Luís Gomes de Carvalho, Memória descritiva da abertura da barra de Aveiro, Vol. XIII, pp. 34-57

INTRODUÇÃO

A abertura da Nova Barra de Aveiro é um acontecimento notável em si, pelas suas transcendentes consequências, e muito mais ainda pelos cuidados e desvelos de S. A. R. para salvar os povos, deste vasto país noutro tempo florescente, mas que depois a miséria e a morte quase aniquilaram, empreendendo uma operação que os esforços repetidos de outros reinados não puderam realizar depois dos maiores sacrifícios, e dos mais empenhados trabalhos, calculados e dirigidos por hábeis engenheiros, hidráulicos, e outros sábios tanto nacionais como estrangeiros, empregados em diversas épocas nas diferentes tentativas que se fizeram; as quais serviram só para estabelecer no ministério, no reino, e fora dele, a desgraçada opinião de sua impossibilidade pelo bom fundamento de haverem sido nulos os resultados de todos os planos, e tentativas até ali sempre infelizes e malogradas. S. A. R., arrostando novamente esta empresa já desesperada, esqueceu todas as dificuldades que ela apresentava para seguir unicamente os magnânimos sentimentos do seu paternal coração tocado pela suma desgraça de Aveiro, que na última agonia invocou a régia clemência, dirigindo respeitosamente aos pés do Trono as suas humildes súplicas pela intervenção do esclarecido e sempre ilustre D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois conde de Linhares; cuja opinião quase singular, bem pronunciada, firme e decidida a favor de uma nova tentativa de abertura da barra para salvar Aveiro, restaurar o seu porto, e o país mais imediatamente interessado, habitação e património de mais de 100.000 vassalos, era conforme aos desejos de S. A. R., e foi a que o mesmo senhor adoptou com heróica firmeza: e confiando ao mesmo tempo este importante negócio ao activo ministério daquele incansável ministro nos fins de 1801, foi pela sua repartição que emanaram no real nome em Janeiro de 1802 as ordens para a formação dos planos relativos aos trabalhos da restauração física de Aveiro; a qual foi felizmente realizada no sempre memorável dia 3 de Abril de 1808 pela efectiva abertura da Nova Barra; dia em que Aveiro presenciou admirada, e nos transportes de alegria que se não exprimem, o magnífico espectáculo de / 38 / uma segunda criação, sim, um vasto e mui rico país, que havia sido abismado pelas águas, condenado à nulidade e confusão, e reduzido a um foco maligno de enfermidades, saiu do Caos e viu a luz neste dia para sempre memorável; dia venturoso, e com que prazer eu o digo!! Em que ficou erigido um eterno padrão de grata memória à real munificência no mesmo país restaurado, e regenerado nos mais dificultosos tempos, e extraordinárias circunstâncias da imortal regência de S. A. R. o Príncipe Regente Nosso Senhor.

Este notável e tão feliz acontecimento merece ser geralmente conhecido no mundo, e com todas as circunstâncias pela nação que se tem feito imortal nos nossos dias por tudo quanto há de grande e particularmente pelo seu amor, fidelidade e confiança para S. A. R. supremo árbitro dos seus gloriosos destinos; assim como ser transmitido à posteridade para que as mais remotas gerações, que hão-de participar como a presente dos seus importantes e transcendentes resultados, possam como a actual ter mais este grande motivo para abençoar para sempre o augusto nome de seu restaurador.

Não quero passar mais adiante sem apresentar ao público os documentos que provam o estado lamentável a que chegou a barra de Aveiro, e todo o país dela dependente, e como se havia desesperado já de abrir a dita barra para a mesma cidade pela dura e custosa experiência dos baldados esforços feitos em outros reinados; quando o Príncipe Regente Nosso Senhor tomou a heróica resolução de a empreender novamente. Estes documentos escolhidos entre os mais principais são do n.º 1 até n.º 10, lançados no fim da introdução; eles foram fielmente copiados do Livro I do Registo da Superintendência da mesma barra, onde com outros muitos se acham registados.

Sobre o estado deplorável a que chegou Aveiro, é muito notável o documento n.º 1 da data de 1756 no qual se lê: − «Faço saber a vós bacharel João da Fonseca da Cruz, Superintendente da obra da barra da vila de Aveiro, que, atendendo às representações que me fizeram os oficiais da Câmara, nobreza e povo da mesma vila de se acharem os seus moradores reduzidos a grande pobreza e miséria, sem terem meios para poderem satisfazer o cômputo do seu cabeção, que é de cinco mil cruzados, os quais lhes impuseram em atenção aos direitos da barra, que já não tinham em razão de estar totalmente areada em forma que por ela não podia entrar nem sair o mais pequeno barco, e não só tinha cessado de todo o comércio, mas também se inundava muita parte da vila com as cheias pelas águas não terem expedição para o mar, do que resultava irem desamparando a terra, o que também me constava por várias informações, à vista das quais fui servido / 39 / mandar o engenheiro Carlos Mardel examinar a dita barra, e fazer planos da obra».

