há dois carros de anos ainda não acamaradava com as conversadas, mas ia lá vê-Ias, ao largo, embevecidamente.

E teríamos chegado à Semana Santa. Mais geral e devotadamente concelebrada pelos Ieigos. Com outras maneiras, abolidas ou novamente abandonadas, mas com um sentimento mais vivo e de mais significativa exteriorização.

Clicar para ampliar.
      Procissão do «Senhor Ecce Homo».

No Domingo de Ramos, conta Homem Cristo (7), aqui há pouco mais de um século, e por aí à volta, vinham mulheres do campo vender alecrim. Com ele, outros arbustos, lilases e outras flores, iam crianças e adultos benzer o ramo, compósito e oloroso, e conduzi-lo em procissão para o templo paroquial. Como hoje, mas com mais acentuado cunho, maior generalização nos hábitos ainda não contaminados e postergados. E já não importa lembrar que, desde a Idade Média, até que eles ruiram ou foram imolados à obra ressuscitadora da fixação da Barra Nova, «os meninos do coro (depois de juncarem o caminho com aquele ou outro género de verduras) subiam para os muros de defesa e pediam que se abrissem as portas, que tinham sido fechadas».

As muralhas desapareceram. Eram uma cintura, mas uma coroa honorífica, quase um diadema. Já se lhe não fechariam as portas, por ventura, desde há muito, se não em ocasiões desse género. Franqueava-se dia e noite a entrada dos marítimos que demandavam o porto. E o próprio «sino da ronda» cessou, ao menos em certos períodos, de tanger, para cominar a obrigação de recolher a casa a horas de conveniente morigeração.

Em quarta-feira de Trevas era, e é, mas mais discreta nestes dias de hoje que nos de antigamente, a «Visita do Senhor aos Enfermos». E eu ainda aqui me / 80 / abono, com um trecho memorialístico do mesmo insigne aveirense, de conhecido agnosticismo (8): «A unção com que o doente, macerado, emagrecido, osso e pele, quase toda espírito, tanto o corpo desaparecera lambido pelo sofrimento, abria a boca para receber a hóstia consagrada. Depois, a calma que lhe vinha! O desprendimento de tudo! A satisfação íntima! Nem mais dores, nem mais miséria! /... / Não o assustaria o caixão, se estivesse ali aberto! Não lhe causariam horror os vermes se os visse, prontos já a devorarem-no no fundo da sepultura!»

No dia imediato, a Santa Casa da Misericórdia organizava a procissão do Senhor Ecce Homo. Fora à noite, ao som cavo e lúgubre, cadenciado, de matracas. Conheci-a já a meio da tarde, silente, em austero recolhimento. Solenes, com a exigida circunspecção, de rigoroso luto, no fato e nas próprias opas negras, os irmãos e todos os mesários, acompanhavam o andor magnífico do «Senhor da Cana Verde», desde a sua Igreja própria até à do Carmo. Daí regressavam, após um breve descanso. E na cauda do préstito, de extrema compunção, o Leandro erguia, ufano, o painel com a Nossa Senhora da Misericórdia a receber as preces de angustiados fiéis.

Era apoucado o Leandro, irascível aos dichotes da pequenada traquina e irreverente. Nessa ocasião, todavia, tão compenetrado da dignidade que lhe conferiam, poderiam dirigir-lhe o mais grave dos apodos, insistir no que e para ele representava o mais intolerável dos ultrajes, chamando-lhe «cavalo branco» – se mesmo alguém nessa hora a tal se atrevesse, – que ele seguiria imperturbável, invulnerável à injúria.

O dramaturgo e poeta aveirense Joaquim da Costa Cascais evoca esse dia solene num poema rememorativo da sua meninice, datado de 1855 (9).

«As igrejas visitando

Anda gente, hoje, sem fim

Quem viu quinta-feira santa,

Que a não visse andar assim?

 

E já noite, infindo povo

Vê-lo junto, sem motim

Descoberto, de joelhos...

