A. G. da Rocha Madahil, Estação luso-romana do Cabeço do Vouga. I terraço subjacente à ermida do Espírito Santo ou da Vitória, Vol. VII, pp. 313-369.

ESTAÇÃO LUSO-ROMANA

DO CABEÇO DO VOUGA

I

TERRAÇO SUBJACENTE À ERMIDA DO ESPÍRITO SANTO OU DA VITÓRIA

◄◄◄ − Continuação da página  340

/ 341 / Temos, pois, em meu entender, duas Talábrigas: a de PLÍNIO e do Itinerarium, na região do Vouga; a de APlANO e da ara, na região do Lima.»

De nada tem valido a justa advertência; há frases e ideias feitas, a que, fácil e vistoso bordão de apoio, a literatura regional pretensamente erudita se encosta constantemente e não larga mais; a apoteose do heroísmo dos talabrigenses do Vouga continua, em tom maior sempre, embora ao Minho, em todos os tempos aguerrido, as páginas históricas de APlANO pareçam pertencer de verdade...

Com o extracto do capítulo Fenómenos de erosão e de acumulação, da Geografia de Portugal, que o Sr. Prof. AMORIM GIRÃO está publicando, encerraremos o escorço bibliográfico de introdução ao estudo arqueológico da estação luso romana do Cabeço do Vouga (terraço subjacente à ermida do Espírito Santo, ou da Vitória), que vai seguir-se, e que limitamos, como no princípio declarámos, à data do nosso relatório para a 6.ª Secção da Junta Nacional de Educação.

...«Talábriga sabe-se, por exemplo, que ficava junto da foz do Vouga, e por isso muitos autores antigos, modernos e até mesmo contemporâneos a têem pretendido situar em Aveiro, Cacia ou Esgueira. Já num bem fundamentado e deduzido estudo(42) se demonstrou que não devia procurar-se aí o sítio da tão discutida cidade, mas sim bastante mais para o interior: o que de forma alguma exclui, em nosso entender, a ideia arreigada de que ficava junto da foz do Vouga, não onde ela hoje está, mas onde estava talvez ainda ao tempo da dominação romana.

Efectivamente, a cidade velha da foz de um rio é junto da foz velha do mesmo rio que tem de procurar-se. / 342 /

A diversidade de aspecto morfológico entre a região do Baixo Vouga na época actual e o que era nos tempos proto-históricos deve harmonizar, assim o cremos, a opinião unânime dos antigos escritores de que Talábriga ficava situada junto da foz desse rio, e a contagem das milhas na estrada romana e considerações derivadas da própria natureza do terreno, segundo as quais ela não podia ficar situada onde hoje é Aveiro ou nas suas imediações. A notável povoação da antiga Lusitânia devia ficar mais no interior, perto, do braço marinho onde o Vouga desaguava e onde desaguavam também, independentemente dele, o Águeda e o Cértoma, braço marinho que as aluviões dos três rios posteriormente haviam de fazer desaparecer.

Isto escrevíamos nós em 1922, na Bacia do Vouga; e só temos agora a confirmar o que então dissemos, e a acrescentar mais alguma coisa. Observações feitas não há muito na mesma região e o traçado das vias romanas, que ali conseguimos reconstituir, levam-nos com efeito a localizar a antiga Talábriga, quase sem hesitações, no Cabeço do Vouga, onde este rio hoje se abraça com o seu afluente MarneI. Ali encontraram os engenheiros romanos terreno firme para a construção da estrada de Aeminium a Cale; e foi a magnífica posição estratégica do cabeço, aliada à ponte sobre o rio que ali se construiu, a razão primacial do profundo rasto que da região ficou na história da Reconquista, e das invasões francesas, e das lutas liberais, e até mesmo em perturbações políticas de nossos dias.

Nos recuados tempos a que podem levar-nos os mais antigos testemunhos históricos, a Ria de Aveiro não existia ainda; nem é natural que, se já existisse na época romana, tivessem os escritores coevos deixado em silêncio o singular acidente, onde a Natureza prodigaliza ao homem tão variados recursos.» (Op. cit., pág. 100).

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Esta bibliografia, dizemo-lo desde já, não é exaustiva(43); bastará, mesmo assim, para mostrar que a estação arqueológica do Cabeço do Vouga desde há muitos séculos logrou e tem mantido registo escrito, contrariamente ao que a pobreza de informações da actualidade podia fazer supor ao leitor menos dado ao manuseio de livros, dispondo apenas de comentários / 344 / fugazes de jornais nem sempre bem fundamentados, visando mesmo, por vezes, meros efeitos ocasionais de publicidade.

Fig. 1 − VALE DO MARNEL

Panorama tirado do alto de Belhe. À direita, no 1.º plano, a povoação de Lamas do Vouga; ao centro da vista, a igreja nova deste lugar; na horizontal da torre da igreja para a direita, o edifício isolado, na base do Pinhal, é o que restava da casa da residência anexa à igreja medieval de Santa Maria de Lamas quando a fotografia foi feita. − Para a esquerda alta da igreja avista-se o Cabeço do Vouga com a ermida do Espírito Santo alvejando, enquadrado na serena paisagem local. Ao fundo, a vertente de Valongo encimada pela serrania das Talhadas e do Caramulo.

Se procurarmos agora determinar o rendimento prático de quanto transcrevemos, avulta, antes de mais, o grande interesse que o local sempre mereceu, eco vivo, e muito sugestivo, da importância que na antiguidade terá tido. Em seguida, verifica-se que ao Cabeço do Vouga nenhum estudo puramente arqueológico jamais foi dedicado; sob esse ponto de vista
irmana-se ele com as demais estações do distrito, de que debalde procurei relatos que não fossem divagações históricas, hipóteses, aliás muito respeitáveis e eruditas, muita literatura, mas, no fundo, palavras apenas; dizia um grande espírito português, parafraseando SHAKESPEARE: O mundo está cheio de palavras. O Som confuso, o enorme ruído que elas fazem, perturba, desgosta e cansa. Era ANTÓNIO CÂNDIDO o grande espírito que modelarmente assim se exprimia.

Assim também no caso sujeito; a maior parte do que se tem escrito a propósito do Cabeço do Vouga, para nada serve: − perturba, desgosta e cansa; words, words, words.

Para o estudo estritamente arqueológico que vier a fazer-se do Cabeça do Vouga, vejamos, pois, o que de concreto se aproveita da bibliografia acima seriada, não nos detendo com o que, de caminho, para outros lugares nela se colhe; interessa-nos apenas o que ao Cabeço do Vouga se refere:

1.º − O local era muralhado: ...castelli marnelis no documento citado por VITERBO, FIGUEIRElDO VIEIRA, e PINHO LEAL; e se ao vocábulo castellum houver quem pretenda, em relação ao Cabeço do Vouga, retirar o significado de fortificação, o que hoje em dia se encontra a descoberto, e que adiante se relatará, é suficiente para demonstrar, de forma palpável, que a expressão castellum marnelis dos documentos medievais correspondia a uma sólida realidade de que presentemente não há o direito de duvidar.