Achar-se-á da mesma sorte pelos mesmos documentos a nulidade dos resultados de todas as tentativas de abertura da barra até 1802, porque, 1.º Dos planos e projectos do engenheiro Carlos Mardel em 1756, de que fala o documento n.º 1 já citado, nada resultou (1). 2.º Dos.planos de que por ordem de Sua Majestade fora encarregado, em 1758, Francisco Jacinto Polchet com seu adjunto Luís d'Alincourt, e o sargento-mor engenheiro Francisco Xavier do Rêgo com seu adjunto o tenente Adão Venceslau Hedes, acompanhados todos pelo desembargador da Relação do Porto, Manuel Gonçalves de Miranda, e pelo capitão-mor João de Sousa Ribeiro (documento n.º 2), nenhum resultado houve favorável para a barra. 3.º Igualmente não houve efeito da comissão sobre a mesma barra, a que veio mandado o tenente-coronel engenheiro Guilherme Elsden com o capitão do mesmo Corpo, Isidoro Paulo Pereira, e ajudante do mesmo Corpo, Manuel de Sousa Ramos em 1777 (documento n.º 3). 4.º Que dos planos e projectos do arquitecto hidráulico João Iseppi, aprovados por Sua Majestade, que o encarregou ao mesmo tempo da sua execução em 1780 (documento n.º 4), e das enormes despesas consumidas nestas obras nada resultou de útil em favor da barra; pelo contrário ela fugiu muito mais para o sul, e piorou consideravelmente durante e depois das obras, que foram suspendidas por aviso régio em 1783, e mandado recolher o dito engenheiro hidráulico João Iseppi, seu filho, e outros italianos empregados com ele, / 40 / depois de se lhes fazer suas contas, contando-lhes tudo até chegarem à Corte (documento n.º 6). 5.º Em 1781, Sua Majestade mandou ao desembargador superintendente das obras da barra, Francisco António Gravito, que patenteasse os planos, as obras, as máquinas hidráulicas, e tudo o mais que o professor hidráulico, lente de Matemática da Universidade de Coimbra, José Monteiro da Rocha, quisesse ver e examinar, para ele formar clara ideia de tudo, recomendando-o muito honrosamente. Não sei qual foi o resultado da visita deste sábio, que faz tanta honra à nação portuguesa, nem o conceito que ele fez da questão e das obras; só se sabe que dois anos depois foram suspendidas as obras da barra, em que se trabalhava ao tempo da sua visita hidráulica (documento n.º 5). 6.º Em 1788, Sua Majestade mandou o marechal de campo, depois tenente-general inspector de Artilharia e do Corpo de Engenheiros, Guilherme Luís António de Valleré, acompanhado de dois oficiais seus ajudantes (documento n.º 8), a fazer um exame circunspecto do estado das obras da Barra de Aveiro e das mais que nela se haviam projectado, e formar o projecto do seu adiantamento para continuarem. Mas deste exame nada resultou que fosse visível. 7.º Finalmente em 1791, ficou inteiramente malograda uma última tentativa de um rigueirão que se mandou abrir no areal meio quarto de légua abaixo de S. Jacinto ou Senhora das Areias, com o fim de entrarem os barcos, e escoar as águas encharcadas e pestilenciais da Ria, em razão de se não ousar já tentar abrir barra para navios, como coisa sumamente dificultosa e mais do que se pensava (documento n.º 10). Este projecto, antes que fosse executado por Nuno de Faria da Mata, provedor que servia de superintendente, e pelo engenheiro Luís d'Alincourt, foi ainda examinado de ordem superior, pelo professor hidráulico Estêvão Cabral, que o Ministério preferiu a todos os engenheiros da profissão que até ali tinham sido mandados a Aveiro, que era muito acreditado então, e dirigia as obras hidráulicas do Mondego; mas não obstante tantos cuidados e desvelos empregados em favor de Aveiro, tudo foi baldado, e de tais trabalhos nada existe; em lugar do rigueirão pretendido para barcos em que se fizeram grandes despesas, existiam em 1802 altas lombas, que ainda hoje existem, e dunas continuadas até à Barra Velha, quatro léguas para o sul do referido local onde se cavou no pretendido rigueirão, que não chegou a existir.

Foram malogrados tantos esforços feitos por homens tão escolhidos e acreditados, intentados em diversas épocas e circunstâncias; pois sem ofensa da verdade, nem pretensão de macular o crédito de tantas e tão respeitáveis pessoas que eu muito e muito prezo, pode dizer-se que nada havia, e nada existia em 1802 de tantos trabalhos e tantas despesas; e que / 41 / a Barra de Aveiro em desprezo de todos os esforços da Arte até ali praticados se achava, distante de léguas, ao sul de todos os lugares onde se tem pretendido abrir ou segurar na sua marcha ruinosa para o sul, que nenhum poder até então tinha suspendido nem estorvado.

Tais eram os fundados motivos que chegaram enfim a estabelecer a opinião desgraçada de que em Aveiro se não podia abrir uma barra para navios. Esa opinião se vê expressamente manifestada nos dois documentos n.º 9 e 10 mencionados, relativos ao rigueirão de 1791, o 1.º dos quais diz assim: «Este rigueirão ou canal deverá ser limitado na sua largura como aquele que somente se prepara para dar saída às águas encharcadas, e entrada aos barcos que frequentam este porto, removendo por ora toda a ideia de abertura da Barra ou canal para entrada de navios, pois que, tendo mostrado uma custosa experiência tantos anos, que nesta obra maior se tem trabalhado debalde, deve merecer maior consideração o tentá-la de novo por meio de novas medidas e novos planos... » etc. E o 2.º dos ditos documentos se explica deste modo: «As obras da Barra, quanto à abertura há tantos anos projectada, outros tantos há que por custosas experiências se tem visto serem de maior dificuldade do que se pensava... etc.».

Por esta análise dos dez citados documentos, e pelo mais que eles encerram, e sem ser necessário apontar outros, verá o público que muitas vezes se tem pretendido abrir a barra de Aveiro em diversos reinados, e diferentes ministérios, inclusive no do marquês de Pombal; assim como o grande número e importância das pessoas e facultativos chamados e empregados nesta empresa nas respectivas épocas; e como se havia desesperado de o poder conseguir pela dura e custosa experiência da nulidade absoluta dos resultados até ao ano de 1802 em que S. A. R., eu o repito, tomou a heróica resolução de empreender novamente tão escabrosa empresa já reputada impossível, e pouco depois, em 1808 teve a glória imortal de realizar! Este conhecimento era muito preciso para que o público pudesse estimar no seu justo valor as dificuldades de toda a espécie que S. A. R. teve a vencer para salvar esta parte dos seus povos e dos seus Estados.

Sem dúvida seriam estes os generosos motivos que inspiraram aos redactores do Jornal de Coimbra os desejos que eles me manifestaram de inserir no seu periódico o plano de uma circunstanciada notícia do processo dos efectivos trabalhos hidráulicos empregados na abertura da nova barra de Aveiro, e das suas resultantes consequências; pois que eles foram os primeiros que, por via do seu judicioso jornal, têm perpetuado o facto da restauração física do porto e país de Aveiro: tais serão também (se eu posso ousar interpretá-lo) / 42 / os motivos que o sábio providente paternal Governo que nos dirige, e que tanto promove e anima os actuais trabalhos da mesma Barra, terá para apoiar a execução; assim como são todos eles os que me movem hoje, e com muito gosto, a prestar-me à sua publicação; poderia obrigar-me a expor a tanto a minha insuficiência, e até a esquecer por um pouco os deveres da modéstia, que raras vezes consente o falar de nós mesmos, o que algumas vezes não poderei evitar. Fica-me, porém, o sentimento de que não fosse uma pena hábil, e já exercitada a quem hoje incumbisse este lisonjeiro e importante dever; mas espero que o público, conhecendo os meus fundados motivos, e a necessidade de ser eu mesmo o instrumento, fará os precisos descontos, e terá comigo generosa indulgência.

Tendo feito uma introdução à Memória(2) que fiz em 1802 sobre o plano e projecto de abertura da Barra de Aveiro, que então apresentei a S. A. R. na conformidade das ordens régias, cuja Memória faz quase toda a matéria da 1.ª parte das cinco em que divido o meu assunto, e não querendo agora nem devendo alterar um escrito feito naquela época, a ela me refiro para não repetir mais neste lugar as mesmas ideias lá expendidas, o que não pude evitar inteiramente, não obstante ser este o mais próprio, e onde elas teriam o melhor cabimento, mas que não teriam o mesmo valor; este grande motivo me obrigou também a transcrever agora o mesmo escrito tal qual então foi dado para satisfazer às ordens, e à brevidade que se exigia, como se verá, e sem lembrança de que um dia ele seria publicado.