Faz pasmar! Mas não a mim;

 

Que no seu andor, lá vejo,

Com seu manto carmesim,

Veneranda imagem, feita

De um só tronco de alecrim.

 

É do Senhor – Ecce-homo

– E eu por vê-Ia também vim

Procissão – e a mais solene,

Té mouros dirão que sim.»

Na sexta-feira, com as cerimónias litúrgicas próprias da data, seguintes às dos dias anteriores, a «Procissão do Enterro», salvo na circunstância de não se efectuar à noite, como agora, não variava sensivelmente da que hoje presenciamos. No sábado, a Aleluia celebrava-se na igreja, e por aí onde quer que fosse, por toda a cidade.

«Eu – escreveu Homem Cristo, na evocação que me venho abonando – lá estava, de campainha na mão, à espera dela. (Da Aleluia, entenda-se). Desde alta manhã! Sonhava com ela! /.../ E tocava, tocava, espantando gatos e pássaros, pondo cães a ladrar, galinhas

a cacarejar!...».

Mas volvamos ao General Costa Cascais, militar, professor, homem de teatro e vate, e vejamos como ele nos descreve as Trevas, de há centúria e meia, num dos templos locais: (10)

«Porque seu melhor adorno

Agora o templo não tem?

Nem Senhor crucificado,

Nem santos vejo também! / 81 /

 

Porque, o sol dessas imagens

Alegrá-Ia hoje não vem?

Tristes, roxos véus, só vejo

Pendentes, aqui, além.

 

Incensos, festivos cantos,

Som de mágoa hoje os detém;

É que dor maior não houve

O mundo para maior bem.

 

Hora fatal se aproxima,

Pranteia Jerusalém,

Vai nas trevas submergir-se

Pura estrela de Belém.

E prossegue, relatando as suas reminiscências do primeiro quartel do século passado, talvez o mais digno de ser assinalado na história de Aveiro, ainda então muita presa e prezadora de tradições e, então como nunca, rasgadamente aberta aos ideais progressivos da Liberdade:

«Já tocam matracas,

Já moças aprontam

Rapazes que cantam,

À noite, na igreja,

 

As trevas bater

A mais não poder.»

E da mesma poesia, que fixa os costumes dessa já remota época, voltando à ordem cronológica, vejamos a recordação da Aleluia:

«Já se ouviu – Glória in excelsis,

Aleluia já soou;

E nem sinto nem garrida,

Nem uns só deles tocou!

 

Pois se as trevas já findaram,

Se luz nova já raiou,

Nem um toque de alegria

Em Aveiro ressoou!

 

Inda não; que ao sinal dado

Da Matriz, (11) tudo ficou;

E num tempo, agora, tudo,

Tudo em cheio repicou.

 

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...  

 

E um Judas pendente,

Na corda dansava;

Ao som da algazarra,

Que a plebe soltava.

 

E o povo, e mais povo,

Se o caso era novo!

Que o Judas, Aveiro

Não era vezeiro.

 

...   ...   ...   ...   ...   ...   ...

 

– Cairam-Ihe as calças!

«É Judas sem alças».

– Espera – traz saia!

«Mas Judas é macho!»

 

Este é de outra laia;

«Será macho-fêmea!»

– E nisto, um gaiato

Doutor no pião,

Em pela, e bilharda

Lhe chega um tição.

E o fogo se ateia,

E o Judas rabeia.

E bichas sibilam

E forte rebomba

O estoiro da bomba,

– E oJudas então,

Caído é no chão.» (12)

Já, de novo, se não queima o Judas. O último, que me lembre, remonta já há uns quatro decénios. No auge da campanha a favor do ressurgimento do porto de Aveiro, um leigo atrevido, nunca estulta pretensão, gizou um pseudo-projecto que se julgou nefasto aos interesses regionais, pelo pretexto que oferecia aos que, com objectivos inconfessados, poderiam aproveitar o ensejo, para contrariar as aspirações aveirenses. Foi esse o último Judas, embora fosse o autor de uma sátira que visava Homem Cristo, campeão estrénulo desse anseio – e que intitulara «Iscariote».