Já FELIX ALVES PEREIRA nota que o Cabeço foi um castro.

2.º − Do espólio recenseado em toda essa literatura, regista FARIA E SOUSA indícios de magnificência em um sítio alto e forte por natureza sobre o rio deste próprio nome; o P.e CARVALHO DA COSTA − tijolos, pedras lavradas e outros vestígios de edifícios; o mesmo declaram as memórias paroquiais de 1758; NASCIMENTO SILVEIRA, transcrito no Portugal Antigo e Moderno, vestígios de muros antigos e sinais duma majestosa grandeza; fragmentos de tijolos e outros materiais de antigas edificações, o Dr. FIGUEIREDO VIEIRA; MARQUES GOMES repete o P.e CARVALHO DA COSTA, mas eleva as ruínas à categoria de «alicerces de soberbos edifícios», acrescentando porém que, ao tempo em que escrevia, nada existia já, o que constitui depoimento cronológico importante. / 345 /

O Sr. Dr. ANTÓNIO DE PINHO E MELO recolheu no Cabeço do Vouga moedas romanas, teve conhecimento directo da existência do poço, registando a tradição dele constituir a entrada para uma galeria subterrânea, e recolheu igualmente, nas cercanias do Cabeço, tijolos de relevo (presumivelmente romanos), encontrados com material de construção de avultadas dimensões, que ofereceu ao Museu de Machado de Castro, de Coimbra(44).

O escritor Sr. Dr. ALBERTO SOUTO refere-se também ao poço, e alude a tegulas, tijolos de molde romano, um pondus, e a mós manuárias que, todavia, não diz se são pré-romanas, romanas, ou medievais.

Afirmava o Portugal Antigo e Moderno que até ao seu tempo «ninguem ali encontrou cippos ou lapides com inscripções, muralhas, torres, estatuas, ou quaesquer outros vestigios da famosa cidade romana» de Vacca.

Até Agosto de 1941 a afirmação do Portugal Antigo e Moderno continuava verídica; o que ultimamente fora recolhido era o que andava à superfície, pulverizado pelo revolvimento agrícola duma ou outra parcela de terreno e por muitos séculos de romaria ao Espírito Santo do Vouga, fartamente concorrida dos povos das redondezas.

Sem necessidade de escavações, como, a respeito do que lá recolheu e acima se refere, declarava em 1930 o escritor Sr. Dr. ALBERTO SOUTO(45).

Nessas mesmas condições muito material romano de lá recolhi eu, em anos sucessivos de visitas.

Quanto a espólio, nada mais a bibliografia nos fornece; e nem o menor vestígio encontro de estudos que sobre esse material se tivessem feito.

Mas outros elementos a literatura transcrita nos fornece ainda, como propostas de identificação da cidade romana outrora existente no Cabeço do Vouga, problema de si muito delicado.

Para GASPAR BARREIROS, Fr. BERNARDO DE BRITO, FARIA E SOUSA, P.e CARVALHO DA COSTA, P.e FRANCISCO DO NASCIMENTO SILVEIRA, BORGES DE FIGUEIREDO, FÉLIX ALVES PEREIRA, e, também, para o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO(46), tratar-se-á do oppidum Vacca. / 346 /

Para o Sr. Tenente-coronel STRECHT DE VASCONCELOS e para o Prof. DR. AMORIM GIRÃO, é a própria Talábriga que no Cabeço devemos considerar(47).

Fr. ANTÓNIO BRANDÃO e JORGE CARDOSO situam confusamente junto do MarneI e do Vouga o monte e a cidade de Auranca, também grafados Aurancha, que noutros lugares encontrámos ainda escrito Aurunche e até Aronca, mais desfigurado (FIGUEIREDO VIEIRA, MARQUES GOMES, etc.).

Afastemos para longe do Cabeço do Vouga a referida povoação, que não é difícil de localizar; basta, para isso, considerar como é vulgar, em textos arcaicos, o emprego do i e do u consoantes, isto é, com valor de leitura, respectivamente, de j e de v. Ainda no século XVIII era corrente essa grafia. Tudo se esclarece rapidamente se dermos, portanto, ao u de Auranca o / 347 / valor de v; a leitura será Avranca, como, aliás, se encontra já em VITERBO, Elucidário, 2.º vol., 1.ª ed., pág. 48, e, na 2.ª ed., a pág. 34; do mesmo modo para a forma Aurancha, pois era também corrente, ainda em nossos dias, o grupo ch com valor de c, não sendo necessário insistir com exemplificações, que todos têm presentes.

E Avranca não é senão uma forma antiga abrandada depois em Abranca e reduzida modernamente a Branca pela deglutinação do A inicial, tomado indevidamente por artigo, que, todavia, a pronúncia popular persiste em manter como outrora.

Submetendo, há tempo, esta identificação ao parecer de filólogos, bem como do Sr. Prof. Dr. AMORIM GIRÃO, a quem, pelo seu especial interesse por quanto se refira à arqueologia do distrito, igualmente demos conhecimento dela, assim que nos ocorreu, de todos recebemos aplauso e concordância.

Sob o ponto de vista arqueológico é de notar que na Branca se registaram há muito materiais romanos abundantes; Fr. BERNARDO DE BRITO descreve achados que pessoalmente fez na serra de S. Julião (ou S. Gião), entre os quais: muralhas, fortificações e um fragmento de marco miliário que o cauteloso FELIX ALVES PEREIRA não rejeita inteiramente, mostrando-se, antes, inclinado à sua reabilitação.

As Memórias paroquiais de 1758 localizavam ali a cidade de Langóbria, notando ainda os vestígios que ficaram do arranque de pedra, na serra de S. Gião, para as muralhas, e chamavam a atenção para o Cristelo da Branca.

MARQUES GOMES, como se vê igualmente da transcrição que demos acima, chega até a pormenorizar, no alto da serra, vestígios salientes duma atalaia que supõe ter ocupado toda a circunferência do plaino, na extensão de cerca de 300 metros de comprimento, de norte a sul, por 120 de largo.

Regista ainda parte da vala ou cava exterior, bem como da linha do parapeito em toda a vala. Nem mesmo esquece, do lado do nascente, por detrás da serra, a saída e a larga estrada pela encosta do monte abaixo, com muros ou cortinas laterais de pedra e terraço(48).

FÉLIX ALVES PEREIRA, por fim, relembra tudo isto e propõe que na Branca e Cristelo se procure a jazida de Talábriga, no que é secundado pelo Rev. JOÃO DOMINGUES AREDE.

/ 348 / A remota cidade de Aurancha, celebrada pela referência medieval da Vita S. Martini Sauriensis(49) e confundida mais tarde com a zona do MarneI, tem, pois, longínquo registo arqueológico e deu lugar à actual povoação da Branca; nada tem de comum com o Cabeço do Vouga.