Divido, como disse, o assunto em cinco partes, por haverem outras tantas épocas notáveis no decurso e progresso desta empresa, e nas quais os trabalhos tomaram em certo modo uma nova marcha pela mudança, e variedades das circunstâncias que ocorreram.

A primeira parte compreenderá a história resumida do começo desta empresa, e trabalhos preparatórios para a formação do plano expendido em uma memória e mapa apresentado depois a S. A. R; a régia aprovação, e as ordens do mesmo Senhor para sua execução. Seguir-se-á a cópia dessa mesma memória e plano então feitos, apresentados e honrados com a aprovação de S. A. R., e terminará pela / 43 / cópia das ordens régias mais análogas, e pelas que me respeitam, e me foram dirigidas sobre tal comissão nos primeiros sete meses de Janeiro até Julho de 1802, que abrange esta 1.ª parte; as quais se acham registadas nos livros do Juízo da Superintendência das Obras da Barra de Aveiro, cujos originais conservo; estes ofícios ou régios avisos vão textualmente copiados no fim desta parte, assim como o serão nas outras os que respectivamente lhes pertencerem.

Na segunda parte se descreverá a efectiva execução dos principais trabalhos, as maiores dificuldades que se encontraram, e como se venceram desde o princípio da obra em 1802 até fins de 1803; época notável para a história dos Encarregados, e na qual deixei de ter companheiro nesta comissão, porque S. A. R. foi servido nesse ano encarregar-me da inspecção e direcção das obras da Barra de Aveiro, e por então mesmo da direcção das da Barra do Porto, como se verá das ordens régias, que igualmente no fim desta 2.ª parte se darão por íntegra, com outros papéis ou extractos que achei mais próprios para a documentar.

Na terceira parte se continuará a descrição dos trabalhos feitos, e dificuldades vencidas desde o fim de 1803, em que fiquei só encarregado das obras até à época memorável da efectiva abertura da nova Barra de Aveiro, que felizmente consegui abrir no dia 3 de Abril de 1808; mostrar-se-á qual era o estado da obra em diversas épocas antes, e ao tempo da abertura da mesma barra; e no fim desta 3.ª parte, como nas precedentes, se dará cópia das ordens régias, e respectivos documentos.

Na quarta parte se descreverão os imediatos e importantes efeitos da nova Barra na pronta restauração de todas as marinhas de Aveiro, de muitos campos, da saúde pública, e franca navegação para grandes vasos; ver-se-á a perfeita coincidência dos resultados obtidos nesta 4.ª época das obras (que forma a competente parte deste escrito) com os prometidos, e já calculados, e prevenidos seis anos antes na Memória e plano que então fiz, tenho executado, e agora apresento na 1.ª parte. Descrever-se-ão todos os trabalhos feitos, e todas as mudanças acontecidas nas obras, na barra e no rio, e todas as dificuldades vencidas e trabalhos executados desde 1808 em que foi aberta a referida barra até agora; e como as precedentes, será documentada.

Na quinta parte finalmente se dará uma ideia geral do que ainda resta a fazer para ampliar as já obtidas vantagens desta nova barra, para a sua perpetuidade e transcendência a outros objectos da maior importância; e do mais que respeita a este novo e belo porto de mar, que, tendo já restaurado as melhores porções de duas comarcas, deve um dia pela sua, influência duplicar o valor de meia Província da Beira. / 44 /

Tive a fortuna de poder documentar, como se deixa ver pela divisão que deixo feita, o que se dirá neste escrito. É verdade que nas invasões de Soult, e Massena, e quando o serviço militar me chamou para os Exércitos(3), sofri mui rigoroso saque, principalmente no ano de 1809, nos subúrbios da cidade do Porto no quartel que eu muitos anos havia ocupado em Lordelo do Ouro, ora como encarregado, ora como empregado nas obras da barra daquela cidade e rio Douro, e conto a perda e extravio de muitos papeis que agora me fazem falta; mas assim mesmo ainda conservo os mais importantes sobre Aveiro e os que bastam; algumas épocas, porém, nem sempre poderão ir designadas com exacção de dia e mês, por quanto os meus diários entram no número dos papeis que perdi; assim como perdi quase toda a minha correspondência com o Ministério dos primeiros anos sobre esta comissão de que apenas escaparam alguns avulsos e trancados papeis; mas felizmente salvei em Aveiro quase todos os ofícios que me foram dirigidos para ali nesse tempo, e sobre esta matéria, por onde se conhece a existência, e a natureza daquela correspondência oficial.

Em todas as cinco partes verá o público com prazer, reconhecimento e admiração, qual tem sido, durante onze anos de trabalhos nunca interrompidos(4), na mais desgraçada época de que os homens possam recordar-se, pelo flagelo da guerra actual, qual tem sido a constante predilecção de S. A. R. a bem dos seus povos de Aveiro; predilecção mais visível e decidida a favor destes, por isso que eles eram tão infelizes no meio da grande família que Ele rege com tanta glória sua como proveito nosso. Retirado nos seus vastos domínios além do mar, habitando outro hemisfério e outro mundo, quando a tormenta política ameaçava a existência dos Estados e das Nações, Aveiro interessava ainda o seu coração! De lá e então mesmo S. A. R. faz ao Governo que o representa nestes reinos as mais positivas recomendações para que este / 45 / continue, e anime quanto lhe for possível as obras da barra de Aveiro.

Feita a restauração de Lisboa e do reino, e quando pude participar ao mesmo augusto Senhor o feliz acontecimento da abertura da mesma barra, S. A. R. se dignou mandar-me expressar em aviso datado do Rio de Janeiro a 10 de Janeiro de 1809, entre outras coisas bem lisonjeiras, que «eu não podia ter dado uma notícia que lhe tosse mais agradável.». Depois, em aviso de 30 de Agosto de 1810 me foi participado que S. A. R. reconhecia os meus serviços feitos na barra de Aveiro, no rio Vouga, e terrenos por onde corre este rio. E em aviso de 24 de Outubro de 1811 se me participa para minha satisfação, que por tais serviços Sua Alteza Real havia declarado «que eu merecia a sua especial e real protecção» (5).

Tal foi o vivo interesse com que o mesmo augusto Senhor viu consumada a felicidade de Aveiro!! Os documentos de tudo isto terão o seu lugar na 4.ª parte deste escrito, mas dos factos não pude deixar de fazer menção aqui em prova do que digo neste §, e até (seja-me desculpada a minha nobre ambição, e nobre orgulho) o estimei por desejar antecipar, e que de antemão o mundo inteiro conheça a sensibilidade e todo o efeito que excita em mim uma tão avultada recompensa dos meus trabalhos e fadigas nesta parte do seu real serviço; pois uma tal declaração do Soberano é a maior recompensa que S. A. R. podia fazer-me, ou a que um vassalo possa aspirar e conseguir; tão avultada, eu o repito, que a minha vida será mui curta, e tudo quanto eu possa fazer de bom mui pouco para acabar de merecê-la!