O Judas já não se queima, e estoira e estilhaça, para simbólica execração e gáudio. Mas, à parte o nosso desprendimento por ninharias, ou o que como tal tomamos, e julgamos desmerecedoras, o Domingo de Páscoa quase não sofreu alteração.

As procissões da Ressurreição já não coincidem, como era frequente, na passagem por uma e outra margem do Canal. Agora sai apenas uma, na freguesia da Vera-Cruz. Mas é ainda alegre, gloriosa, como o sol primaveril que, normalmente, aviva, no zénite do meio dia dominical, o vermelho brilhante das opas dos aprumados e aprimorados mordomos do Santíssimo Sacramento, e reluz o metal nas fivelas dos sapatos de entrada alta e no oiro velho do pálio e paramentos, e ilumina os sorrisos ingénuos e felizes dos «anjinhos», cândidos como as brancas asas. / 82 /

E é dia dos folares, folares aveirenses, de massa doce sem demasia – do mesmo gosto desenjoado do também muito aveirense «bolo de vinte-e-quatro horas», com que se acompanha o chá. Com variável número de ovos, consoante as posses e as generosidades dos padrinhos, têm-nos incrustados na massa fofa, a ela apresilhados com algumas tiras, um tudo nada mais tostados, do mesmo pão dulcificado.

Clicar para ampliar.
Um folar de ovos aveirense

O folar com esta feição arreigou-se tanto nos usos de Aveiro, ou mais ainda, do que as «papas de carolo» do Dia de Todos-os-Santos, ou as «cavacas» de S. Gonçalinho. Páscoa aveirense integral pressupõe folares com ovos. Sem eles torna-se incompleta, dissaborida e desnaturada.

Inopinados desmancha-prazeres reincidem em aparecer, todavia, em concorrência aberta com a costumeira especialidade da nossa época pascal, uns aparatosos «ninhos». Por sua própria definição acoitam alguns ovos, maquilhados, polícromos, como as amêndoas que lhes completam a ornamentação. Intrometem-se em terra alheia estes potenciais bandos de aves de arribação, e faz raiva que pretendam usurpar o que lhes não pertence. Que as nossas «raivas», ao fim, serão por vezes duritas de roer, mas são doces, e também uma das nossas especialidades mais apreciáveis. Aliás, poucas são e, de certo, cumpre-nos defendê-Ias de intrusos, aplicando-lhe as pautas aduaneiras do nosso sentimentalismo bairrista. Muitas já se perderam. Aqueles biscoitos, idos de Aveiro, por exemplo, que Júlio Dinis comia em Ovar, com o chá, em casa do recebedor Tomé Simões, pai das «Pupilas». Conta-o Egas Moniz, que não avançou uma afirmação sem a mais científica das certezas. E não se cinge a essa referência. Noutro passo da biografia exaustiva do autor da «Morgadinha dos Canaviais» acrescenta que D. Doroteia trouxera – de um convento de Aveiro uma qualidade apreciável; a de saber preparar uma infinita – repare-se, infinita – variedade de doce, que lhe grangeara merecidíssima reputação.

Os folares – cujos ovos, garantidamente, ainda não são de plástico, mas já não poderá asseverar-se que não provenham de galinhas de aviário – não possuem os méritos gastronómicos e a nomeada dos ovos moles famosos, esses que em certas mesas de requintadas exigências, como li algures, «eram servidos de joelhos, com reverências ritualistas». O Dâmaso de «Os Maias», pateta e fátuo, mas nesse particular a falar sentenciosamente, dizia-os «um doce muito célebre mesmo lá fora /.../, uma delícia!» E o Carlos da Maia, o mesmo que se encafuava no gabão de Aveiro, para, sem dar nas vistas, visitar a Maria Eduarda, anuia: – «Ah! Certamente. Certamente.»