Recenseados os elementos arqueológicos da bibliografia do Cabeço do Vouga, que afinal existiam, ao contrário do que parecia acontecer, notemos que, em contrapartida, essa mesma bibliografia destroi as duas lendas mais queridas à literatura e ao jornalismo regionais:

1.ª − a heróica resistência dos talabrigenses à dominação romana, fonte do patriotismo nacional, a espectaculosa parada e arenga de Décimo Júnio Bruto, fatalmente invocadas quando se falava do Vouga, foram, a meu ver, criteriosamente transferidas para o Minho, sempre aguerrido, pelo estudo que ao texto de APlANO, muito citado mas nunca antes estudado nem compreendido, o Rev. Sr. P.e MIGUEL DE OLIVEIRA dedicou.

2.ª − Do encontro de tropas miguelistas com destacamentos liberais, ocorrido no Cabeço do Vouga em 1828 (28 e 29 de Junho) que MARQUES GOMES, em O Distrito de Aveiro (pág. 50) e depois noutras publicações, classifica de famosa batalha, e que LUZ SORIANO (História do cerco do Porto), considera um dos mais violentos que se travou em toda a nossa guerra civil, têm a literatura e a oratória regionais tirado motivo fácil de exaltação gloriosa; o sangue dos combatentes de 1828 terá, mesmo, regado o histórico cabeço.

Afinal, maior tem sido o caudal de tinta que o recontro tem feito correr sobre o papel; o Dr. FIGUEIREDO VIEIRA reduz tudo aquilo a proporções bem mais modestas; contemporâneo dos factos e vizinho do local, escreve, como acima se transcreveu: «Ainda em 1828 ahi ouvimos troar a artilharia do exército liberal e miguelista; e se bem que não houveram perdas a lamentar»...

Não houve perdas... Antes assim. Mas talvez vá sendo tempo da literatura regional buscar novos temas e paragens, deixando o Cabeço do Vouga − cuja cisterna se dizia estar atulhada de cadáveres dos heróicos combatentes de 1828 − de guarda ao milenário segredo que obstinadamente se tem recusado a revelar.

Verdade seja que mal lhe têm perguntado por ele; e não é com transcrições, sejam de quem forem, a propósito ou a despropósito, que a Esfinge falará; há-de ser pela sondagem directa das suas entranhas, e pelo indispensável estudo complementar do seu espólio arqueológico trazido para a luz do dia.

Ora, que nós saibamos, até à data das escavações que vamos relatar, nenhumas outras se fizeram, e nem uma só palavra se / 349 / publicou de interpretação e estudo arqueológico do material fragmentado recolhido à superfície.

Porque assim é, e porque, de forma alguma desejamos antecipar-nos ao estudo que certamente dele virá a ser feito, não o consideraremos no que passamos a referir; quando esse futuro estudo for do domínio público relacioná-lo-emos então, se for necessário para algum trabalho de conjunto, ao que por nós directamente se apurou.

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No conhecimento de toda a bibliografia acima coleccionada, à medida que ia aparecendo a público, animou-nos o compreensível desejo de ver desvendado o mistério de Talábriga; que
hoje como então se desconhece onde tenha sido com precisão; já em 1922, como ficou dito no começo desta resenha, anunciávamos em público esse propósito.

Com o espírito de colaboração e de desinteresse que sempre nos tem determinado − e de que temos dado sobejas provas − consequência duma profissão que tem por dever e objectivo colocar, à disposição de todos, os tesouros acumulados pelo tempo e pela erudição nas bibliotecas e nos arquivos − propusemos, há perto já de duas dezenas de anos, a exploração arqueológica do Cabeço do Vouga a duas pessoas da nossa convivência e que sempre haviam mostrado interesse pelo estudo do problema: o Prof. Dr. AMORIM GIRÃO, da Faculdade de Letras de Coimbra, e o escritor aveirense Dr. ALBERTO SOUTO.

Por ambos aceite e encarecida a ideia, nunca porém o respectivo trabalho de escavações se pôde concretizar, e de ano para ano a exploração se adiava.

Amiudei visitas ao local, fui recolhendo vário espólio cerâmico que conservo, até que entretanto, em 1935, a revista Arquivo do Distrito de Aveiro se fundou.

A ela tenho consagrado, na agradável companhia de dois invulgares camaradas de Direcção, quanto posso da minha actividade extra-oficial, nela consubstanciando o melhor da minha devoção pelo Distrito, donde, em fartos séculos de ascendência conhecida,todos os meus são oriundos.

Com grande satisfação temos conseguido ver acorrer a nós um grupo admirável, e felizmente em constante aumento, de boas vontades e competências, a ponto de já hoje não ser possível honestamente escrever a história do Distrito sem citar as páginas dos sete volumes que até ao presente a revista conta.

Ao Arquivo do Distrito de Aveiro se deve já, além da sua normal actividade e do renascimento dos estudos históricos na região, por ele impulsionados, o conjunto de circunstâncias que tornou possível a publicação, até aí baldadamente tentada, em anos seguidos de esforços inúteis, do códice medieval, tesouro / 350 / inapreciável de Aveiro, − Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus e memorial da lnfanta Santa Joana, filha dei rei D. Afonso V; às relações estabelecidas pelo Arquivo se devem agora também as escavações realizadas no Cabeço do Vouga.

Ambos os factos honram a região e causam justo desvanecimento à Direcção da revista; para o primeiro, sacrificou-se abnegadamente o Sr. Dr. FERREIRA NEVES, subsidiando o nosso trabalho (nenhum conterrâneo levara tão longe a sua dedicação); para a exploração do Cabeço do Vouga encontrámos no Ex.mo Sr. Joaquim Soares de Sousa Baptista a generosa compreensão e o pronto ânimo indispensáveis para o custeamento duma empresa cujos resultados nunca podiam ser senão de ordem estritamente moral, e esses mesmos com seu costumado cortejo de sensaborias, que em coisas desta natureza nunca falham, e às vezes donde menos seriam de esperar.

Devotado amigo do seu concelho, invulgar energia sempre pronta ao desenvolvimento moral e material do seu torrão natal, que para com ele tem contraído dívidas da natureza das que jamais se podem saldar, dava-se ainda a circunstância feliz do problema histórico do Cabeço do Vouga, que lhe fica vizinho, muito o interessar, e, ainda, de ter relações de próximo parentesco com alguns dos proprietários dos terrenos a explorar(50).

Há muito pensara, ele também, em proceder a escavações no local.

Nomeado recentemente para delegado, no concelho de Águeda, da 6.ª Secção da Junta Nacional de Educação, da qual, por minha vez, eu exercia idênticas funções no concelho de Ílhavo, mais não foi preciso para que se convertesse em realidade a aspiração que tantos anos eu inutilmente acarinhara.

Devo ao Sr. Joaquim Soares de Sousa Baptista a inesquecível atenção que deu às minhas solicitações e propostas, o concurso leal e desinteressado que trouxe aos meus velhos projectos, e a extrema gentileza com que espontaneamente desejou que fosse realizado por mim o estudo desta campanha arqueológica.

