/
341 /
Temos, pois, em meu entender, duas Talábrigas: a de
PLÍNIO e do Itinerarium, na região do Vouga; a de APlANO e da ara, na região do Lima.»
De nada tem valido a justa advertência; há frases e ideias
feitas, a que, fácil e vistoso bordão de apoio, a literatura regional pretensamente erudita se encosta constantemente e não larga
mais; a apoteose do heroísmo dos talabrigenses do Vouga continua, em tom
maior sempre, embora ao Minho, em todos os
tempos aguerrido, as páginas históricas de APlANO pareçam pertencer de verdade...
Com o extracto do capítulo
Fenómenos de erosão e de acumulação, da Geografia de Portugal, que o Sr.
Prof. AMORIM GIRÃO
está publicando, encerraremos o escorço bibliográfico de introdução ao estudo arqueológico da estação luso romana do Cabeço
do Vouga (terraço subjacente à ermida do Espírito Santo, ou da Vitória),
que vai seguir-se, e que limitamos, como no princípio declarámos, à data do nosso relatório para a 6.ª Secção
da Junta Nacional de Educação.
...«Talábriga sabe-se, por exemplo, que ficava junto
da foz do Vouga, e por isso muitos autores antigos, modernos e até mesmo contemporâneos a têem pretendido situar
em Aveiro, Cacia ou Esgueira. Já num bem fundamentado
e deduzido estudo(42) se demonstrou que não devia procurar-se aí o sítio da tão discutida cidade, mas sim bastante
mais para o interior: o que de forma alguma exclui, em
nosso entender, a ideia arreigada de que ficava junto da foz do Vouga,
não onde ela hoje está, mas onde estava
talvez ainda ao tempo da dominação romana.
Efectivamente, a cidade velha da foz de um rio é junto
da foz velha do mesmo rio que tem de procurar-se.
/
342 /
A diversidade de aspecto morfológico entre a região
do Baixo Vouga na época actual e o que era nos tempos
proto-históricos deve harmonizar, assim o cremos, a opinião
unânime dos antigos escritores de que Talábriga ficava
situada junto da foz desse rio, e a contagem das milhas na
estrada romana e considerações derivadas da própria natureza do terreno, segundo as quais ela não podia ficar
situada onde hoje é Aveiro ou nas suas imediações.
A notável povoação da antiga Lusitânia devia ficar mais
no interior, perto, do braço marinho onde o Vouga desaguava e onde desaguavam também, independentemente
dele, o Águeda e o Cértoma, braço marinho que as aluviões
dos três rios posteriormente haviam de fazer desaparecer.
Isto escrevíamos nós em 1922, na
Bacia do Vouga; e
só temos agora a confirmar o que então dissemos, e a
acrescentar mais alguma coisa. Observações feitas não há
muito na mesma região e o traçado das vias romanas, que
ali conseguimos reconstituir, levam-nos com efeito a localizar a antiga Talábriga, quase
sem hesitações, no Cabeço do
Vouga, onde este rio hoje se abraça com o seu afluente
MarneI. Ali encontraram os engenheiros romanos terreno firme para a construção da estrada de
Aeminium a Cale;
e foi a magnífica posição estratégica do cabeço, aliada à
ponte sobre o rio que ali se construiu, a razão primacial
do profundo rasto que da região ficou na história da
Reconquista, e das invasões francesas, e das lutas liberais,
e até mesmo em perturbações políticas de nossos dias.
Nos recuados tempos a que podem levar-nos os mais antigos testemunhos
históricos, a Ria de Aveiro não existia
ainda; nem é natural que, se já existisse na época romana, tivessem os
escritores coevos deixado em silêncio o singular acidente, onde a Natureza prodigaliza ao homem tão
variados recursos.» (Op. cit., pág. 100).
*
*
*
Esta bibliografia, dizemo-lo desde já, não é exaustiva(43);
bastará, mesmo assim, para mostrar que a estação arqueológica
do Cabeço do Vouga desde há muitos séculos logrou e tem
mantido registo escrito, contrariamente ao que a pobreza de
informações da actualidade podia fazer supor ao leitor menos
dado ao manuseio de livros, dispondo apenas de comentários
/
344 /
fugazes de jornais nem sempre bem fundamentados, visando mesmo, por
vezes, meros efeitos ocasionais de publicidade.
|
Fig. 1 −
VALE DO MARNEL
Panorama tirado do alto de Belhe.
À direita, no 1.º plano, a povoação
de Lamas do Vouga; ao centro
da vista, a igreja nova deste lugar; na horizontal da torre da igreja
para a direita, o edifício isolado, na base
do Pinhal, é o que restava da casa da residência anexa à igreja
medieval de Santa Maria de Lamas quando
a fotografia foi feita. − Para a esquerda alta da igreja avista-se o
Cabeço do Vouga com a ermida do
Espírito Santo alvejando, enquadrado na serena paisagem local. Ao fundo,
a vertente de Valongo
encimada pela serrania das Talhadas e do Caramulo. |
Se procurarmos agora determinar o rendimento prático de
quanto transcrevemos, avulta, antes de mais, o grande interesse que o
local sempre mereceu, eco vivo, e muito sugestivo, da importância que na
antiguidade terá tido. Em seguida, verifica-se que ao Cabeço do Vouga nenhum estudo puramente
arqueológico jamais foi dedicado; sob esse ponto de vista
irmana-se ele com as demais estações do distrito, de que
debalde procurei relatos que não fossem divagações históricas,
hipóteses, aliás muito respeitáveis e eruditas, muita literatura,
mas, no fundo, palavras apenas; dizia um grande espírito português,
parafraseando SHAKESPEARE: O mundo está cheio de palavras. O Som confuso, o enorme ruído que elas fazem, perturba,
desgosta e cansa. Era ANTÓNIO CÂNDIDO o grande espírito que
modelarmente assim se exprimia.
Assim também no caso sujeito;
a maior parte do que se
tem escrito a propósito do Cabeço do Vouga, para nada serve: − perturba,
desgosta e cansa; words, words, words.