Clicar para ampliar.

O Monumento das Cabeças - à memória dos justiçados da Revolução de 16 de Maio de 1828.

Nem despertam o interesse das caldeiradas que Fialho de Almeida, entendido «gourmet», hiperbolizava: – «Quem não comeu já /.../ as caldeiradas patrícias, inverosimilmente celestes dos Gamelas de Aveiro e a caldeirada da raia dos pescadores de S. Jacinto?...»

Nem provocam a gula, como as nossas enguias de escabeche; ou os celebrados leitões do famoso Farruca, que o Barão de Cadoro registou entre os nossos varões memoráveis para os pósteros, num dos seus romances, e teve sucessores e émulos; o carneiro da caçoila de / 83 / barro preto, ou os robalos assados pelo Zé Maio, com uma receita inspirada no simbólico caldo de pedra.

Mos os folares de Aveiro, são os folares de Aveiro, são patrimoniais heranças, e é altura de o lembrar com todo o vigor proselítico. Enquanto a indústria dos «ninhos de Páscoa», com pés de lã não faz o ninho atrás da orelha dos aveirenses ingénuos, incautos ou infirmes nas suas radicações sentimentais.

E cumpriria, depois da festa da Senhora da Alumieira – complementar, com os farneis bem fornidos, das celebrações pascais – aludir ao Primeiro de Maio, e à madrugada que se fazia para ir colher, no redor da cidade, as flores de sabugueiro, «as maias», e depois com elas enfeitar a escola para ganhar jus a um feriado oficioso. E, não deveria faltar a menção, a uns vagos comícios, nesse dia consagrado para os operários idealistas, de que o incipiente proletariado se alheava, e em que os oradores despejavam os discursos apostolizadores a algum punhado de estudantes cépticos e reinadios, na circunstância considerados «proletários do cérebro».

Outra data com imposições cívicas, poucos dias após das pomposas celebrações em honra da Padroeira da Cidade – que não mudaram apreciavelmente – era o 16 de Maio, dedicado à memória dos aveirenses mortos pela Liberdade e imolados aos seus generosos ideais, subsistira, mesmo depois de no próprio regime monárquico ter cessado a comemoração da outorga da Carta Constitucional. Foi feriado municipal, dia de romagem ao cemitério e de deposição de flores votivas no «Monumento dos Cabeças» dos justiçados por participação activa na Revolução de 1828 contra o absolutismo.

O dia da festa do «Corpo de Deus» figurava entre os dias maiores de Aveiro. Não que ela fosse apenas nossa, mas era também desta cidadezinha, da qual, como dizia um nosso bispo tão aveirense que como dissemos se imaginou nascido na proa de uma bateira: «quem viu uma procissão em Aveiro, não viu decência maior em parte nenhuma».

Já nos inícios do segundo quartel do século XVIII fora amputada das costumadas danças e figuras como eram «a serpe e drago, cavalinhos, fuscas, jucalheiras mouriscas e ciganos» e «mais cousas indecentes e jocosas» que distraíam a devoção. Todavia atraía milhares de romeiros, com o S. Jorge a cavalo, escoltado por soldados em montadas ostentosamente ajaezadas, e o S. Cristóvão, o Santo Grande, a pé, conduzido por um homem possante, oculto no manto folgado. E pouco / 84 / valeu que o futuro e virtuosíssimo Arcebispo Bilhano achasse pouco edificante a incorporação da gigantesca imagem pedestre, pois sempre, até à queda do antigo regime, acompanhou no préstito, famoso em todo o alfoz aveirense, o santo tutelar dos nossos exércitos.

Clicar para ampliar.