Nos atrabiliários tempos que vão correndo, de puro egoísmo, atitudes desta natureza escasseiam cada vez mais; razão, portanto, para se lhes dar o merecido registo, quando, por felicidade rara, logram verificar-se.

Visitámos novamente o local, uma e muitas vezes, discutiu-se o plano de trabalhos, fixaram-se directrizes, e, de harmonia com / 351 /

Fig. 2 − PONTE VELHA DO MARNEL

Medieval e siglada; seguramente, sobreposição doutra, romana. Fotografia tirada da ponte nova. À esquerda, o Cabeço do Vouga. Ao centro, a vala do Marnel. À direita, o Cabeço de Pedaçães. Na vertical do segundo pègão, a contar da esquerda, a casa do antigo passal da igreja de Santa Maria de Lamas, já hoje desaparecida.

/ 352 / elas, em 18 de Agosto do corrente ano uma brigada de trabalhadores dava início à primeira fase das operações.

O ponto de ataque não fora designado ao acaso; o Cabeço apresenta, nitidamente, dois terraços: o primeiro, subjacente à ermida do Espírito Santo (Fig. 3); outro, no alto, passado o templosinho que sempre considerei, perdido naquele monte desabitado, e conservando uma imagem medieval da Santíssima Trindade, de calcário, a sobreposição dum templo pagão. No primeiro, existe uma cisterna onde tinham aparecido moedas romanas e à qual várias lendas se ligavam, como acima dissemos, no género das que o povo cria a propósito de quase todas as cisternas castrejas que topa por esses montes. Alguma cerâmica de construção (tegulæ e tijolos) de lá se tinha recolhido também.

Fig. 3 − A Ermida do Espírito Santo e o terraço a ela subjacente.
Panorama recolhido do alto do Cabeço. (Foto de ROCHA MADAHIL)

No último terraço, passada a ermida, era menor o espólio conhecido, mas algum se recenseara.

Além destes dois núcleos perfeitamente diferenciados, registaram-se na vertente Nascente do terraço superior (Fig. 4), espalhando-se por toda ela até ao sopé do monte, e lamaçais do MarneI, abundantes restos de cerâmica de construção e caseira, pondera, notável profusão de mós manuárias (de arenito local), e ainda restos arquitectónicos, tais como pedras aparelhadas e capitéis. Dessa encosta provinha, justamente, quase todo o material que eu, e outros visitantes do local, há muitos anos vínhamos recolhendo. / 353 /

Aparentemente, os três núcleos isolavam-se uns dos outros. Também a bibliografia localizava por ali mais dum aglomerado urbano; podia, pois, tratar-se dum caso de coexistência, ou, então, de sobreposição, que são coisas diferentes e a considerar. O futuro dirá de que se trata, afinal.

Por comodidade de trabalho, aceitámos essa diferenciação natural. Sendo necessário dar preferência a um deles, optámos pelo primeiro terraço − o da cisterna, que era um elemento fundamental.

E por aí se principiou o trabalho.

Limpo de pinheiros o terraço, tratou-se de desentulhar a cisterna, e, ao mesmo tempo, de sondar o terreno em volta dela.

Fig. 4 − Vertente Nascente do terraço superior do Cabeço do Vouga, que se estende até ao Marnel.
(Foto de ROCHA MADAHIL)

Ao passo que os trabalhadores desciam e que os baldes voltavam carregados de terra quase extreme, duas lendas se iam desfazendo: a da famosa galeria de comunicação que atravessava o monte e dava saída para os lados de Carvalhal, de que não apareceram vestígios, e a do não menos famoso ossuário das pobres vítimas dos aguerridos combates de 1828. De esqueletos humanos, nem a mais pequena esquírola.

E foi assim que a desobstrução da cisterna se levou a dez metros de profundidade, até encontrar o seu fundo natural, igualmente de rocha, pois também não revelou nascente alguma de abastecimento; era mero reservatório de águas das chuvas. / 354 /

Junto à cisterna, do lado Poente, a escavação revelou a existência dum muro orientado de Norte a Sul (Fig. 5); descarnando a construção em comprimento e profundidade, deparou-se um lanço de muralha de 55 cm de largura na actual extremidade superior e 60 cm na base, 3,30 m de altura que até aí se encontrava completamente soterrada em terra humosa e raizame, lanço que se estendia por 41,25 metros (Fig. 6).

Esta muralha porém, constituída por duas fiadas apenas, de arenito, de aparelho rectangular, romano, sem enchimento intercalar, não é um paredão singelamente corrido em toda a sua extensão: contrafortam-na oito pilaretes equidistantes, com saliência igual para ambas as suas faces.

Na extremidade Sul da muralha, esta inflecte em ângulo recto para Nascente, pouco existindo desse lanço por ir encontrar a rocha viva, e acima do nível desta tudo haver desaparecido; o declive do terraço era para Poente, para o lado da muralha contrafortada.

Fig. 5 − A cisterna, com o dispositivo de extracção de terras armado, e a muralha contrafortada que lhe passa junto. (Foto de ROCHA MADAHIL)

No extremo Norte, em ângulo recto também, outro lanço de muralha se pôs a descoberto, em alinhamento perfeito, com 90 cm de espessura, sem mais contrafortes do que um ressalto perto da extremidade Nascente, e medindo 34m,65, ao fim dos quais volta para Sul, em ângulo recto também, mas desaparecendo a breve trecho, como o lanço Poente-Nascente, pela elevação natural do terreno. O grande / 355 / [Vol. VII - N.º 28 - 1941] rectângulo muralhado apresenta as suas linhas mais importantes voltadas a Poente e a Norte.

Dentro do recinto, que deve ter sido imponente, a avaliar pelo que resta de seus muros, que justificam perfeitamente a expressão Castellum Marnelis dos documentos medievais, encontraram-se alicerces de construções de vária idade; num pequeno grupo chegado ao Sul, divisam-se paredes de casas circulares de grande raio, que outras, rectilíneas, posteriormente atravessaram. Mais perto da cisterna, fazendo triângulo com as duas linhas completas de muralha, avulta um grande grupo de alicerces, onde há nítidas sobreposições também e paredes circulares; um rectângulo, distinto destas, mede 7,5 metros por 5,20 m.; dentro deste, uma base de alvenaria dalgum altar, ou lareira, que dificilmente se poderá precisar. Um pouco a Sul deste rectângulo perfeito, a 3,40 metros da cisterna, dois lados doutro, formados por blocos bem aparelhados, de invulgar solidez e espessura; uma destas pedras apresenta duas letras gravadas, de leitura insegura, possivelmente um T e um A.

Fig. 6 − Um aspecto da muralha, na extremidade Sul, permitindo ver os contrafortes.