Para o estudo estritamente arqueológico que vier a fazer-se
do Cabeça do Vouga, vejamos, pois, o que de concreto se aproveita da bibliografia acima seriada, não nos detendo com o que,
de caminho, para outros lugares nela se colhe; interessa-nos apenas o
que ao Cabeço do Vouga se refere:
1.º − O local era muralhado: ...castelli marnelis no documento citado
por VITERBO, FIGUEIRElDO VIEIRA, e PINHO LEAL; e se ao vocábulo castellum houver quem pretenda, em relação ao Cabeço do
Vouga, retirar o significado de fortificação, o que hoje em dia
se encontra a descoberto, e que adiante se relatará, é suficiente
para demonstrar, de forma palpável, que a expressão castellum
marnelis dos documentos medievais correspondia a uma sólida realidade de
que presentemente não há o direito de duvidar.
Já FELIX ALVES PEREIRA nota que o Cabeço foi um castro.
2.º − Do espólio recenseado em
toda essa literatura,
regista FARIA E SOUSA indícios de magnificência em um sítio
alto e forte por natureza sobre o rio deste próprio nome;
o P.e CARVALHO DA COSTA − tijolos, pedras lavradas e outros
vestígios de edifícios; o mesmo declaram as memórias paroquiais de 1758; NASCIMENTO SILVEIRA, transcrito no
Portugal
Antigo e Moderno, vestígios de muros antigos e sinais duma
majestosa grandeza; fragmentos de tijolos e outros materiais
de antigas edificações, o Dr. FIGUEIREDO VIEIRA; MARQUES GOMES
repete o P.e CARVALHO DA COSTA, mas eleva as ruínas à categoria
de «alicerces de soberbos edifícios», acrescentando porém que,
ao tempo em que escrevia, nada existia já, o que constitui depoimento
cronológico importante.
/
345 /
O Sr. Dr. ANTÓNIO DE PINHO E
MELO recolheu no Cabeço
do Vouga moedas romanas, teve conhecimento directo da existência do poço, registando a tradição
dele constituir a entrada
para uma galeria subterrânea, e recolheu igualmente, nas cercanias do Cabeço, tijolos de relevo (presumivelmente romanos),
encontrados com material de construção de avultadas dimensões,
que ofereceu ao Museu de Machado de Castro, de Coimbra(44).
O escritor Sr. Dr. ALBERTO SOUTO refere-se também ao poço, e alude a
tegulas, tijolos de molde romano, um pondus, e a mós manuárias que,
todavia, não diz se são pré-romanas, romanas, ou medievais.
Afirmava o Portugal Antigo e Moderno que até
ao seu
tempo «ninguem ali encontrou cippos ou lapides com inscripções, muralhas, torres, estatuas, ou quaesquer outros vestigios
da famosa cidade romana» de Vacca.
Até Agosto de 1941 a afirmação do
Portugal Antigo e
Moderno continuava verídica; o que ultimamente fora recolhido
era o que andava à superfície, pulverizado pelo revolvimento
agrícola duma ou outra parcela de terreno e por muitos séculos
de romaria ao Espírito Santo do Vouga, fartamente concorrida
dos povos das redondezas.
Sem necessidade de escavações, como, a respeito do que lá
recolheu e
acima se refere, declarava em 1930 o escritor Sr. Dr. ALBERTO SOUTO(45).
Nessas mesmas condições muito material romano de lá
recolhi eu, em anos sucessivos de visitas.
Quanto a espólio, nada mais a bibliografia nos fornece;
e nem o menor vestígio encontro de estudos que sobre esse material se
tivessem feito.
Mas outros elementos a literatura transcrita nos fornece ainda, como
propostas de identificação da cidade romana outrora existente no Cabeço
do Vouga, problema de si muito delicado.
Para GASPAR BARREIROS, Fr. BERNARDO DE BRITO, FARIA E SOUSA,
P.e
CARVALHO DA COSTA, P.e FRANCISCO DO NASCIMENTO SILVEIRA, BORGES
DE
FIGUEIREDO, FÉLIX ALVES PEREIRA, e, também,
para o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO(46), tratar-se-á do
oppidum Vacca.
/ 346 /
Para o Sr. Tenente-coronel STRECHT DE VASCONCELOS e
para
o Prof. DR. AMORIM GIRÃO, é a própria Talábriga que no Cabeço devemos
considerar(47).
Fr. ANTÓNIO BRANDÃO e JORGE CARDOSO situam confusamente
junto do MarneI e do Vouga o monte e a cidade de Auranca,
também grafados Aurancha, que noutros lugares encontrámos
ainda escrito Aurunche e até Aronca, mais desfigurado (FIGUEIREDO VIEIRA, MARQUES GOMES, etc.).
Afastemos para longe do Cabeço do Vouga a referida
povoação, que não é difícil de localizar; basta, para isso, considerar como é vulgar, em textos arcaicos, o emprego do i e do u
consoantes, isto é, com valor de leitura, respectivamente, de j e
de v. Ainda no século XVIII era corrente essa grafia. Tudo se
esclarece rapidamente se dermos, portanto, ao u de Auranca o
/ 347 /
valor de v; a leitura será Avranca, como, aliás, se encontra já
em VITERBO, Elucidário, 2.º vol., 1.ª ed., pág. 48, e, na 2.ª ed.,
a pág. 34; do mesmo modo para a forma Aurancha, pois era
também corrente, ainda em nossos dias, o grupo ch com valor
de c, não sendo necessário insistir com exemplificações, que todos têm
presentes.
E Avranca não é senão uma forma antiga abrandada depois em Abranca e
reduzida modernamente a Branca pela deglutinação do A inicial, tomado indevidamente por artigo, que,
todavia, a pronúncia popular persiste em manter como outrora.
Submetendo, há tempo, esta identificação ao parecer de
filólogos, bem como do Sr. Prof. Dr. AMORIM GIRÃO, a quem,
pelo seu especial interesse por quanto se refira à arqueologia
do distrito, igualmente demos conhecimento dela, assim que
nos ocorreu, de todos recebemos aplauso e concordância.
Sob o ponto de vista arqueológico é de notar que na
Branca se registaram há muito materiais romanos abundantes;
Fr. BERNARDO DE BRITO descreve achados que pessoalmente fez
na serra de S. Julião (ou S. Gião), entre os quais: muralhas,
fortificações e um fragmento de marco miliário que o cauteloso
FELIX ALVES PEREIRA não rejeita inteiramente, mostrando-se, antes,
inclinado à sua reabilitação.
As Memórias paroquiais de
1758 localizavam ali a cidade de Langóbria,
notando ainda os vestígios que ficaram do arranque de pedra, na serra de S. Gião, para as muralhas, e
chamavam a atenção para o Cristelo da Branca.
MARQUES GOMES, como se vê igualmente da transcrição que
demos acima, chega até a pormenorizar, no alto da serra, vestígios salientes duma atalaia que supõe ter ocupado
toda a
circunferência do plaino, na extensão de cerca de 300 metros
de comprimento, de norte a sul, por 120 de largo.
Regista ainda parte da vala ou cava exterior, bem como da
linha do parapeito em toda a vala. Nem mesmo esquece, do lado do
nascente, por detrás da serra, a saída e a larga estrada pela
encosta do monte abaixo, com muros ou cortinas laterais de
pedra e terraço(48).
FÉLIX ALVES PEREIRA, por fim, relembra tudo isto e propõe
que na Branca e Cristelo se procure a jazida de Talábriga, no
que é secundado pelo Rev. JOÃO DOMINGUES AREDE.
/
348 /
A remota cidade de Aurancha, celebrada pela referência
medieval da Vita S. Martini Sauriensis(49) e confundida mais
tarde com a zona do MarneI, tem, pois, longínquo registo arqueológico e deu lugar à actual povoação da Branca; nada tem de
comum com o Cabeço do Vouga.
Recenseados os elementos arqueológicos da bibliografia do
Cabeço do Vouga, que afinal existiam, ao contrário do que
parecia acontecer, notemos que, em contrapartida, essa mesma
bibliografia destroi as duas lendas mais queridas à literatura e
ao jornalismo regionais:
1.ª − a heróica resistência dos talabrigenses à dominação
romana, fonte do patriotismo nacional, a espectaculosa parada
e arenga de Décimo Júnio Bruto, fatalmente invocadas quando
se falava do Vouga, foram, a meu ver, criteriosamente transferidas para o Minho, sempre aguerrido, pelo estudo que ao texto
de APlANO, muito citado mas nunca antes estudado nem compreendido, o Rev. Sr.
P.e MIGUEL DE OLIVEIRA dedicou.
2.ª − Do encontro de tropas miguelistas com destacamentos
liberais, ocorrido no Cabeço do Vouga em 1828 (28 e 29 de Junho) que
MARQUES GOMES, em O Distrito de Aveiro (pág. 50) e depois noutras
publicações, classifica de famosa batalha, e que LUZ
SORIANO (História do cerco do Porto), considera um dos mais
violentos que se travou em toda a nossa guerra civil, têm a literatura
e a oratória regionais tirado motivo fácil de exaltação
gloriosa; o sangue dos combatentes de 1828 terá, mesmo, regado
o histórico cabeço.
Afinal, maior tem sido o caudal de tinta que o recontro tem
feito correr sobre o papel; o Dr. FIGUEIREDO VIEIRA reduz tudo
aquilo a proporções bem mais modestas; contemporâneo dos
factos e vizinho do local, escreve, como acima se transcreveu:
«Ainda em 1828 ahi ouvimos troar a artilharia do exército liberal
e miguelista; e se bem que não houveram perdas a lamentar»...
Não houve perdas... Antes assim. Mas talvez vá sendo tempo
da literatura regional buscar novos temas e paragens, deixando o
Cabeço do Vouga − cuja cisterna se dizia estar atulhada de
cadáveres dos heróicos combatentes de 1828 − de guarda ao
milenário segredo que obstinadamente se tem recusado a revelar.
Verdade seja que mal lhe têm perguntado por
ele; e não
é com transcrições, sejam de quem forem, a propósito ou a
despropósito, que a Esfinge falará; há-de ser pela sondagem
directa das suas entranhas, e pelo indispensável estudo complementar do seu espólio arqueológico trazido para a luz do dia.
Ora, que nós saibamos, até à data das escavações que vamos
relatar, nenhumas outras se fizeram, e nem uma só palavra se
/
349 /
publicou de interpretação e estudo arqueológico do material
fragmentado recolhido à superfície.
Porque assim é, e porque, de forma alguma desejamos antecipar-nos ao
estudo que certamente dele virá a ser feito,
não o consideraremos no que passamos a referir; quando esse futuro
estudo for do domínio público relacioná-lo-emos então,
se for necessário para algum trabalho de conjunto, ao que por nós
directamente se apurou.
*
*
*
No conhecimento de toda a bibliografia acima coleccionada,
à medida que ia aparecendo a público, animou-nos o compreensível desejo de ver desvendado o mistério de Talábriga; que
hoje como então se desconhece onde tenha sido com precisão;
já em 1922, como ficou dito no começo desta resenha, anunciávamos em público
esse propósito.
Com o espírito de colaboração e de
desinteresse que sempre nos tem
determinado − e de que temos dado sobejas provas −
consequência duma profissão que tem por dever e objectivo colocar, à
disposição de todos, os tesouros acumulados pelo tempo e pela erudição
nas bibliotecas e nos arquivos − propusemos, há perto já de duas dezenas de anos, a exploração
arqueológica do Cabeço do Vouga a duas pessoas da nossa
convivência e que sempre haviam mostrado interesse pelo
estudo do problema: o Prof. Dr. AMORIM GIRÃO, da Faculdade
de Letras de Coimbra, e o escritor aveirense Dr. ALBERTO SOUTO.
Por ambos aceite e encarecida a ideia, nunca porém o respectivo trabalho de escavações se pôde concretizar, e de ano
para ano a exploração se adiava.
Amiudei visitas ao local, fui recolhendo vário espólio cerâmico que conservo, até que entretanto, em 1935, a revista
Arquivo do Distrito de Aveiro se fundou.
A ela tenho consagrado, na agradável companhia de dois
invulgares camaradas de Direcção, quanto posso da minha actividade extra-oficial, nela consubstanciando o melhor da minha
devoção pelo Distrito, donde, em fartos séculos de ascendência
conhecida,todos os meus são oriundos.
Com grande satisfação temos conseguido ver acorrer a nós
um grupo admirável, e felizmente em constante aumento, de
boas vontades e competências, a ponto de já hoje não ser
possível honestamente escrever a história do Distrito sem citar
as páginas dos sete volumes que até ao presente a revista conta.
Ao Arquivo do Distrito de Aveiro se deve já, além da sua
normal actividade e do renascimento dos estudos históricos na
região, por ele impulsionados, o conjunto de circunstâncias que tornou
possível a publicação, até aí baldadamente tentada, em
anos seguidos de esforços inúteis, do códice medieval, tesouro
/ 350 /
inapreciável de Aveiro, − Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus e
memorial da lnfanta Santa Joana, filha dei rei
D. Afonso V; às relações estabelecidas pelo Arquivo se devem
agora também as escavações realizadas no Cabeço do Vouga.
Ambos os factos honram a região e causam justo desvanecimento à Direcção da revista; para o primeiro, sacrificou-se
abnegadamente o Sr. Dr. FERREIRA NEVES, subsidiando o nosso
trabalho (nenhum conterrâneo levara tão longe a sua dedicação); para a exploração do Cabeço do Vouga encontrámos no
Ex.mo Sr. Joaquim Soares de Sousa Baptista a generosa compreensão e o pronto ânimo indispensáveis para o custeamento
duma empresa cujos resultados nunca podiam ser senão de
ordem estritamente moral, e esses mesmos com seu costumado
cortejo de sensaborias, que em coisas desta natureza nunca
falham, e às vezes donde menos seriam de esperar.
Devotado amigo do seu concelho, invulgar energia sempre
pronta ao desenvolvimento moral e material do seu torrão natal,
que para com ele tem contraído dívidas da natureza das que
jamais se podem saldar, dava-se ainda a circunstância feliz do
problema histórico do Cabeço do Vouga, que lhe fica vizinho, muito o
interessar, e, ainda, de ter relações de próximo parentesco com alguns dos proprietários dos terrenos a explorar(50).
Há muito pensara, ele também, em proceder a escavações
no local.
Nomeado recentemente para delegado, no concelho de
Águeda, da 6.ª Secção da Junta Nacional de Educação, da
qual, por minha vez, eu exercia idênticas funções no concelho
de Ílhavo, mais não foi preciso para que se convertesse em realidade a aspiração que tantos anos eu inutilmente acarinhara.
Devo ao Sr. Joaquim Soares de Sousa Baptista a inesquecível atenção que deu às minhas solicitações e propostas, o concurso
leal e desinteressado que trouxe aos meus velhos projectos, e a extrema gentileza com que espontaneamente desejou que fosse realizado por mim o estudo desta campanha
arqueológica.
Nos atrabiliários tempos que vão correndo, de puro egoísmo,
atitudes desta natureza escasseiam cada vez mais; razão, portanto, para se lhes dar o merecido registo, quando, por felicidade
rara, logram verificar-se.
Visitámos novamente o local, uma e muitas vezes, discutiu-se
o plano de trabalhos, fixaram-se directrizes, e, de harmonia com
/ 351 /
|
Fig. 2 − PONTE
VELHA DO MARNEL
Medieval e siglada;
seguramente, sobreposição doutra, romana. Fotografia tirada da ponte
nova. À esquerda, o Cabeço do Vouga. Ao centro, a vala do Marnel. À
direita, o Cabeço de Pedaçães. Na vertical do segundo pègão, a
contar da esquerda, a casa do antigo passal da igreja de Santa Maria
de Lamas, já hoje desaparecida. |
/
352 /
elas, em 18 de Agosto do corrente ano uma brigada de trabalhadores dava início à primeira fase das operações.
O ponto de ataque não fora designado ao acaso; o Cabeço
apresenta, nitidamente, dois terraços: o primeiro, subjacente à
ermida do Espírito Santo (Fig. 3); outro, no alto, passado o templosinho que sempre considerei, perdido naquele monte desabitado, e conservando uma imagem medieval da Santíssima
Trindade, de calcário, a sobreposição dum templo pagão. No
primeiro, existe uma cisterna onde tinham aparecido moedas
romanas e à qual várias lendas se ligavam, como acima dissemos, no
género das que o povo cria a propósito de quase todas as
cisternas castrejas que topa por esses montes. Alguma cerâmica
de construção (tegulæ e tijolos) de lá se tinha recolhido também.
|
Fig. 3 − A Ermida do Espírito Santo e o terraço a ela subjacente.
Panorama recolhido do alto do Cabeço. (Foto de ROCHA MADAHIL) |
No último terraço, passada a ermida, era menor o espólio
conhecido, mas algum se recenseara.
Além destes dois núcleos perfeitamente diferenciados, registaram-se na vertente Nascente do terraço superior (Fig. 4), espalhando-se por
toda ela até ao sopé do monte, e lamaçais do
MarneI, abundantes restos de cerâmica de construção e caseira, pondera, notável profusão de mós manuárias (de arenito local),
e ainda restos arquitectónicos, tais como pedras aparelhadas e
capitéis. Dessa encosta provinha, justamente, quase todo o material que
eu, e outros visitantes do local, há muitos anos vínhamos
recolhendo.
/
353 /
Aparentemente, os três núcleos isolavam-se uns dos outros. Também a
bibliografia localizava por ali mais dum aglomerado urbano; podia, pois, tratar-se dum caso de coexistência, ou, então,
de sobreposição, que são coisas diferentes e a considerar. O futuro dirá
de que se trata, afinal.
Por comodidade de trabalho, aceitámos essa diferenciação natural. Sendo
necessário dar preferência a um deles, optámos pelo primeiro terraço − o
da cisterna, que era um elemento fundamental.
E por aí se principiou o trabalho.
Limpo de pinheiros o terraço,
tratou-se de desentulhar a
cisterna, e, ao mesmo tempo, de sondar o terreno em volta dela.
|
Fig. 4 −
Vertente Nascente do terraço superior do Cabeço do Vouga,
que se estende até ao Marnel.
(Foto de ROCHA MADAHIL) |
Ao passo que os trabalhadores desciam e que os baldes
voltavam carregados de terra quase extreme, duas lendas se iam
desfazendo: a da famosa galeria de comunicação que atravessava o monte e
dava saída para os lados de Carvalhal, de que
não apareceram vestígios, e a do não menos famoso ossuário
das pobres vítimas dos aguerridos combates de 1828. De esqueletos humanos, nem a mais pequena esquírola.
E foi assim que a desobstrução da cisterna se levou a dez
metros de profundidade, até encontrar o seu fundo natural,
igualmente de rocha, pois também não revelou nascente alguma
de abastecimento; era mero reservatório de águas das chuvas.
/
354 /
Junto à cisterna, do lado Poente, a escavação revelou a
existência dum muro orientado de Norte a Sul (Fig. 5); descarnando a
construção em comprimento e profundidade, deparou-se um lanço de muralha
de 55 cm de largura na actual extremidade superior e 60 cm na base,
3,30 m de altura que até aí se encontrava completamente soterrada em terra humosa e raizame,
lanço que se estendia por 41,25 metros (Fig. 6).
|
Esta muralha porém, constituída por duas fiadas apenas, de
arenito, de aparelho rectangular, romano, sem enchimento intercalar, não
é um paredão singelamente corrido em toda a sua extensão: contrafortam-na oito pilaretes
equidistantes, com saliência igual para ambas as suas faces.
Na extremidade Sul da muralha, esta inflecte em ângulo recto para
Nascente, pouco existindo desse lanço por ir encontrar a rocha viva, e
acima do nível desta tudo haver desaparecido; o declive do terraço era para Poente, para o lado da muralha
contrafortada.
|
Fig. 5 −
A cisterna, com o dispositivo de extracção
de terras armado, e a muralha contrafortada que lhe passa junto. (Foto de ROCHA MADAHIL) |
No extremo Norte, em ângulo recto também, outro lanço
de muralha se pôs a
descoberto, em alinhamento perfeito, com 90 cm de espessura, sem mais
contrafortes do que um ressalto perto da extremidade Nascente,
e medindo 34m,65, ao fim dos quais volta para Sul, em ângulo
recto também, mas desaparecendo a breve trecho, como o lanço
Poente-Nascente, pela elevação natural do terreno. O grande
/
355 /
[Vol. VII - N.º 28 - 1941]
rectângulo muralhado apresenta as suas linhas mais importantes voltadas
a Poente e a Norte.
Dentro do recinto, que deve ter sido imponente, a avaliar pelo que resta
de seus muros, que justificam perfeitamente a expressão Castellum
Marnelis dos documentos medievais, encontraram-se alicerces de
construções de vária idade; num pequeno grupo chegado ao Sul, divisam-se
paredes de casas circulares de grande raio, que outras, rectilíneas,
posteriormente atravessaram. Mais perto da cisterna, fazendo triângulo
com as duas linhas completas de muralha, avulta um grande grupo de
alicerces, onde há nítidas sobreposições também e paredes circulares;
um rectângulo, distinto destas, mede 7,5 metros por 5,20 m.; dentro
deste, uma base de alvenaria dalgum altar, ou lareira, que dificilmente se poderá precisar. Um pouco a Sul deste rectângulo
perfeito, a 3,40 metros da cisterna, dois lados doutro, formados por
blocos bem aparelhados, de invulgar solidez e espessura; uma
destas pedras apresenta duas letras gravadas, de leitura insegura, possivelmente um T e um A.
|
Fig. 6 − Um aspecto da
muralha, na extremidade Sul, permitindo ver os contrafortes.
|
Descarnada a muralha contrafortada, notou-se, na
extremidade Norte, que, além de inflectir para Nascente, voltava igualmente
para Poente, em ângulo recto também, prolongando o
alinhamento que trazia.
/
356 /
Seguida essa nova pista, desobstruiu-se então um corredor de 4,20
metros de
largura (Fig. 7) limitado por outro lanço de muralha, paralelo ao
primeiro (contrafortado). Entre os dois panos de muralha pôs-se a
descoberto alguma coisa de verdadeiramente estranho e talvez inédito em
arquitectura arqueológica de Portugal: uma série de bastiões
semi-cilíndricos, interiormente de 2,90 metros de
diâmetro e 1,60 de fundo, de paredes de 50 cm de espessura, separados uns dos outros por parapeitos de metro de altura e fresta
livre daí para cima. Todos os bastiões porém, de que restam quatro (e
vestígios dum quinto), em média de 2,80 metros de alto,
apresentam uma particularidade notável: a curvatura é voltada
para o interior do corredor (Fig. 8), e nela se não depara vestígio de
entrada ou postigo de comunicação, ou de observação, para dentro do
semi-cilindro, que se não sabe como seria à frente, do lado da encosta,
nem tampouco se teria
cobertura, abobadada(51) ou não; esvaziou-se uma dessas construções (Fig. 9) e
verificou-se então
que interiormente a pedra é, da mesma forma, aparelhada, e que a face
interna da curva apresenta a mesma perfeição.
Da parte convexa, as paredes assentam num ressalto muito bem construído, cuja altura
varia com o declive do terreno, e da largura
exterior de 10 cm.
Ao fundo do corredor, fazendo a ligação das duas muralhas,
há um ressalto de 80 cm de altura (Fig. 10).
De tudo se levantou planta, permitindo as nossas
Figs. 11 e 12
apreciar o conjunto posto a descoberto.
|
|
Fig. 7 − Corredor entre a
muralha contrafortada e a linha de construções que lhe fica
paralela, à distância de 4,20 m. |
/
357 / O que imediatamente fere a atenção é a regularidade dos
alicerces das edificações maiores, formadas por vezes com grandes blocos, e sempre cuidadosamente esquadrados; a perfeição
da tessitura das muralhas, as dimensões destas, as construções
semi-cilíndricas do corredor, por enquanto inexplicáveis, são
elementos que se congregam para afastar desde já a hipótese
de porventura se tratar duma simpIes villa luso-romana, mesmo
luxuosa e vasta que fosse. Indubitavelmente, estamos em presença
dum recinto muralhado pertencente a um povoado de vulto, qualquer que
ele tenha sido, pois as
escavações não forneceram por enquanto elementos incontroversos de identificação; e a bibliografia, como vimos, também não é absolutamente
concludente.
|
Digamos agora qual o espólio recolhido, cingindo-nos sempre
− é bom repeti-lo − unicamente a este
terraço e à
zona representada na planta; é impossível, por enquanto, relacioná-lo
com todo o
Cabeço do Vouga; só depois de exploradas as três divisões que naturalmente se nos deparam, como
expusemos já, se pode tentar, honestamente, o estudo arqueológico
definitivo da estação. E depois do arqueológico, o histórico.
A recolha de espólio forneceu material de pedra, de metal,
de cerâmica, de vidro, e ainda restos animais.
MATERIAL DE PEDRA:
|
Fig. 8 − Três bastiões, o
corredor e a muralha contrafortada. (Foto de ROCHA MADAHIL) |
a) − de construção: dois blocos fragmentados, de arenito
/
358 /
vermelho da região, talhados em moldura, que tanto podem ter pertencido
a uma cimalha como a uma base (Fig. 13, f); a diagonal que serve de
orientação à moldura mede 30 cm. Outro fragmento idêntico, com o perfil
representado na Fig. 13, g. Um
fragmento de capitel também de arenito local, que devia medir cerca de
40 cm de diâmetro, e que poderia ter sido o remate
duma coluna de tijolos, como era usual; não encontrámos até à data, no
entanto, os característicos tijolos triangulares, de lado convexo.
|
Fig. 9 −
Um dos bastiões semi-cilindricos esvaziado. (Foto de ROCHA MADAHlL) |
b) − de indústrias caseiras: vários exemplares de
mola manuaria ou
trusatilis, de arenito, de alturas e diâmetros diversos; a mó dormente
(meta) abunda mais; da mó superior (catillus) apenas fragmentos, o que
se explica pela sua maior fragilidade. São todos do tipo vulgar.
As condições em que estas mós se encontraram, junto de espólio
unicamente romano, levam-nos a classificá-las, sem hesitação, dessa mesma época.
MATERIAL METÁLICO:
a) − ferro: três pregos de
construção, (clavi), de secção
quadrada, que deviam medir 10 cm quando completos.
/
359 /
b) − cobre: 1º − moedas: apareceram agora três, mas recenseamos
igualmente neste lugar a que apareceu outrora junto à cisterna, e que o Sr.
Dr.
António de Pinho e Melo conserva, como dissemos, pois a tivemos
presente.
Provenientes da escavação que estamos relatando:
I −Imperador Quintilo(52).
Anverso: legenda − IMP C M
AVR CL QVINTIILLVS
(AUG) cIrcundando o busto do Imperador, de
perfil voltado à
direita, cabeça cingida pela corona radiata de que são visíveis 3
raios; mostra vestir o paludamentum
Reverso: legenda (FORTUNA)
REDVX rodeando a figura da Fortuna, de pé, que volta a cabeça à
esquerda, segurando na mão direita o gubernaculum apoiado sobre um
globo que poisa no solo; na mão esquerda ergue
a cornucópia da Abundância.
|
|
Fig.10 −
O fundo do corredor fazendo a ligação das muralhas com o bastião e
permitindo observar a curvatura deste e o ressalto em que assenta, bem
como
o aparelho da muralha, ao fundo,
em rectângulo perfeito. (Foto de ROCHA MADAHIL) |
/
360 /
2 − Imperador (Constantino lI ?)(53).
Anverso: busto laureado do Imperador, de perfil voltado
à direita, tendo já desaparecido a legenda que o circundava.
|
Fig.
11 −
Planta das construções e alicerces postos a descoberto. Escala 1/400.
Desenho do Ex.mo Sr. Abílio Quaresma, da Arrancada. |
Reverso: duas figuras, talvez duas Vitórias, de pé, voltadas uma para
a outra, erguem, com a mão direita, duas coroas à altura das suas
cabeças. Em volta, legenda de que se conhece apenas VICTOR... Na base do
campo, isolada do grupo alegórico por um traço horizontal, uma palavra
que deveria ser . ROMA . , mas da qual existem apenas o ponto
inicial e as duas primeiras letras.
/ 361 /
3 − Imperador Galieno(54).
Anverso: busto do Imperador, de perfil voltado à direita,
cabeça Cingida pela corona radiata. Da legenda restam unicamente as letras
GALI, e o próprio busto está parcialmente destruído.
Reverso: relevo pouco perceptível e mutilado; da legenda
restam as letras NSERVA; possivelmente seria JOVI CONSERVA,
e o relevo representaria Júpiter nu, de pé, voltado à esquerda,
pois se distingue uma parte do corpo e o ceptro.
|
Fig. 12
−
Pormenores da planta anterior. Escala 1/400.
Desenho do Ex.mo Sr. Abílio Quaresma, da Arrancada. |
Proveniente dos trabalhos agrícolas realizados há anos junto
à cisterna, e recolhida pelo Sr. Dr. António de Pinho e Melo:
Anverso: busto de Roma, de perfil voltado à esquerda,
toucado com o capacete ornado e mostrando vestir o manto
imperial. Em volta, a legenda VRBS (ROMA).
Reverso: a loba (da fábula), voltada à esquerda, amamentando Rómulo e
Remo, sentados debaixo dela, voltados
um para o outro. Sobre ela, um fIorão. Em baixo, letras que parecem − SCONS.
Atribui-se a cunhagem de moedas destas aos reinados dos
imperadores Constante e Constâncio II (anos 333 a 350, e 323
a 361, respectivamente).
/
362 /
O aparecimento destas moedas reveste-se da maior importância para a cronologia da estação, pois documenta o seu
povoamento nos séculos 3.º e 4.º da nossa era; certamente se
não virá alegar, em contrário, que elas podem ter sido perdidas
lá, séculos depois.
2.º − outros objectos
− fíbula, ou alfinete de segurança, do tipo de mola enrolada; conserva ainda a sua elasticidade, e vai desenhada,
de perfil, em tamanho exacto, na Fig. 14, b.
− fragmento de qualquer pequeno objecto de uso doméstico,
possivelmente fíbula também, doutro tipo; é constituído por um
eixo terminando em botão nas duas extremidades,
e por uma espécie de fusilhão que gira em torno do eixo;
vai desenhado, em tamanho exacto, na fig. 14, C.
|
Fig.13
−
Material de construção, de arenito.
Desenho de ROCHA MADAHIL |
− outro fragmento indeterminado, que faz lembrar um pequeno batente de
fechadura exterior, de arqueta; mede
40 mm de comprido por 10 mm de largo mas está incompleto; apareceu
quando se procedia ao esvaziamento dum dos bastiões.
− um estilete, ou, possivelmente, um prego para o cabelo
(acus comatoria ou crinalis) com a extremidade que teria
sido ornada já carcomida; vai desenhado de perfil e de
frente na Fig. 14, d e e, em tamanho exacto (133 mm).
c) − bronze:
Um estilete, de arestas facetadas, terminando, a esbater, na
extremidade superior, em lâmina (fig. 14, a); muito provavelmente,
/ 363 / um
stylus destinado a escrever nas cera, tabuinhas revestidas
de fina camada de cera, onde se riscavam os caracteres;
a parte larga do stylus servia para apagar a escrita, alisando novamente
a camada de cera, que ficava apta a receber nova escrita.
|
Fig.14
−
Objectos metálicos: a, stylus de bronze; b, fíbula de mola, de cobre;
c, fragmento de fíbula doutro tipo (?), de cobre; d e e, acus comatoria (?), ou estilete de cobre.
Desenho de ROCHA MADAHIL |
/
364 /
MATERIAL CERÂMICO:
a) − de construção:
Tegulæ: rectangulares, do tipo vulgar
em Portugal, mas todas fragmentadas, em maior ou menor tamanho.
− Imbrices, também do tipo vulgar no nosso país; cobriam as juntas das
tegulæ. Da mesma forma que para estas dissemos, apareceram unicamente
fragmentos.
|
|
|
|
Fig. 15
−
Fragmento de taça de barro rosado, com ornamentação saliente; cerâmica
de importação.
Desenho de ROCHA MAIJAHIL. |
|
− Tijolo (later) fragmentado também, apresentando impressa a pata dum
cão, pormenor muito vulgar, ocorrido na secagem das peças ao sol.
b) − de usos domésticos, e, muito provavelmente,
de
fabrico local.
− pondera, de secção rectangular, e tamanho vário, mas, em média, de
10 cm de comprimento, e com dois furos para suspensão; empregavam-se na
indústria da tecelagem.
− amphoræ e orcæ: de barro claro, muito espessas (15 mm);
apareceram fragmentos de fundos, de colos, e de asas;
/
365 /
uma asa mede 20 cm de comprimento por cinco de largura, e é decorada com
um vinco de alto a baixo.
− fragmento de asa com três nervuras; mede 6 cm de largo e é, de barro
fumado; também de barro fumado são outras asas menores, cilíndricas.
− fundos de várias vasilhas, quer pretas, quer encarnadas, cujo estado
de desgaste não permitiu o decalque exacto dos perfis, como desejaríamos
ter feito e reputamos indispensável para o necessário estudo
comparativo.
Toda a cerâmica encontrada acusa, nitidamente, o preparo
das pastas, para o expurgo de matérias estranhas, e o emprego da roda de
oleiro.
Ao contrário do que acontece no terraço superior e na encosta Nascente,
o espólio ceramológico do primeiro terraço apresenta apenas exemplares
de superfície lisa, sem ornato inciso nem estampado, e de fundos planos.
No terraço superior é grande a variedade, tanto em data como em ornato,
chegando a exumar-se um fragmento com inscrição incisa onde se lê ... OPPIDA ..., o que tudo será oportunamente
relatado e estudado.
Cerâmica de importação:
− fragmento de taça, de barro rosado, apresentando reflexos irisados;
tem milímetro e meio de espessura; mostra-se na figura 15 em tamanho
natural, e o círculo que o envolve reconstitui o bordo da peça; a parte traçada a cheio corresponde com
exactidão ao fragmento recolhido; pela sua curvatura se determinou o
resto.
Os crescentes que o decoram, em duas linhas que certamente circundariam
toda a taça, apresentam forte relevo, obtido por aplicação individual,
devendo excluir-se a hipótese de moldagem.
Numa vitrina da sala romana do Museu de Machado de Castro tive ocasião
de ver um fragmento cerâmico proveniente de Conímbriga, de tipo análogo;
em vez de crescentes, é decorado com uma espécie de escamas salientes que fazem lembrar
uma pinha. Não está classificado.
Na visita que a Junta de Educação Nacional fez ao Cabeço do Vouga, como
adiante se dirá, foi lembrado, pelo Sr. Dr. VIRGÍLIO CORREIA, que o
nosso fragmento fosse de cerâmica de Acci.
Acci, ou Accitum, era uma colónia romana de Espanha, da Tarraconense,
cujo nome evolucionou depois para Guadix, facto recordado já por GASPAR
ESTAÇO nas suas Várias Antiguidades de Portugal
/
366 / (1.ª ed., pág. 145). Fica na Andaluzia, na
província de Granada.
O fragmento é precioso pelas conclusões que permite tirar
sobre o grau de cultura e as relações comerciais do oppidum.
Louça arretina, que noutros pontos do Cabeço apareceu,
tanto original como imitação, não se encontrou neste primeiro
terraço.
VIDRO:
− fragmento inclassificável de vidro de cor violeta, conservando agarrado um resto de massa branca não vitrificada.
RESTOS ANIMAIS:
− Molares (?) dum grande ruminante, a identificar.
− Uma concha de ostra, medindo 35 mm de largura e 90 mm
de altura.
Chamou a nossa atenção a ausência completa de cinzas,
de restos de cozinha, e a escassez do espólio encontrado
a par de edificações tão notáveis pela sua área, raridade de tipo
e perfeição de alicerces e de construção. Parece que a população não habitaria propriamente
aquele recinto, que, considerada
a vizinhança do santuário cristão medieval que o terá seguido, bem
pudera ter sido um grande santuário da época romana(55), afamado nas
redondezas, como para o seu sucedâneo se pode
documentar.
A escassez do espólio podia encontrar explicação no facto,
muito presumível, da povoação não haver sido destruída por
assalto, nem os seus habitantes obrigados a abandoná-la precipitadamente; com o andar dos tempos e a pacificação da Lusitânia, os povos
do Cabeço teriam descido às férteis baixas que se espraiavam até o Vouga
e criariam a povoação da beira-rio, se
é que já não existia cumulativamente, para ela trazendo, consigo,
os seus utensílios caseiros; nos altos deixariam a acrópole, e o seu
santuário. Sabemos, pelo menos, como a povoação do Vouga,
no sopé do Cabeço, junto da estrada, das pontes e do rio, tem
existência documentada anterior à fundação da monarquia portuguesa e foi de grande importância nos primeiros séculos desta.
Essa explicação, porém, pode ser invalidada pelo resultado
de subsequentes escavações; o recinto não foi ainda inteiramente
revolvido, já diremos porquê; e no terraço superior do Cabeço,
bem como na encosta voltada ao Nascente, tem aparecido, em
sondagens previstas no nosso programa e igualmente levadas
/
367 /
a efeito pelo Sr. Sousa Baptista, espólio pré-romano, coisa que
no terraço subjacente à ermida (se excluirmos os alicerces circulares)
não apareceu, e que será devidamente relacionado se a exploração
prosseguir. Só no final, conjugando todos os elementos recolhidos, se
poderá honestamente concluir; tudo o que por enquanto se diga, além do
relato friamente objectivo do que for aparecendo, como aqui se faz,
assenta em base insuficiente e vem apenas aumentar a confusão. Por nossa
parte, pelo menos; teremos o domínio bastante sobre nós próprios para
não precipitarmos conclusões nem aumentarmos inutilmente o número das
hipóteses acerca do Cabeço do Vouga.
Não nos deslumbra o achado, nem por ele, ou por qualquer
outro, buscamos glória.
O prosseguimento das escavações, donde há-de resultar o esclarecimento
do problema local, e, consequentemente, o de tantos outros que lhe andam
ligados, depende agora das Estâncias Superiores.
Em 18 de Setembro do corrente ano relatámos o que fizéramos, um pouco
mais sumariamente do que neste impresso, à segunda subsecção da 6.ª
Secção da Junta Nacional de Educação, de harmonia com o disposto na lei; ao respeito que geralmente é
devido a esta, acrescia o que a nossa situação de delegados da Junta lhe
impunha; concluíamos o nosso relatório nestes precisos termos:
«Projectam os dois delegados, que tomaram a iniciativa destas
escavações, pôr a descoberto todo o recinto muralhado do Cabeço da Mina,
abrir valas de sondagem nas encostas adjacentes, e pesquisar igualmente
o alto do Cabeço do Vouga que fica sobranceiro à Capela do Espírito
Santo, de tudo dando conta à Ex.ma Junta, e procurando esclarecer os
problemas arqueológicos ligados ao local.
Há, porém, a considerar o efeito do próximo inverno nas muralhas agora
postas a descoberto; faltas de argamassa como já se encontram, é de
prever que se desmoronem; e como interessa conservar o que sumariamente fica relatado, de tipo ainda não
conhecido entre nós, o signatário deste relatório tem a honra de propor
a V. Excelência que:
1.º − Sem demora seja declarado monumento nacional todo o Cabeço do
Vouga, centro de notável ocupação luso-romana, incorporando-se na carta
arqueológica do País.
2.º − Sejam autorizados os dois delegados aqui referidos
a prosseguir nas escavações segundo o plano acima indicado, que poderão
pormenorizar, sendo necessário.
3.º − Que pela Ex.ma Junta seja ponderada à Direcção dos Monumentos
Nacionais a conveniência de mandar proceder à consolidação e guarda das
muralhas agora reveladas, e do conjunto de estações luso-romanas do
Cabeço do Vouga.» /
368 /
Como primeira consequência
deste relatório, fez-se em 15 de Outubro a
visita oficial da Junta ao Cabeço do Vouga, tendo-se deslocado
expressamente ao local o Sr. Prof. Dr. JOÃO PEREIRA DIAS, que preside,
com sábia orientação e notável zelo, à subsecção a que os serviços de
escavações se encontram
adstritos, e o vogal, delegado da Junta, em matéria de Arqueologia, Sr.
Prof. Dr. VERGÍLIO CORREIA.
Sabedor de que ao escritor aveirense, Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, interessava
estar presente, e reconhecendo vantagem científica em reunir no local os
mais próximos delegados concelhios da Junta, convidou-o o ilustre
presidente a comparecer igualmente, sendo muito de registar a cativante
delicadeza com
que o Sr. Prof. PEREIRA DIAS se quis previamente assegurar da
concordância de quem levou a efeito as escavações e as relatara,
assentimento que pronta e gostosamente lhe foi declarado, pois não está
em nosso espírito fazer reserva alguma (o que seria anti-científico)
antes, pelo contrário, toda a colaboração aproveitável se utiliza − como
deste relatório se verifica − e se agradece.
O Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, que assistiu, por consequência, a esta visita
oficial da Junta, era acompanhado pelo Sr. Tenente comandante da Guarda
Fiscal em Aveiro e pelos correspondentes dos jornais O Século e Diário
de Notícias na mesma cidade, desta forma se explicando as notícias
publicadas nos referidos jornais em 17 de Outubro do corrente ano, nas
quais não houve qualquer interferência directa de quem promoveu as
escavações nem de quem as relatou.
A todos foi dado inteiro e pormenorizado conhecimento dos trabalhos
realizados, da continuação projectada, e do espólio recolhido que o Sr.
Sousa Baptista cuidadosamente conservava em sua casa.
Aguardam-se agora as determinações da Junta ao que lhe foi apresentado e
proposto; o que, até aqui, se realizou particularmente, em terrenos que
por enquanto são do domínio privado, e exclusivamente a expensas da
benemerência dum particular em quem não falece inteligência nem devoção
patriótica, é, a meu ver, mais que suficiente para interessar o Estado,
sob vários aspectos até.
Das sondagens realizadas no terraço superior à Ermida do Espírito Santo,
de que resultou \já abundante espólio ceramológico e metálico, revelador
de estádios de civilização anteriores aos documentados pelas muralhas e
mais achados do terraço que relatamos aqui, projectamos dar igualmente
conta ao público, mesmo que tenhamos de nos limitar ao registo dos
resultados obtidos na primeira parte desta campanha arqueológica, ainda
não oficializada.
E se ao estudo da Estação luso-romana do Cabeço do Vouga se não puderem
criar condições de prosseguimento, que, por
/
369 / vezes, não dependem unicamente do real
interesse, mesmo quando
incontestável, dos casos sujeitos, resignemo-nos todos e deixemos que o
Tempo misericordioso estenda nova camada protectora sobre as milenárias
ruínas, mudas testemunhas de grandiosas pugnas, de pequenas paixões, e
de estrutural incompreensão dos Homens.
Outra geração as despertará, talvez então definitivamente,
e lhes dará nas páginas redentoras da História a vida que por
agora baldadamente teremos procurado proporcionar-lhes, animados apenas
de puro interesse científico e de filial devoção aos pátrios Lares.
A. G. DA ROCHA MADAHIL |