E de Ceca e Meca, desde Vagos a Ovar, e todo o termo aveirense, que não só, como agora a gente de Aveiro – e essa em decrescente número – acorriam devotos ou meros amadores fieis das usanças, a trazer ao «Santo Grande» e nele a tocá-Ias, boroas clássicas ou adoçadas, regueifas, toucinho e outras dádivas. Uma metade ficava para a igreja, para os pobres; a outra, levava-se, que constituia um eficacíssimo remédio para o fastio. Creio que ainda possui essa estimável virtude. Digo-o de ciência certa. Todos os anos, sem excepção, me regalo com uma fatia de broa do S. Cristóvão, com uma dosezinha de açúcar, que me está proscrito, e uma pitadinha de erva-doce. E ainda não perdi o apetite!..

Chegava, depois, o período dos Santos Populares.

Um cortejo entre a forma como se festejam os dias, ou antes, as noites dos chamados Santos Populares e o modo como se celebravam aí à volta de meio século atrás, daria margem para detidas reflexões.

Também aí os usos mudaram, porque se transformaram as pessoas e as suas predilecções. Perdeu-se a espontaneidade, e, nestes tempos dos sacralizados desportas e da voga – e proveito incontestável – da educação cívica, das maiores capacidades toráxicas e das tendência para o ar livre, desintoxicante e desopressor das tensas ralações da vida, anemiou a alegria.

Os moços, mesmo os contraditores, de dentes cerrados, com as aparências de desconvencionalismo, em larga parcela mostram-se circunspectos como os homens maduros de então, e parece que tem pejo dos folguedos em que cada um se integra numa massa de gente sem bitolas, que se expande e diverte, fraternal e comunicativamente.

Pois aqui há um carro de anos, a véspera e a data de Santo António, em Aveiro, quase se restringia a um mero ensaio, a um afinar de instrumentos, que, na verdade, a par de um septeto, ou valsa que o valha, mais ou menos filarmónica, marcava o ritmo e a arrancada dos pés dançarinos.

O S. João, esse, sim, trazia uma noite de plenitude para a folia. A tradição remontava aos tempos seiscentistas, se não anteriores, em que a depois demolida capela do Rossio o tinha por patrono, e, no amplo logradoiro, o festejavam, com espectaculares torneios hípicos e taurinos, os fidalgos e a arraia-miúda.

Faustosas as festas que descreve, em 1687, o memorialista aveirense Cristóvão de Pinho Queimado. Em «Iuzidas carvalhadas», os nobres de Aveiro e da vizinha Esgueira apareciam com «os mais ricos telizes, primorosamente bordados com bordaduras de ouro e prata, e sedas de várias cores, e veludos ricos de terciopelo, com suas armas brazonadas e divizadas, trajando os seus mais ricos vestidos de gala, e plumas, e depois de praticarem com a maior destreza e a mais brilhante mestria diferentes jogos de cavalaria correm a sima, pela vida e acabada esta função seguem à estacada dos touros». E rematava a descrição, depois de acentuar que raro era o ano em que não se registasse algum desgosto, ocasionado por descomedido atrevimento e ousadia em acometer os touros, por mencionar o fim da festa: «e também naquele dia se fazem mui vistosos fogos de artifício de dia, e também de noute com figuras como bonifrates de mui engenhosas invenções (13).

Neste mesmo aspecto sobreexcediam de longe os fogos das nossas comemorações sanjoaninas, que se limitavam às fogueiras e às «bichas de rabiar», em que era perito local o já mencionado Zé Manhanhas, uma caricatura de homem de quem a criançada irresistívelmente troçava.

Pululavam, disseminados por cada bairro tradicional, se não por cada rua, as capelinhas e cascatas. A noitada da Praça do Peixe, com as fogueiras em torno, à roda das quais se dançava, e que se saltavam, ágil e divertidamente, tomava uma animação desbordante.

Os «pelotes», do último quartel do século passado já assim procediam, a par dos marnotos e das tricanas.