Descarnada a muralha contrafortada, notou-se, na extremidade Norte, que, além de inflectir para Nascente, voltava igualmente para Poente, em ângulo recto também, prolongando o alinhamento que trazia. / 356 /

Seguida essa nova pista, desobstruiu-se então um corredor de 4,20 metros de largura (Fig. 7) limitado por outro lanço de muralha, paralelo ao primeiro (contrafortado). Entre os dois panos de muralha pôs-se a descoberto alguma coisa de verdadeiramente estranho e talvez inédito em arquitectura arqueológica de Portugal: uma série de bastiões semi-cilíndricos, interiormente de 2,90 metros de diâmetro e 1,60 de fundo, de paredes de 50 cm de espessura, separados uns dos outros por parapeitos de metro de altura e fresta livre daí para cima. Todos os bastiões porém, de que restam quatro (e vestígios dum quinto), em média de 2,80 metros de alto, apresentam uma particularidade notável: a curvatura é voltada
para o interior do corredor (Fig. 8), e nela se não depara vestígio de entrada ou postigo de comunicação, ou de observação, para dentro do semi-cilindro, que se não sabe como seria à frente, do lado da encosta, nem tampouco se teria cobertura, abobadada(51) ou não; esvaziou-se uma dessas construções (Fig. 9) e verificou-se então que interiormente a pedra é, da mesma forma, aparelhada, e que a face interna da curva apresenta a mesma perfeição.

Da parte convexa, as paredes assentam num ressalto muito bem construído, cuja altura varia com o declive do terreno, e da largura exterior de 10 cm.

Ao fundo do corredor, fazendo a ligação das duas muralhas, há um ressalto de 80 cm de altura (Fig. 10).

De tudo se levantou planta, permitindo as nossas Figs. 11 e 12 apreciar o conjunto posto a descoberto.

Fig. 7 − Corredor entre a muralha contrafortada e a linha de construções que lhe fica paralela, à distância de 4,20 m.

/ 357 / O que imediatamente fere a atenção é a regularidade dos alicerces das edificações maiores, formadas por vezes com grandes blocos, e sempre cuidadosamente esquadrados; a perfeição da tessitura das muralhas, as dimensões destas, as construções semi-cilíndricas do corredor, por enquanto inexplicáveis, são elementos que se congregam para afastar desde já a hipótese de porventura se tratar duma simpIes villa luso-romana, mesmo luxuosa e vasta que fosse. Indubitavelmente, estamos em presença dum recinto muralhado pertencente a um povoado de vulto, qualquer que ele tenha sido, pois as escavações não forneceram por enquanto elementos incontroversos de identificação; e a bibliografia, como vimos, também não é absolutamente concludente.

Digamos agora qual o espólio recolhido, cingindo-nos sempre − é bom repeti-lo − unicamente a este terraço e à zona representada na planta; é impossível, por enquanto, relacioná-lo com todo o Cabeço do Vouga; só depois de exploradas as três divisões que naturalmente se nos deparam, como expusemos já, se pode tentar, honestamente, o estudo arqueológico definitivo da estação. E depois do arqueológico, o histórico.

A recolha de espólio forneceu material de pedra, de metal, de cerâmica, de vidro, e ainda restos animais.


MATERIAL DE PEDRA:

Fig. 8 − Três bastiões, o corredor e a muralha contrafortada. (Foto de ROCHA MADAHIL)

a) − de construção: dois blocos fragmentados, de arenito / 358 / vermelho da região, talhados em moldura, que tanto podem ter pertencido a uma cimalha como a uma base (Fig. 13, f); a diagonal que serve de orientação à moldura mede 30 cm. Outro fragmento idêntico, com o perfil representado na Fig. 13, g. Um fragmento de capitel também de arenito local, que devia medir cerca de 40 cm de diâmetro, e que poderia ter sido o remate duma coluna de tijolos, como era usual; não encontrámos até à data, no entanto, os característicos tijolos triangulares, de lado convexo.

Fig. 9 − Um dos bastiões semi-cilindricos esvaziado. (Foto de ROCHA MADAHlL)

b) − de indústrias caseiras: vários exemplares de mola manuaria ou trusatilis, de arenito, de alturas e diâmetros diversos; a mó dormente (meta) abunda mais; da mó superior (catillus) apenas fragmentos, o que se explica pela sua maior fragilidade. São todos do tipo vulgar.

As condições em que estas mós se encontraram, junto de espólio unicamente romano, levam-nos a classificá-las, sem hesitação, dessa mesma época.


MATERIAL METÁLICO:

a) − ferro: três pregos de construção, (clavi), de secção quadrada, que deviam medir 10 cm quando completos. / 359 /

b) − cobre: 1º − moedas: apareceram agora três, mas recenseamos igualmente neste lugar a que apareceu outrora junto à cisterna, e que o Sr. Dr. António de Pinho e Melo conserva, como dissemos, pois a tivemos presente.

Provenientes da escavação que estamos relatando:

I −Imperador Quintilo(52).

Anverso: legenda − IMP C M AVR CL QVINTIILLVS (AUG) cIrcundando o busto do Imperador, de perfil voltado à direita, cabeça cingida pela corona radiata de que são visíveis 3 raios; mostra vestir o paludamentum

Reverso: legenda (FORTUNA) REDVX rodeando a figura da Fortuna, de pé, que volta a cabeça à esquerda, segurando na mão direita o gubernaculum apoiado sobre um globo que poisa no solo; na mão esquerda ergue a cornucópia da Abundância.

Fig.10 − O fundo do corredor fazendo a ligação das muralhas com o bastião e permitindo observar a curvatura deste e o ressalto em que assenta, bem como o aparelho da muralha, ao fundo, em rectângulo perfeito. (Foto de ROCHA MADAHIL)

/ 360 /

2 − Imperador (Constantino lI ?)(53).

Anverso: busto laureado do Imperador, de perfil voltado à direita, tendo já desaparecido a legenda que o circundava.

Fig. 11 − Planta das construções e alicerces postos a descoberto. Escala 1/400. Desenho do Ex.mo Sr. Abílio Quaresma, da Arrancada.

Reverso: duas figuras, talvez duas Vitórias, de pé, voltadas uma para a outra, erguem, com a mão direita, duas coroas à altura das suas cabeças. Em volta, legenda de que se conhece apenas VICTOR... Na base do campo, isolada do grupo alegórico por um traço horizontal, uma palavra que deveria ser . ROMA . , mas da qual existem apenas o ponto inicial e as duas primeiras letras. / 361 /

3 − Imperador Galieno(54).

Anverso: busto do Imperador, de perfil voltado à direita, cabeça Cingida pela corona radiata. Da legenda restam unicamente as letras GALI, e o próprio busto está parcialmente destruído.

Reverso: relevo pouco perceptível e mutilado; da legenda restam as letras NSERVA; possivelmente seria JOVI CONSERVA, e o relevo representaria Júpiter nu, de pé, voltado à esquerda, pois se distingue uma parte do corpo e o ceptro.

Fig. 12 − Pormenores da planta anterior. Escala 1/400. Desenho do Ex.mo Sr. Abílio Quaresma, da Arrancada.

Proveniente dos trabalhos agrícolas realizados há anos junto à cisterna, e recolhida pelo Sr. Dr. António de Pinho e Melo:

Anverso: busto de Roma, de perfil voltado à esquerda, toucado com o capacete ornado e mostrando vestir o manto imperial. Em volta, a legenda VRBS (ROMA).

Reverso: a loba (da fábula), voltada à esquerda, amamentando Rómulo e Remo, sentados debaixo dela, voltados um para o outro. Sobre ela, um fIorão. Em baixo, letras que parecem − SCONS.

Atribui-se a cunhagem de moedas destas aos reinados dos imperadores Constante e Constâncio II (anos 333 a 350, e 323 a 361, respectivamente). / 362 /

O aparecimento destas moedas reveste-se da maior importância para a cronologia da estação, pois documenta o seu povoamento nos séculos 3.º e 4.º da nossa era; certamente se não virá alegar, em contrário, que elas podem ter sido perdidas lá, séculos depois.

2.º − outros objectos

fíbula, ou alfinete de segurança, do tipo de mola enrolada; conserva ainda a sua elasticidade, e vai desenhada, de perfil, em tamanho exacto, na Fig. 14, b.

− fragmento de qualquer pequeno objecto de uso doméstico, possivelmente fíbula também, doutro tipo; é constituído por um eixo terminando em botão nas duas extremidades, e por uma espécie de fusilhão que gira em torno do eixo; vai desenhado, em tamanho exacto, na fig. 14, C.

Fig.13 − Material de construção, de arenito. Desenho de ROCHA MADAHIL

− outro fragmento indeterminado, que faz lembrar um pequeno batente de fechadura exterior, de arqueta; mede 40 mm de comprido por 10 mm de largo mas está incompleto; apareceu quando se procedia ao esvaziamento dum dos bastiões.

− um estilete, ou, possivelmente, um prego para o cabelo (acus comatoria ou crinalis) com a extremidade que teria sido ornada já carcomida; vai desenhado de perfil e de frente na Fig. 14, d e e, em tamanho exacto (133 mm).

c) − bronze:

Um estilete, de arestas facetadas, terminando, a esbater, na extremidade superior, em lâmina (fig. 14, a); muito provavelmente, / 363 / um stylus destinado a escrever nas cera, tabuinhas revestidas de fina camada de cera, onde se riscavam os caracteres; a parte larga do stylus servia para apagar a escrita, alisando novamente a camada de cera, que ficava apta a receber nova escrita.

Fig.14 − Objectos metálicos: a, stylus de bronze; b, fíbula de mola, de cobre; c, fragmento de fíbula doutro tipo (?), de cobre; d e e, acus comatoria (?), ou estilete de cobre. Desenho de ROCHA MADAHIL

/ 364 /

MATERIAL CERÂMICO:

a) − de construção: Tegulæ: rectangulares, do tipo vulgar em Portugal, mas todas fragmentadas, em maior ou menor tamanho.

Imbrices, também do tipo vulgar no nosso país; cobriam as juntas das tegulæ. Da mesma forma que para estas dissemos, apareceram unicamente fragmentos.

 

 
 

Fig. 15 − Fragmento de taça de barro rosado, com ornamentação saliente; cerâmica de importação. Desenho de ROCHA MAIJAHIL.

 

− Tijolo (later) fragmentado também, apresentando impressa a pata dum cão, pormenor muito vulgar, ocorrido na secagem das peças ao sol.

b) − de usos domésticos, e, muito provavelmente, de fabrico local.

pondera, de secção rectangular, e tamanho vário, mas, em média, de 10 cm de comprimento, e com dois furos para suspensão; empregavam-se na indústria da tecelagem.

amphoræ e orcæ: de barro claro, muito espessas (15 mm); apareceram fragmentos de fundos, de colos, e de asas; / 365 / uma asa mede 20 cm de comprimento por cinco de largura, e é decorada com um vinco de alto a baixo.

− fragmento de asa com três nervuras; mede 6 cm de largo e é, de barro fumado; também de barro fumado são outras asas menores, cilíndricas.

− fundos de várias vasilhas, quer pretas, quer encarnadas, cujo estado de desgaste não permitiu o decalque exacto dos perfis, como desejaríamos ter feito e reputamos indispensável para o necessário estudo comparativo.

Toda a cerâmica encontrada acusa, nitidamente, o preparo das pastas, para o expurgo de matérias estranhas, e o emprego da roda de oleiro.

Ao contrário do que acontece no terraço superior e na encosta Nascente, o espólio ceramológico do primeiro terraço apresenta apenas exemplares de superfície lisa, sem ornato inciso nem estampado, e de fundos planos.

No terraço superior é grande a variedade, tanto em data como em ornato, chegando a exumar-se um fragmento com inscrição incisa onde se lê ... OPPIDA ..., o que tudo será oportunamente relatado e estudado.

Cerâmica de importação:

− fragmento de taça, de barro rosado, apresentando reflexos irisados; tem milímetro e meio de espessura; mostra-se na figura 15 em tamanho natural, e o círculo que o envolve reconstitui o bordo da peça; a parte traçada a cheio corresponde com exactidão ao fragmento recolhido; pela sua curvatura se determinou o resto.

Os crescentes que o decoram, em duas linhas que certamente circundariam toda a taça, apresentam forte relevo, obtido por aplicação individual, devendo excluir-se a hipótese de moldagem.

Numa vitrina da sala romana do Museu de Machado de Castro tive ocasião de ver um fragmento cerâmico proveniente de Conímbriga, de tipo análogo; em vez de crescentes, é decorado com uma espécie de escamas salientes que fazem lembrar uma pinha. Não está classificado.

Na visita que a Junta de Educação Nacional fez ao Cabeço do Vouga, como adiante se dirá, foi lembrado, pelo Sr. Dr. VIRGÍLIO CORREIA, que o nosso fragmento fosse de cerâmica de Acci.

Acci, ou Accitum, era uma colónia romana de Espanha, da Tarraconense, cujo nome evolucionou depois para Guadix, facto recordado já por GASPAR ESTAÇO nas suas Várias Antiguidades de Portugal / 366 / (1.ª ed., pág. 145). Fica na Andaluzia, na província de Granada.

O fragmento é precioso pelas conclusões que permite tirar sobre o grau de cultura e as relações comerciais do oppidum.

Louça arretina, que noutros pontos do Cabeço apareceu, tanto original como imitação, não se encontrou neste primeiro terraço.


VIDRO:

− fragmento inclassificável de vidro de cor violeta, conservando agarrado um resto de massa branca não vitrificada.


RESTOS ANIMAIS:

− Molares (?) dum grande ruminante, a identificar.

− Uma concha de ostra, medindo 35 mm de largura e 90 mm de altura.