O nosso Governo activo e paternal, que nestes reinos representa S. A. R. durante a sua ausência saudosa, e em tempos tão dificultosos tem feito prodígios em favor da obra do novo porto de Aveiro. Foi ele quem melhorou as finanças quase aniquiladas da mesma obra por efeito da guerra, e as pôs no melhor pé; ele tem dado as providências, para que nada tenha faltado; e isto quando havia tão pouco, e eram tantas as precisões! Quando se trabalhava para salvar a Nação inteira, o Governo repartia ainda os seus cuidados e vigorosos esforços, e fazia quase impossíveis por esta parte dela, cuja felicidade era o objecto constante, e que tanto havia tocado o paternal coração de S. A. R. Na 4.ª parte se verão os factos, e se mostrará que Aveiro é um exemplo / 46 / dos muitos prodígios obrados pelo esclarecido Governo que nos dirige.

Devo mencionar neste lugar, que o Governo Provisional do Porto logo nos primeiros dias da começada restauração em 1808, mandando suspender as obras públicas por uma sábia e necessária medida de economia comandada pela primeira e mais imperiosa necessidade, a salvação da Pátria, exceptuou a obra da barra de Aveiro, a qual continuou sempre. Também, como por um milagre da Providência, Aveiro não viu inimigos, apenas de passagem algumas dúzias de prisioneiros feitos nos primeiros ensaios precursores de tantos e tão incríveis triunfos! E os trabalhos da sua barra não foram jamais estorvados por esse inimigo da espécie humana, que devastou e profanou as nossas belas províncias. Esta circunstância, e o haver eu sido constante e eficazmente auxiliado pelo Governo de S. A. R., me puseram na feliz situação de poder, no meio da tormenta política e transtorno geral, e mesmo captivo, cumprir as ordens que S. A. R. me havia deixado; e Aveiro foi feliz no meio da desgraça geral!! Tal é a escala por onde Aveiro deve medir, e certamente mede, os benefícios, e privativos favores do melhor dos seus príncipes, e calcular a rigorosa divida da sua eterna gratidão!

A eficaz assistência e protecção de S. A. R., e do Governo que nos deixou e tão dignamente o representa nestes reinos, se tem manifestado sempre nos sucessivos ministérios dos Ex.mo Conde de Linhares, Conde de Anadia, Luís de Vasconcelos e Sousa, Conde de Vila Verde, António de Araújo de Azevedo, D. Miguel Pereira Forjaz, e por diferentes maneiras no decurso desta grande empresa; sendo muito notáveis o do Ex.mo Conde de Linhares em que foi criada e começada; o do Ex.mo António de Araújo de Azevedo que a sustentou em uma extraordinária crise de negras imputações contra a obra, e de suma pobreza a que estava reduzida; e o do Ex.mo D. Miguel Pereira Forjaz; sendo uma das providências, que muito tem concorrido para o bom êxito da empresa, a escrupulosa e acertada escolha dos magistrados superintendentes encarregados do ramo civil e económico das obras, o provedor, depois desembargador do Senado, João Carlos Cardoso Verney; e o seu digno sucessor o desembargador da Suplicação, Fernando Afonso Giraldes, os quais são dignos do maior elogio; não é possível encontrar mais zelo nem mais honra; eles me prestaram sempre uma pronta e mui eficaz cooperação para executar as diferentes partes dos meus planos, e concorreram pela sua parte, e quanto lhes foi possível, para o seu feliz resultado; eu terei mais de uma ocasião de fazer ver esta verdade, sendo bem lisonjeiro para mim o possuir as provas dela para produzir em seu lugar, e fazer conhecer os seus importantes serviços. / 47 /

O esclarecido Conde de Linhares sustentou com o mais heróico entusiasmo os interesses, e já desesperada causa de Aveiro; a actividade e firmeza do seu carácter elevado venceu dificuldades e oposições de toda a espécie, e até o peso das opiniões desfavoráveis de muitos sábios e facultativos, reforçados desgraçadamente pela experiência custosa da nulidade dos resultados das passadas tentativas; ele pareceu exceder mesmo a sua natural actividade promovendo o começo dos trabalhos para um esforço último a favor de Aveiro, aplanando todas as dificuldades para a execução efectiva, e rápido adiantamento dos mesmos trabalhos, enquanto não foi interrompido na carreira do seu ministério. É admirável, e o público ouvirá com interesse e sensibilidade, que o mesmo Ex.mo Conde no seu retiro, pelos anos de 1804, 1805, e 1806, honrando-me algumas vezes com a sua correspondência particular, jamais o assunto principal, ou para dizer melhor, todo o assunto deixou de ser a Obra da Barra que me estava confiada. Estas cartas de que farei menção na 3.ª parte, onde elas terão o seu devido lugar, mostrarão qual era em circunstâncias tão diferentes a igualdade do seu grande ânimo, e a firmeza dos seus inalteráveis princípios; no seio do seu retiro político, os seus contínuos cuidados, e os seus votos eram sempre pela prosperidade destes povos, e bem do serviço de S. A. R., que foi sempre o constante objecto da sua vida preciosa. Toda a Nação lhe deve muito, porém, Aveiro sabe, que depois de S. A. R. a ele deve o princípio da sua nova existência.

Mas se é tão raro encontrar o virtuoso entusiasmo desenvolvido pelo Ex.mo Conde de Linhares para salvar Aveiro, que se dirá da extraordinária constância e heróica modéstia do Ex.mo D. Miguel Pereira Forjaz, continuando com esforçado zelo uma empresa que ele não havia criado? O ser ela do empenho de S. A. R. e utilidade dos povos é quanto basta para lhe merecer os maiores desvelos. Não é a glória de a criar, a que a tem produzido muito boas e grandes causas, quem a convida nesta ocasião, assim como lhe é absolutamente desconhecido o ciúme dos sucessores, que tem muitas vezes sepultado no esquecimento, e às vezes no desprezo, as mais belas e úteis concepções só porque são alheias.

O Ex.mo D. Miguel Pereira Forjaz encarregado das secretarias de Estado dos Negócios Estrangeiros, da Guerra e da Marinha, quando era necessário criar tanta causa, ou para melhor dizer, criar tudo para a salvação do Estado, que o inimigo havia quase destruído, naqueles tempos marcados pelas desgraças de que foi vítima a nossa pátria infeliz, e em que a apatia tomava o lugar das nossas mais fortes e puras afeições pelo iminente perigo de uma desgraça inevitável cuja horrorosa lembrança ainda nos aflige! Quando tudo / 48 / enfim conspirava para fazer esquecer, ou ao menos abandonar temporariamente os trabalhos do porto de Aveiro; ao contrário todos esses tempos estão marcados amiúdo pelos traços das suas providências, e actos da maior energia; e pelos seus incessantes cuidados, pela sua intervenção e pelos meios mais suaves o nosso providente Governo melhorou as finanças da obra, que estavam no maior abatimento como disse; e quando ela estava mais precisada; e quem ousaria esperar tanto quando a Nação estava tão pobre, e suportava o peso das mais enormes despesas!!

O serviço da obra da barra de Aveiro foi então equiparado ao do próprio Exército para ser mais prontamente assistido; no meio enfim dos mais imperiosos embaraços nada tem faltado, tudo se fez, até o que parecia, e parecerá para sempre impossível! O público terá mais de uma ocasião de comparar estas ilustres personagens, em épocas e circunstâncias tão diversas, animadas do mesmo entusiasmo para consumar e perpetuar a felicidade de Aveiro, que era tanto do empenho de S. A. R. Os factos e os documentos o demonstrarão, e por eles conhecerá também esta cidade, e os mais povos interessados a extensão da sua dívida, e a gratidão que deve a este ilustre benfeitor; e saberão melhor apreciar a glória de ser o objecto imediato de tantos e tão generosos cuidados.

Consinta-se-me neste lugar, e até como um desafogo à minha justa saudade, na falta de uma pessoa a quem estava estreitamente ligado, e para fazer justiça, não ficar no esquecimento o brigadeiro Reinaldo Oudinot, oficial que pelas suas qualidades e reconhecidos talentos fazia honra ao Corpo no qual teve a honra de servir a S. A. R., e feito pelo espaço de 45 anos os relevantes serviços, que o mesmo Senhor tem reconhecido e remunerado.

Este oficial sendo coronel foi assim como eu fui, e consta dos documentos da 1.ª parte, encarregado também dos planos e execução da obra da barra de Aveiro desde 1802 até 1803, ano em que S. A. R., encarregando-me inteiramente da inspecção e direcção das mesmas, mandou ao dito coronel, então feito brigadeiro, em comissão para a Ilha da Madeira, onde faleceu em Fevereiro de 1807. Desejava nesta ocasião não ser seu genro para não ser suspeitoso; e ter o crédito necessário para fazer digna menção deste hábil engenheiro, e do muito que ele no seu tempo trabalhou, e concorreu para o feliz sucesso da empresa de Aveiro.

Um mapa mui circunstanciado da parte mais importante do país, e daquele que era mais preciso conhecer (o qual então acompanhou a Memória que fiz sobre o plano da abertura da Nova Barra, e com ele apresentei em 1802), acompanhará agora a 1.ª parte para sua inteligência e necessárias / 49 / [ Vol. XIII - N.º 49 - 1947] referências que a ele farei; igualmente haverá nas outras partes estampas com figuras para fazer perceptível tudo quanto me tenho proposto escrever.

Tive grande cuidado de omitir constantemente, como já havia feito em 1802, e se verá na Memória lançada na 1.ª parte, a ostentação de cálculos, e teorias sublimes com que as Matemáticas auxiliam o ramo dificílimo da Hidráulica, tanto porque a sua aplicação à prática de tais questões deixa ainda bastante que desejar (e nunca talvez satisfará perfeitamente), como também para melhor me fazer entender ainda hoje de todos em uma questão, que foi ao princípio necessário pôr tão clara como a luz, e popularizar naquela época dos muitos incrédulos da sua possibilidade e bom sucesso; motivos que me obrigaram também a uma certa difusão, que se observará na Memória referida; defeito em que muito de propósito me deixei cair então, preferindo a todas as outras considerações a de fazer entender, e acreditar a possibilidade da empresa, convencer qualquer opinião contrária aos interesses de Aveiro e de S. A. R. que pudesse suscitar-se como eu tinha motivos de recear, e no que podia ser, eu não tornasse mais a ser ouvido, nem pudesse outra vez advogar e promover os interesses desta parte tão considerável, e tão importante dos seus reinos.

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N.º 1 − Documentos relativos à Introdução

A folhas 5 do Livro I do Registo das Provisões e Ordens Régias, vindas ao Juízo da Superintendência da Barra, se acha registada a provisão régia do estabelecimento e criação do subsidio real da Obra da Barra, que é datada de 27 de Maio de 1756, expedida por Resoluções imediatas de S. Majestade Fidelíssima, de 6 de Outubro de 1755, e de 21 de Maio de 1756, a qual Provisão no seu preâmbulo diz assim:

«Faço saber a Vós Bacharel João da Fonseca da Cruz, Superintendente da Obra da Barra da Villa de Aveiro, que attendendo ás representações que me fizerão os Officiaes da Camara, Nobreza e Povo da mesma Villa de se acharem os seus moradores reduzidos a grande pobreza e miseria, sem terem meios para poderem satisfazer o cômputo do seu cabeção, que he de 5.000 cruzados, os quaes se-lhes-imposérão em attenção aos direitos da Barra, que já não tinhão em razão de estar totalmente areada, em fórma que por ella não podia entrar nem sair o mais pequeno barco, e não só tinha cessado de todo o Commércio, mas tambem se-inundava muita parte da / 50 / Villa com as cheias pelas aguas não terem expedição para o mar, de que resultava irem desamparando a terra; o que tambem me constou por várias informações à vista das quaes Fui Servido Mandar ao Engenheiro Carlos Mardel examinar a dita Barra, e fazer Planta da Obra; e por constatar ultimamente por informação do Provedor da Comarca de Esgueira terem rendido 4.933.000 reis o dôbro das cisas, e imposição dos dous reaes em cada quartilho de vinho, e arratel de carne da mesma Villa e seus ramos, que por Resoluções Minhas Mandei applicar para a Obra da dita Barra pela grande utilidade que d'ella resulta à dita Villa e a toda a Comarca de Esgueira; e tendo outrosim consideração ao que se-me-representou em Consulta da Meza do Meu Dezembargo do Paço para se-dar pronta providencia n'esta matéria, e se-fazerem prontos os meios para se-executar esta Obra, cuja Superintendencia vos -Tenho encarregado: Hei por bem que os dous reaes já antigamente concedidos em cada quartilho de vinho, e em cada arratel de carne se-appliquem para o pagamento do Cabeção da dita Villa de Aveiro, com declaração, que ésta contribuição durará somente por espaço de 15 anos, porque se dentro d'elles se executar a Obra da Abertura da Barra não necessita mais a Villa d'éste subsídio para podêr satisfazer o Capital; porêm ésta applicação para o Capital não terá lugar no producto dos ditos reaes, que se acha depositado em Cofre, e destinado para a Abertura da Barra por se não dilatar mais ésta Obra, divertindo-se para outro fim o dito depósito; e outrosim Hei por bem que não só a Villa de Aveiro, e seus ramos contribuão com um novo real em cada quartilho de vinho, e outro em arratel de carne para a dita Obra da Barra emquanto ella durar, mas toda a Comarca de Esgueira, que participa da mesma conveniencia, sem embargo de não serem ouvidas algumas Camaras da dita Comarca, attendendo a que n'este negocio se trata da sua propria utilidade; e tendo alguma Câmara ou Concelho justa causa de escusa, a todo o tempo se lhe poderá deferir pela Meza do Meu Desembargo do Paço, precedendo as informações necessarias.»


N.º 2 −
Aviso régio para se tirar a planta da Obra da Barra. Registado a fol. 21. L. I.


«Sua Magestade He servido que Vm. passe logo á Villa de Aveiro, levando por seu Adjunto a Luiz de Alincourt, para que n'ella com o Sargento-Mór Engenheiro Francisco Xavier do Rego, que leva por seu Adjunto o Tenente Adão
/ 51 / Vencesláo de Hedes, tire uma exacta Planta de todo o terreno que jaz desde o Rio Vouga até á Barra, que novamente se-abrio na dita Villa, na conformidade das Reaes ordens da Cópia inclusa dirigidas ao Dezembargador da Relação do Porto Manuel Gonçalves de Miranda, que ha-de assistir à execução da referida Planta com o Capitão Mór João de Sousa Ribeiro. E ao Marquez de Tancos se-avisa para que na Vedoria se-dem a Vm., e ao dito Luíz de Alincourt os respectivos transportes e Cavalgaduras que lhes-hão de ser pagas em todos os dias continuos e successivos que correrem até se-restituirem a ésta Côrte com o pagamento dos seus soldos, que ficaráõ cobrando os Procuradores, que Vm. e o dito seu Adjunto nomearem, em quanto andarem occupados n'ésta Diligencia, que o Mesmo Senhor lhes-ha por muito recommendada.=
Deos guarde a Vm. Belem a 10 de Junho de 1758. = Sebastião José de Carvalho e Mello. =
Sfir. Francisco Jacintho de Polchet.»


N.º 3 −
Carta do engenheiro Elsden aos seus adjuntos. Registada no L. I. fol. 31.

«Conforme as Ordens de Sua Magestade dirigidas no dia 20 de Outubro do presente ano pelo Ill.mo e Ex.mo Sñr. Visconde de Villa Nova da Cerveira, Ministro e Secretario de Estado, etc., etc., etc.

Devem V. m.cês, logo entrar a tirar a Planta Topographica da Barra de Aveiro que presentemente existe; e da mesma situação o outro Rio que tem seu curso para o Sul na direcção da lagôa de Mira. D'este mesmo ponto da Barra continuar para o Norte na direcção do Rio Salgado (que serão 4 legoas e meia até 5), até á desembocadura do Rio Vouga, notando com individuação as entradas de todos os Rios, Lagôas, Canaes, etc., que cairem no dito Rio Salgado.

Tambem se-devem calcular as ondas da mesma Barra, e no dito Rio Salgado do Sul para o Norte nas distancias de 250 braças no tempo da baixa-mar das aguas vivas para se-combinarem as differentes alturas das aguas d'este canal, suas Lagôas, etc., com as do mar largo; para sôbre a dita Planta se-determinarem todas as mais operações sôbre a nova Barra de Aveiro; e a respeito das despezas, e mais cousas necessarias para a dita diligencia, o Doutor Corregedor tem Ordem de Sua Magestade para providenciallas; das quaes despezas se formará folha que V. m.cês assinaráõ durante a minha / 62 / ausencia para descarga do mesmo Doutor Corregedor.=Aveiro, 27 de Novembro de 1777.=Guilherme Elsden, Tenente coronel.=

Sñrs. Isidoro Paulo Pereira Capitão de Infantaria, com exercício de Engenheiro, e Manuel de Sousa Ramos Ajudante de Infantaria com o mesmo exercício.»


N.º 4 −
Aviso régio para se dar princípio ás obras da Barra. Registado a fol. 35 L. I.

«Sua Magestade tem Resoluto que se-comecem a pôr em execução os Planos que-lhe forão apresentados para as Obras necessarias de se-melhorar e abrir a Barra d'essa Cidade, de se-desempedirem os Esteiros, e enxugarem as terras inundadas, que contribuem a fazer doentio e máo o ar da mesma Cidade, e concorrem para o máo serviço actual da mesma Barra.

Semelhantemente tem a Mesma Senhora Resoluto, que se-procure facilitar quanto for possivel a Navegação do Rio Vouga em beneficio do Commércio d'essa mesma Cidade e Provincia; e que todas éstas Obras se-hajão de fazer conforme a Direcção do Arquitecto Hydraulico João Iseppi, cujos Projectos Sua Magestade tem Approvado, e pelo qual serão apresentadas a Vm. todas as Ordens relativas a éstas Obras, com toda a jurisdicção e forças que se-fizerem necessarias para o progresso d'éllas.

Em ordem a êste fim, e para que hajão dinheiros prontos, Ordena Sua Magestade que Vm. vá adiantando, e fazendo cobrar tudo quanto fôr possível pertencente às contribuições applicadas a éstas Obras, de maneira que effectivamente se-recolha ao Cofre d'ellas a maior quantia que podér ser; e que Vm. ao mesmo tempo escreva á Companhia do Douro para que vá aprontando o dinheiro que lhe-for possivel, e tem em si pertencente ao mesmo Cofre, a fim de estar certo, e pronto à primeira Ordem que a Mesma Senhora Mandar expedir á dita Companhia para d'elle fazer entrega no referido Cofre.

E tendo Sua Magestade conhecido a justa necessidade de se-fazer a Obra do Caes, e Esteiro da Ribeira; a cujo he Servida que logo se-dê principio a ella, e se-faça a despeza da mesma Obra pelo Cofre dos dinheiros das contribuições da Barra, sem necessidade de outra alguma Ordem além d'ésta. E pelo que respeita ás Obras do Aqueducto da Fonte da Praça, Paço do Concelho, e Cadêa Publica, Ordena Sua Magestade que Vm. mande tirar a Planta de cada uma d'éstas Obras com o orçamento a cada uma d'éllas pertencente, e com informação de Vm. em que fórme o seu juizo sÔbre elas, para que sendo tudo / 53 / presente á Mesma Senhora Resolva ao dito respeito o que for Servida. = Deos Guarde a Vm. Palacio de Queluz em 2 de Agosto de 1780. = Visconde de Villa Nova da Cerveira.=

Sñr. Francisco António Gravito.»


N.º 5 −
Aviso régio por onde o Doutor José Monteiro da Rocha, lente de Matemática, veio visitar as obras da Barra. Registado a fol. 51. L. I.

«A Sua Magestade foi presente, que o Doutor José Monteiro da Rocha, Lente Cathedrático da Faculdade de Mathematica na Universidade de Coimbra passava a essa Cidade de Aveiro para visitar as Obras da Barra, e as mais que são concernentes à Sciencia Hydraulica que he do seu instituto ensinar Theoricamente na mesma Universidade; e porque em circunstâncias tão attendiveis, como são as da instrucção d'esta util Sciencia á vista dos objectos praticos d'ella, se deve facilitar a este digno Professor tudo quanto a este respeito elle quizer vêr e examinar;

He a Mesma Senhora Servida que Vm. lhe-facilite iodos os Projectos, Planos, Mappas, e Máquinas que elle quizer especular, e miudamente examinar, para que possa em beneficio da mesma Sciencia fazer um claro juizo das referidas Obras, tratando-o Vm. com toda a distincção e acolhimento que se deve a um Professor tão benemérito, e tão digno da Recommendação de Sua Magestade. =

Deos Guarde a Vm. Palacio de Nossa Senhora d'Ajuda em 6 de Dezembro de 1781.= Visconde de Villa Nova da Cerveira.=

Sñr. Francisco António Gravito.»


N.º 6 −
Aviso régio. Registado a fol. 50.

«A Sua Magestade forão presentes as Contas de Vm., que trouxerão as datas de 27 de Maio, de 24 de Junho, e 8 de Julho d'este anno; e He a Mesma Senhora Servida, que Vm. pague ao Engenheiro Hydraulico João Iseppi, a seu filho, e aos mais Italianos que com elle vierão para serem empregados na Obra da Barra d'essa Cidade, tudo o que se-lhes dever, fazendo-se a conta até chegarem a ésta Côrte; declarando-lhes Vm. que Sua Magestade os Manda recolher a élla: em consequencia d'ésta Determinação Ordena a Mesma Senhora que o Sargento Mór Engenheiro, Isidoro Paulo Pereira fique encarregado da referida Obra; com o qual justamente se-espera que Vm. viva em boa harmonia concorrendo cada um zelosamente da sua / 54 / parte para tudo o que for utilidade da mesma Obra, evitando questões, e tendo por unico, e principal objecto o serviço de Sua Magestade; e muito mais quando Vm., e elle tem o facil recurso de-me darem conta do que entenderem sôbre este assumpto, para que, pondo na Real Presença da Mesma Senhora, Haja de resolver o que fôr Servida. E tudo o referido Ha Sua Magestade por muito Recommendado a Vm.,e se-participa ao dito Sargento Mór. Quanto ás Cisas sonegadas, em que Vm. falla na sua Conta de 27 de Maio, ainda a Rainha Nossa Senhora não tomou a final Resolução sôbre este negocio. = Deos Guarde a Vm. Palacio de Queluz em 25 de Agosto de 1781. = Visconde de Villa Nova da Cerveira. =
Sñr. Francisco António Gravito.=
Cumpra-se. Gravito.»


N.o 7 −
Aviso régio. Registado a fol. 50. L. l.

«Sua Magestade tendo-lhe sido presentes as successivas Contas, que Vm. me-tem dirigido em diversas datas, sôbre os objectos que respeitão á Commissão de que Vm. se-acha encarregado, e conhecendo que as referidas Contas encerrão materias que na sua ordem necessitão de séria consideração, e madureza, He Servida que mandando Vm. suspender por ora toda e qualquer obra que for de maior despeza e trabalho, se-fique sómente continuando n'aquellas que a necessidade fizer indispensaveis, e que da suspensão d'ellas resultaria perigo grave; fazendo-se porêm com a menor despeza e número de gente que possivel fôr, até que chegue com o fim da Primavera, e principio do Verão seguinte, o tempo opportuno para a continuação das ditas Obras; a respeito das quaes Sua Magestade Dará as suas Providências, e Fará constar a Vm. a Sua Real Resolução. = Deos Guarde a Vm. Palacio de Nossa Senhora d'Ajuda em 24 de Novembro de 1783.=Visconde de Villa Nova da Cerveira.
=Sñr'. Francisco António Gravito.=
Cumpra-se. Gravito.»


N.º 8 −
Aviso régio. Registado a fol. 56. L. l, por onde o Marechal de Campo Valleré veio examinar as obras da Barra.

«Sua Magestade Manda a essa Cidade de Aveiro o Marechal de Campo Guilherme Luiz Antonio de Valleré, accompanhado de dous Officiais seus Ajudantes, a fazer / 55 / um exame circunspecto do estado das Obras da Barra da mesma Cidade, e das mais que n'ella se-havião projectado; e formar o Projecto do adiantamento de todas ellas para se-haverem de continuar. E He Sua Magestade Servida que Vm., em quanto o mesmo Marechal de Campo, e seus Officiaes se-acharem n'essa Diligencia, lhes-apronte o dinheiro que para bem da mesma Diligencia e effeito d'ella se-Ihes fizer necessário, cobrando Vm. os competentes recibos para formalizar com regularidade a sua arrecadação. = Deos Guarde a Vm. Palacio de Nossa Senhora d'Ajuda em 5 de Abril de 1788. = Visconde de Villa Nova da Cerveira.=
Sñr'. Corregedor da Comarca de Aveiro.»


N.º 9 −
Aviso régio por que se mandou abrir um rigueirão que desse escoante às águas estagnadas, e que fosse examínado pelo professor hidraulico, Estêvão Cabral. Registado a foI. 60. L. I.

«Sua Magestade querendo prover em beneficio da Saude dos moradores d'essa Cidade, e em utilidade dos habitantes d'essas visinhanças, He Servida Ordenar, que se-proceda logo á abertura de um Rigueirão ou Canal, que córte de Nascente ao Poente o Isthmo que divide o Mar Oceano do interior, abaixo da Capella de S. Jacintho, que he o lugar insinuado pela mesma corrente das aguas, e demonstrado desde antigo tempo pela Construcção do Forte que ahi se-edificou para cobrir a Barra.

Este Rigueirão, ou Canal deverá ser limitado na sua largura, como aquelle que sómente se-preara a dar saída ás aguas encharcadas, e entrada aos barcos que frequentão esse porto; removendo por ora toda a idéa de abertura de Barra, ou Canal para entrada de navios; pois que tendo mostrado uma custosa experiencia ha tantos annos, que n'ésta Obra maior se-tem trabalhado debalde, deve merecer maior consideração o intentalla de novo por meio de novas medidas e novos Planos, não só para essa abertura, mas para a fortificação e defeza do Porto; de que parece não se ter feito conta até agora.