Depois, chamavam-se «papos secos», mas, da mesma forma, com os tisnados trabalhadores das salinas, ou os pescadores – que ainda os havia na cidade, ou os «ganha-pães» – como José Estêvão chamava, aos que ganhavam o sustento do dia-a-dia, com o «suor do seu rosto» – de todo o género de labutas, e, assim, os mais abastados em comum com os de pequenos recursos, bailavam e reinavam. Acotovelavam-se, sem distinção de classes ou posições sociais, e, às vezes, disputavam para par a mesma rapariga de mais sedutora formosura.

Havia os petiscos próprios, um afoito à-vontade sem pisar a risca das conveniências, o saltar não só das fogueiras mas de todas as barreiras sociais, um convívio aberto, sem constrangimentos.

Na Barra para a gente da serra, que afluia desde o Arestal e das Talhadas e do próprio Caramulo, do velho termo aveirense de largo aro, a festa abrangia o «banho santo» na Barra, de taumatúrgicas virtudes, mas com os insidiosos perigos que sempre são de temer a quem, desprecavido, afronta o mar.

O S. Pedro, comemorava-se, especialmente, à volta da viela que o tinha como patrono, e, num cunhal, ainda hoje existente, lhe entronizava a imagem de um barroquismo sem excessos e de boa lavra – e, assim, sem lhe diminuir em atavios a majestade pontifícia.

Depois, desde os meados da segunda década deste século, perseverou ainda no largo que se formou a / 85 / partir desse beco, que da rua dos Mercadores enfiava na do Alfeno e tomaria o nome laico da revolucionária data gloriosa do 14 de Julho, em homenagem aos franceses, que na Primeira Guerra Mundial instalaram a aviação marítima em S. Jacinto.

Tinha ali o S. Pedro fogueira, música e bailarico, alegria, esfusiante como as «bichas de rabiar», alvoroçadoras, e copiosos fregueses para as tabernas e botequins das redondezas.

Aliás, o S. Pedro, tomado o gosto aos folguedos, prolongava-se por longos dias. E celebrava-se desde o Espírito Santo até ao Bairro de Sá, se calhava até às bandas do Senhor dos Aflitos – que, nesses dias de descontracção, as tristezas deitavam-se para trás das costas, e as angústias esvaíam-se.

Pois tudo passou. Criado como que uma alegria de modelo único, com sabor a sopas de envelope, obediente a planos prévios, as festas dos Santos Populares, em Aveiro, não passam de uma recordação.

Permitam-me, porém, que não me alongue mais. Que omita sei lá bem o quê. Os funerais nocturnos, com Iampeões e sem música, soturnos, à «capucha» como os denominavam. As festas da Senhora dos Febres – no masculino, repito, como dizia a gente da Beira-Mar e da Praia. Dispenso-me de dizer que, e porque, transgrido as prescrições da minha dieta, com as «papas de carolo» do Dia de Todos-as-Santos. Omito o que eram os Arcos do tempo dos Senhores Barbosas, do Francisco Elias Gamelas, merceeiro acreditado que durante o ano guardava a imagem de Nossa Senhora das Areias, no dia da festa conduzida em procissão fluvial para a capela de S. Jacinto; e da loja do Senhor Ricardo e do Cisne da Arcada onde pontificava o Dr. Joaquim de Melo Freitas, culto e cintilante conversador e aveirense da mais pura gema. No Ginásio Polivalente do Rossio cursavam-se os preparatórios universitários, do curso de aveirismo. De humanidades e de cultura física. Os Altos Estudos frequentavam-se nos Arcos e talvez na Praça do Município.

Clicar para ampliar.

A imagem de S. Pedro que se festejava na viela de que era patrono.

Esqueço o «picadeiro» do jardim, parada das elegâncias locais, durante os concertos da Banda Regimental, e os serões das boticas, de que fui testemunha silenciosa e por vezes sonolenta.

Cinjo-me ao primeiro semestre do ano. Nem sequer, como em certas composições musicais, emprego o «do-copo», para findar com as entregas de Ramos do Natal.