Chamou a nossa atenção a ausência completa de cinzas, de restos de cozinha, e a escassez do espólio encontrado a par de edificações tão notáveis pela sua área, raridade de tipo e perfeição de alicerces e de construção. Parece que a população não habitaria propriamente aquele recinto, que, considerada a vizinhança do santuário cristão medieval que o terá seguido, bem pudera ter sido um grande santuário da época romana(55), afamado nas redondezas, como para o seu sucedâneo se pode documentar.

A escassez do espólio podia encontrar explicação no facto, muito presumível, da povoação não haver sido destruída por assalto, nem os seus habitantes obrigados a abandoná-la precipitadamente; com o andar dos tempos e a pacificação da Lusitânia, os povos do Cabeço teriam descido às férteis baixas que se espraiavam até o Vouga e criariam a povoação da beira-rio, se é que já não existia cumulativamente, para ela trazendo, consigo, os seus utensílios caseiros; nos altos deixariam a acrópole, e o seu santuário. Sabemos, pelo menos, como a povoação do Vouga, no sopé do Cabeço, junto da estrada, das pontes e do rio, tem existência documentada anterior à fundação da monarquia portuguesa e foi de grande importância nos primeiros séculos desta.

Essa explicação, porém, pode ser invalidada pelo resultado de subsequentes escavações; o recinto não foi ainda inteiramente revolvido, já diremos porquê; e no terraço superior do Cabeço, bem como na encosta voltada ao Nascente, tem aparecido, em sondagens previstas no nosso programa e igualmente levadas / 367 / a efeito pelo Sr. Sousa Baptista, espólio pré-romano, coisa que no terraço subjacente à ermida (se excluirmos os alicerces circulares) não apareceu, e que será devidamente relacionado se a exploração prosseguir. Só no final, conjugando todos os elementos recolhidos, se poderá honestamente concluir; tudo o que por enquanto se diga, além do relato friamente objectivo do que for aparecendo, como aqui se faz, assenta em base insuficiente e vem apenas aumentar a confusão. Por nossa parte, pelo menos; teremos o domínio bastante sobre nós próprios para não precipitarmos conclusões nem aumentarmos inutilmente o número das hipóteses acerca do Cabeço do Vouga.

Não nos deslumbra o achado, nem por ele, ou por qualquer outro, buscamos glória.

O prosseguimento das escavações, donde há-de resultar o esclarecimento do problema local, e, consequentemente, o de tantos outros que lhe andam ligados, depende agora das Estâncias Superiores.

Em 18 de Setembro do corrente ano relatámos o que fizéramos, um pouco mais sumariamente do que neste impresso, à segunda subsecção da 6.ª Secção da Junta Nacional de Educação, de harmonia com o disposto na lei; ao respeito que geralmente é devido a esta, acrescia o que a nossa situação de delegados da Junta lhe impunha; concluíamos o nosso relatório nestes precisos termos:

«Projectam os dois delegados, que tomaram a iniciativa destas escavações, pôr a descoberto todo o recinto muralhado do Cabeço da Mina, abrir valas de sondagem nas encostas adjacentes, e pesquisar igualmente o alto do Cabeço do Vouga que fica sobranceiro à Capela do Espírito Santo, de tudo dando conta à Ex.ma Junta, e procurando esclarecer os problemas arqueológicos ligados ao local.

Há, porém, a considerar o efeito do próximo inverno nas muralhas agora postas a descoberto; faltas de argamassa como já se encontram, é de prever que se desmoronem; e como interessa conservar o que sumariamente fica relatado, de tipo ainda não conhecido entre nós, o signatário deste relatório tem a honra de propor a V. Excelência que:

1.º − Sem demora seja declarado monumento nacional todo o Cabeço do Vouga, centro de notável ocupação luso-romana, incorporando-se na carta arqueológica do País.

2.º − Sejam autorizados os dois delegados aqui referidos a prosseguir nas escavações segundo o plano acima indicado, que poderão pormenorizar, sendo necessário.

3.º − Que pela Ex.ma Junta seja ponderada à Direcção dos Monumentos Nacionais a conveniência de mandar proceder à consolidação e guarda das muralhas agora reveladas, e do conjunto de estações luso-romanas do Cabeço do Vouga.» / 368 /

Como primeira consequência deste relatório, fez-se em 15 de Outubro a visita oficial da Junta ao Cabeço do Vouga, tendo-se deslocado expressamente ao local o Sr. Prof. Dr. JOÃO PEREIRA DIAS, que preside, com sábia orientação e notável zelo, à subsecção a que os serviços de escavações se encontram adstritos, e o vogal, delegado da Junta, em matéria de Arqueologia, Sr. Prof. Dr. VERGÍLIO CORREIA.

Sabedor de que ao escritor aveirense, Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, interessava estar presente, e reconhecendo vantagem científica em reunir no local os mais próximos delegados concelhios da Junta, convidou-o o ilustre presidente a comparecer igualmente, sendo muito de registar a cativante delicadeza com que o Sr. Prof. PEREIRA DIAS se quis previamente assegurar da concordância de quem levou a efeito as escavações e as relatara, assentimento que pronta e gostosamente lhe foi declarado, pois não está em nosso espírito fazer reserva alguma (o que seria anti-científico) antes, pelo contrário, toda a colaboração aproveitável se utiliza − como deste relatório se verifica − e se agradece.

O Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, que assistiu, por consequência, a esta visita oficial da Junta, era acompanhado pelo Sr. Tenente comandante da Guarda Fiscal em Aveiro e pelos correspondentes dos jornais O Século e Diário de Notícias na mesma cidade, desta forma se explicando as notícias publicadas nos referidos jornais em 17 de Outubro do corrente ano, nas quais não houve qualquer interferência directa de quem promoveu as escavações nem de quem as relatou.

A todos foi dado inteiro e pormenorizado conhecimento dos trabalhos realizados, da continuação projectada, e do espólio recolhido que o Sr. Sousa Baptista cuidadosamente conservava em sua casa.

Aguardam-se agora as determinações da Junta ao que lhe foi apresentado e proposto; o que, até aqui, se realizou particularmente, em terrenos que por enquanto são do domínio privado, e exclusivamente a expensas da benemerência dum particular em quem não falece inteligência nem devoção patriótica, é, a meu ver, mais que suficiente para interessar o Estado, sob vários aspectos até.

Das sondagens realizadas no terraço superior à Ermida do Espírito Santo, de que resultou \já abundante espólio ceramológico e metálico, revelador de estádios de civilização anteriores aos documentados pelas muralhas e mais achados do terraço que relatamos aqui, projectamos dar igualmente conta ao público, mesmo que tenhamos de nos limitar ao registo dos resultados obtidos na primeira parte desta campanha arqueológica, ainda não oficializada.

E se ao estudo da Estação luso-romana do Cabeço do Vouga se não puderem criar condições de prosseguimento, que, por / 369 / vezes, não dependem unicamente do real interesse, mesmo quando incontestável, dos casos sujeitos, resignemo-nos todos e deixemos que o Tempo misericordioso estenda nova camada protectora sobre as milenárias ruínas, mudas testemunhas de grandiosas pugnas, de pequenas paixões, e de estrutural incompreensão dos Homens.

Outra geração as despertará, talvez então definitivamente, e lhes dará nas páginas redentoras da História a vida que por agora baldadamente teremos procurado proporcionar-lhes, animados apenas de puro interesse científico e de filial devoção aos pátrios Lares.

A. G. DA ROCHA MADAHIL

_________________________________________

(42) − «F. ALVES PEREIRA, Geografia proto-histórica da Lusitânia - Situação conjectural de Talábriga, in − Arqueólogo Português, voI. XlI.» 

(43) − Não nos foi possível consultar colecções de jornais nem encontrar determinadas obras, como o Mapa breve da Lusitânia antiga, do P.e FRANCISCO DO NASCIMENTO SILVEIRA, do qual apenas registámos o que o Portugal Antigo e Moderno e FELIX ALVES PEREIRA dele transcrevem. 

(44) − Como é natural, desejei muito conhecer esses tijolos; mas debalde os procurei no referido Museu, em 26 de Outubro do ano corrente. Não se encontram expostos; o funcionário que consultei, muito antigo na casa e conhecedor das colecções, declarou-me que nunca os vira nem lhe constava que ainda existissem. 

(45)A Estação Arqueológica de Cacia . I . Primeiras palavras * Primeiras impressões; pág. 13.

(46) − O texto acima transcrito, de 1930, expressamente o admite; do material arqueológico recolhido no Museu de Aveiro, que propositadamente visitámos em 23 de Outubro do ano corrente, na companhia do Conservador do Museu, o pintor Sr. José de Pinho, há um núcleo de 21 fragmentos dentro duma vitrina, etiquetados desta forma: «Cabeço do Vouga. Castro romanizado ou oppidum romano da margem esquerda do Vouga. VACCUA?», Esses 21 fragmentos são restos de tegulæ, de imbrices, de fundos de ânfora, de louça arretina, de pondera, e recordações do combate de 1828 (28 e 29 de Junho). Não estão classificados; um deles tem a data de 6 de Setembro de 1941.

Num vão de janela foi-nos mostrada grande quantidade de fragmentos da mesma proveniência, reconhecimento de 1930, como num apontamento se lê; no amontoado avultam mós manuárias, um capitel redondo, de calcário, e tijolos. Há ainda um segundo amontoado informe de fragmentos cerâmicos, mas o estado em que tudo se encontra presentemente não permite estudo algum, com grande pesar nosso.

(47) − Já depois da nossa resenha bibliográfica impressa foi-nos dado conhecimento duma série de 8 artigos que no semanário Correio do Vouga publicou, de 14 de Julho de 1934 a 16 de Março do ano seguinte, um investigador que, segundo declarava o próprio jornal; ocultava o seu nome com o pseudónimo de TRAVASSOS GOMES.

Esses artigos, intitulados As civitates dos séculos 10º e 11.º, baseiam-se em VITERBO e nos documentos dos Portugaliae Monumenla Historica, no primeiro deles enumeram-se entre as referidas civitates «a cidade de Serem (doc. de 1170) e a do Marnel (doc. de 1095)», e diz-se a propósito:

...«cremos que a civitas Serem era a mesma civitas ou castelum Marnelis, nomeada de diferente modo nos diversos documentos»...

...«A civitas Marnelae de um documento de 1095 tem o nome de Castelum Marnelis noutro documento de 1121».

E conclui:
«temos como quase certo: I − Que as civitates em causa ou eram somente departamentos territoriais ou eram também meras sobrevivências toponímicas de povoações castrenses, já extintas muito antes dos séculos 10.º e 11.º»

No quarto desses artigos escreve TRAVASSOS GOMES:

..«parece que Talábriga deverá procurar-se nas proximidades de Albergaria-a-Velha. As ruínas arqueológicas do «Cabeço do Vouga» não serão a sua carcaça desfeita?»

No último artigo − de 16 de Março de 1935 − defende novamente o referido escritor a tese de que «as civitates dos séculos 10.º e 11.º, V. g., as do Marnel, Portela, S. Maria, Alvarelhos, Bagunte, Benviver, etc., eram meras sobrevivências toponímicas de povoações extintas, designando também em alguns casos uma circunscrição territorial.»

(48) − MARQUES GOMES não diz, no que escreve, se a descoberta desta estação arqueológica da serra de S. Julião, na Branca, lhe pertence, ou se os elementos lhe foram fornecidos por terceira pessoa. A sua descrição, de 1877, é muito mais pormenorizada do que a das memórias paroquiais de 1758, e faz supor conhecimento directo do local; no entanto, é flagrante a semelhança entre o que publicou e o artigo de PINHO LEAL no Portugal Antigo e Moderno, vol VI, s. vb. Outeiro (da Branca), pág. 354.

(49)Portugaliae Monumenta Historica, voI. Scriptores, pág, 60.

(50) − São os seguintes os proprietários dos terrenos do Cabeço do Vouga: terraço da mina: Manuel Marques de Figueiredo, e Dr. Augusto Soares de Sousa Baptista; terrenos marginais: Albino Rodrigues Pereira, António Domingues Pereira, António Francisco de Miranda Grilo, Joaquim Rodrigues de Melo e Joaquim Rodrigues da Silva; terraço superior: Dr. Augusto Soares de Sousa Baptista, e Manuel Gomes Correia Sereno; terrenos marginais: António Baptista de Pinho e Melo e António Ferreira Viegas.

(51) − Nesse caso, uma espécie de fornix romano; conhece-se uma série de quatro, alinhados, que existiam no meio das ruínas duma villa romana, junto ao golfo de Gaeta (RICH, Dict. des antiq. rom.).

(52) − Irmão do Imperador Cláudio II; data de 1023 (270 depois de Cristo) a sua aclamação; imperou apenas 17 dias, suicidando-se por verificar que não podia contar mais com o apoio do exército. MARCO AURÉLIO CLÁUDIO QUINTlLO era o seu nome completo.

(53) − Filho do Imperador Constantino I; nasceu em 1069 (ano 316 depois de Cristo); por morte do pai foi aclamado em 337; em 340, matou-o seu irmão Constante. FLÁVIO CLÁUDIO JÚLIO CONSTANTINO era o seu nome completo.

(54) − Filho do Imperador Valeriano; nasceu em 971 (ano 218 depois de Cristo.). Em 253, seu pai associou-o ao império, governando, nessas condições, treze anos; quando Valeriano foi aprisionado, assumiu sozinho o império, que manteve durante dois anos, ao fim dos quais, em 268, foi assassinado. PÚBLlO LICÍNIO GALlENO era o seu nome completo.

(55) − Nas escavações chegou-se a atingir a rocha viva, parecendo, portanto, que não é de considerar, neste ponto da estação, uma substrutura cultural pré-romana.

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