Sua Magestade encarrega a Vm. a Intendencia d'ésta Obra, confiando que Vm., pelo conhecimento que d'ella tomou, pela informação e proposta que mandou á Sua Reál Presença na data de 9 de Junho d'este anno, ha-de executalla com toda a prontidão e economia; para ella poderá Vm. despender até a somma de oito contos de reis, que he o em que ella foi orçada. Deverá Vrn. porêm no fim de cada mez dar conta por esta Secretaria d'Estado / 56 / dos Negócios do Reino do estado d'ésta Obra, notando a gente que trabalha, a despeza que com ella faz, e as esperanças que conceber pelo que se-vai fazendo. E ainda que não pareça necessario mandar Engenheiro para esta Obra, com tudo sempre advirto a Vm. que em Obras d'agua, assim para servir d'ellas, como para dirigir as correntes vê mais um Professor Hydraulico, que todos os Engenheiros da Profissão d'aquelles que andárão na grande Obra d'essa Barra.

Como em Coimbra está Estevão Cabral, que não tem Patente de Engenheiro, mas que é Professor Hydraulico, pede a prudencia que elle examine esta abertura que vai a fazer-se, e examine o Plano que se-tem feito, e de cuja execução Vm. vai encarregado; e póde acontecer que elle com as suas luzes aponte alguma providencia de maior segurança e utilidade. Ele poderá chegar ahi para este fim sómente de examinar o Plano, devendo immediatamente voltar para assistir ás Obras do Mondego de que está encarregado, e assim lhe-faço Aviso por esta posta.
= Deos Guarde a Vm. Palacio de Nossa Senhora d'Ajuda em 6 de Julho de 1791. =José Seabra da Silva.
=Sñr. Provedor da comarca de Aveiro.»


N.º 10 −
Aviso régio por que se mandaram continuar as obras necessárias a preservar a cidade do mau ar das águas encharcadas. Registado a fol. 59. L. I.

«Sendo vista a Conta de Vm. na data de 6 do corrente mez de Maio sôbre a conferência em Comarca no dia 5, a respeito da Lei de 28 de Março, e natureza, applicação, e destinos das imposições d'essa cidade e Camara, devo dizer a Vm., para pôr a Camara na verdadeira intelligencia d'este assumpto, que nem a dita Lei dispõe, nem na sua execução se-ha-de praticar cousa alguma que aggrave os encargos, que esses Póvos sofrem, mas antes muito pelo contrário a primeira applicação do producto das imposições d'éssa Comarca ha de ser em benefício d'ella.

As Obras da Barra, quanto à abertura ha tantos annos projectada, outros tantos ha que por custosas experiencias se-tem visto serem de maior dificuldade do que se pensava. Quanto porêm áquellas Obras da Barra, que se dirigem a preservar essa Cidade do ar pestilente de aguas encharcadas, e corruptas, devem sempre praticar-se, e applicar-se para ellas a somma necessaria, que ha de sair das ditas imposições com preferencia a qualquer outra applicação. E como actualmente parece haver necessidade de se-proceder a este trabalho Vm. informará sem perda / 57 / de tempo sôbre isto, orçando pouco mais ou menos sôbre a Obra que agora se-julgar necessaria, quanto ella importará, podendo já entrar-se na mais urgente com a despêsa de até 400.000 réis.

N'ésta occasião encarrego a Vm. o Exame da Ponte sôbre o Rio Vouga, com a individuação do estado em que ella se-acha, quantos arcos se-achão inteiros, e quantos arruinados, e se os pégões de uns e outros estão seguros. Sôbre este exame, a que Vm. ha-de proceder com alguns Mestres; ou pessoas intelligentes, aos quaes depois sucederáõ outros de mais confiança que me-proponho mandar, fará Vm. um orçamento da somma que poderá importar ésta Obra.

Estas diligências vão dirigidas a Vm. no impedimento do Corregedor da Comarca que poderá depois ser encarregado, permittindo-o a sua saude, e outras considerações.=Deos Guarde a Vm. Palacio de Nossa Senhora d'Ajuda em 18 de Maio de 1791.=José de Seabra da Silva.=
Sñr. Provedor da Comarca de Aveiro.»

 

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(1) Também se havia perdido inteiramente um rompimento do Vouga pelo Rigueirão da Vagueira em 1757 feito na conjuntura de uma grande e extraordinária cheia do mesmo rio, que subiu aos primeiros andares das casas em alguns bairros da cidade, estando nesse tempo a barra perto de Mira, e por extremo entupida, circunstância de que felizmente, e com muita discrição, se aproveitou um zeloso prático do país, o capitão-mor João de Sousa Ribeiro, homem benemérito que por algum tempo minorou os males de Aveiro, e é por isso digno do maior elogio e merece que o seu nome seja conservado na lembrança dos seus compatriotas, posto que infelizmente de tudo isso, e do tal Rigueirão nada existisse pouco tempo depois, e nem ainda os vestígios; no seu lugar, que era na Vagueira, não se divisavam em 1802: senão areais e dunas muito elevadas como no resto do grande areal que separa o mar da Ria, achando-se outra vez, àquela época, a dita Barra de Aveiro nas costas de Mira como dantes errante por aqueles desertos areais sem leito fixo nem suficiente, légua e meia ao sul do referido, e já não existente Rigueirão da Vagueira de 1757, como se verá no mapa da Ria (fig. 1.ª que acompanhará a 1.ª parte desta Memória: e os cuidados que houveram da barra no ano seguinte de 1758 e nos seguintes, e as obras começadas mais abaixo uma milha defronte do Forte demolido M, começadas em 1780, e suspendidas em 1783, prova como Aveiro só gozou de um curto e precário beneficio, e teve só uma pequena e parcial interrupção na fatal e longa série das suas desgraças.

(2) Os oito primeiros §§ da Memória passaram agora a formar a Introdução à mesma; os sete que se seguiam a formar a 1.ª parte dela; o resto da mesma Memória a 2.ª parte, que ainda dividi em secções, e estas em artigos. Esta divisão, aumentando a clareza não tem mudado o escrito então feito, que foi todo o meu cuidado agora. 

(3) − Em Julho de 1808 tive a honra de ser nomeado, e exercer as importantes funções de Quartel Mestre General e comandante dos engenheiros do Exército de Operações em toda essa campanha até à feliz restauração de Lisboa e do reino. Em 1809 servi na mesma qualidade no Exército de Observação das províncias de Trás-os-Montes e Beira. Em 1810 e 1811, na qualidade de comandante dos engenheiros no Exército do Norte.

(4) Jamais nas minhas ausências, estando em campanha, fui dispensado de dirigir os trabalhos da Barra, que nenhuma invasão estorvou, e menos foram suspendidos por ordem do Governo; onde quer que estava conservei sempre correspondência com o Superintendente e empregados da obra, e a dirigi como me era possível de longe no meio de tão sérias ocupações; e o Governo era informado ainda que menos regularmente do estado dos trabalhos que lhe mereceram sempre um particular desvelo.

(5) Estes ofícios se acham registados nos livros da Superintendência da Barra de Aveiro, cujos originais conservo, e irão nos documentos da 4.ª parte.

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