Observarei, apenas, que Aveiro, uma a uma, vai perdendo as tradições e costumes, os mais enraizados, significativos e caracterizadores, os que tinham mais vincado traço na sua fisionomia de singular agregado populacional, simultaneamente apegado aos usos pretéritos e de espírito amplamente rasgado ao porvir do homem e às suas reivindicações e direitos, e aos da terra, de horizontes sem obstáculos, onde ele habita.

As gerações presentes, como já as passadas, herdaram-nos, como outras obrigações mais incómodas do que dispiciendas, dos ascendentes. E, como filhos perdulários, esbanjadores do abastado património, herdaram, mas pouco ou nada conservarão para legar aos vindouros. E nada, ou quase nada, constituirá a sua contribuição para lançar e fixar na terra de nascimento, na terra-mãe, alguma nova usança digna de perdurar.

Não me julguem contra o progresso, e os seus benefícios. Nem os combato nem os dispenso. Desejo-os sincero e profundamente mais disseminados, mais equitativamente distribuídos. Mas o que a técnica propicia será fatalmente, irremediavelmente incaracterizador? Não pretendo remar contra a maré, e contestar, numa época em que se contesta o que subsiste de anacronicamente tolhedor de anseios legítimos, talvez informuIados mas a que não faltam justificações. O problema, todavia, a quem como eu é um homem da sua terra, visceralmente, vai-me penetrando como uma lenta verruma. Se as terras perderem os seus costumes e peculiaridades, e desprezarem as suas tradições próprias, / 86 / e abandonarem às correntes uniformizadoras a sua fisionomia específica, e substituirem o que é tipicamente seu pelo generalizadamente universal; se as terras nem tiverem seus dias próprios de confraternidade, e deixarmos de reconhecer-lhe o som dos sinos, e de cultivar a memória das suas figuras tutelares, e de lhe celebrar os fastos, e todas se igualizarem, porque hão-de ser designados por um nome e não por uma etiqueta mecanografada ou um número? Que quererá dizer Aveiro, ou Viana do Castelo, por exemplo, se algum dia Viana ou Aveiro forem iguais a todas as terras do globo? E que significará isto de aveirismo que é devoção a uma terra singular e a um modo particular de ser cidadão de uma pátria e do mundo? E porque nos haveríamos então de considerar aveirenses se nada de distinto houvesse na nossa maneira de estar no mundo dos homens?

Eu sinto como Homem Cristo: – «sinto que no meio dos seus encantos, o maior dos encantos, ainda assim, é para mim ser esta a minha terra. Dobra os encantos. Como não havia, como não há-de ser assim, se sem encanto nenhum da natureza, esse seria só por si, um grande encanto!»

E somos aos encantos da natureza, os sortilégios de uma terra que é a minha, e mesmo desapegando-se, de sucessivas vinculações, permanece diferente, prossegue, não digo melhor nem pior, mas como ela só.

________________________________ 

NOTAS

(1) – Marques Gomes, Subsídios para a História de Aveiro, pg. 13.

(2) – Homem Cristo – Notas da minha vida e do meu tempo, VoI. III, pg. 229.

(3) – Renato Franco – Beira Mar (Contos), Aveiro, 1914, pg. 61 e segs.

(4) – O Correio da Manhã, de 11-1-1928.

(5) – Obra cit., pg. 29.

(6) – Eduardo Cerqueira – «Apontamentos sobre antigas Procissões de Aveiro» 1967, pg. 28.

(7)Banditismo Político, pg. 954.

(8)Banditismo Político, pg. 955 e segs.

(9) – Joaquim da Costa Cascais, Poesias, voI. lI, pg. 216, 1898.

(10) – Ob. cit., pg. 210.

(11) – A demolida igreja de S. Miguel, que se ergueu, até 1835, onde é hoje a Praça da República.

(12) – Ob. cit., pgs. 220 a 223.

(13)Arquivo do Distrito de Aveiro, VoI. III, 1937, pg. 99.

 

páginas 69 a 86

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte