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Memória sobre Aveiro do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa

XVII - Bispado. Praça municipal. Edifícios e ruas que acercam

S. Miguel, Paço, Costeira, etc. Paço e Liceu

Aveiro era sede de bispado desde o reinado de D. José I, ou antes, desde o governo do Marquês de Pombal; as datas da instituição, extinção, sua área, história dos seus bispos e finalmente quaisquer outras notícias que lhe sejam relativas farão objecto de uma notícia especial.

Primeiramente cumpre notar que a rua da Costeira era muito estreita, tendo sido alargada há poucos anos à custa de parte das casas da parte do nascente e por conta das obras públicas.

A entrada para a igreja da Misericórdia(14) não era como agora está, mas simplesmente constava de uns degraus de pedra, em frente da porta principal (15).

A casa em que hoje está o hospital era alugada pela Misericórdia; e o terreno que se lhe segue para o lado da Costeira era o cemitério dos Pobres que no hospital faleciam; este era nas traseiras, em seguida ao pátio por onde se entra para a porta travessa da igreja, com frente para a Corredoura e porta para esta rua, que ainda hoje lá existe.

A Rua Direita, desde a sua entrada até à primeira travessa que a comunica com a Rua do Loureiro, era muito mais estreita, de maneira que a primeira casa do poente, que pertencia a Luís Cipriano Coelho de Magalhães, avançava tão fora da linha que hoje tem, que nela havia uma janela que olhava para a Costeira; foi José Estêvão que lhe deu a largura actual, comprando todas as casas até à dita travessa, com o fim de fazer um jardim junto à casa que herdara de seu pai, o que a morte o não deixou concluir, ficando, porém, a rua na largura que ela tem.

Os Paços do Concelho foram construídos em 1797 pelo mestre Manuel de Pinho, natural de Ovar, mas estabelecido nesta cidade, onde deixou numerosa descendência, e diz-se que foi ele o primeiro que, tendo edificado a Cadeia, pela primeira vez a estreou.

Até 1834 não havia Tribunal no edifício da Câmara, porque tanto o corregedor como o provedor e juiz de fora faziam audiências em suas próprias casas, e aí mesmo presidiam aos mais serviços da sua competência. O lado do poente do segundo andar era a hospedaria municipal que a Câmara era obrigada a dar por certos dias aos magistrados que chegavam de novo, até que arranjassem casa, e assim também a certos funcionários ou pessoas de superior importância social que à cidade viessem.

Para este fim tinha a Câmara louças, guardanapos, etc., e mais um faqueiro de prata.

Em frente da Casa Municipal não havia aquela espécie de terraço cercado de grades que hoje existe, mas apenas um estreito passeio com degraus, em frente da porta, de modo que quem queria, podia chegar às janelas das prisões inferiores para falar com algum dos presos, ou para lhes dar esmola que eles continuamente pediam a todos os transeuntes, pois que nesse tempo não tinham, como hoje, alimento fornecido pelo governo, e os das prisões de cima tinham para receber as esmolas uma corda com uma seira por aquela segura a uma das extremidades, que puxavam acima quando alguém nela lançava alguma esmola.

A Casa da Câmara, até que esta foi construída, era uma pequena casa situada ao fim dum beco na Costeira e nas traseiras das casas que depois foram incendiadas em 18..., achando-se outra casa sobre as suas ruínas.

O Teatro foi construído em 1881, por acções, sobre as ruínas de uma casa que existia à entrada da rua de Santa Catarina, e tendo sido adjudicada à fazenda pública por falta de lançador em uma execução fiscal, foi concedida à Câmara, a pedido de José Estêvão.(16)

Por alguns anos se demorou a construção, até que afinal se levou a efeito.

Seguia-se a esta casa e ainda a uma outra o hospital chamado de S. Brás, sobre cujas ruínas está edificado o Liceu, também a diligências de José Estêvão.

Não era hospital, nem jamais o foi, mas sim uma hospedaria, para aí passarem a noite os romeiros que das terras do sul por aqui transitavam com destino a Santiago de Compostela, na Galiza.

Era crença naqueles tempos que quem não fosse a Santiago uma vez na vida ao menos, não podia salvar-se, de modo que pouca gente deixava de fazer esta romagem, quem podia, à sua custa; e quem era pobre, esmolando pelo caminho. Então aí, em tempos idos, um cavalheiro desta cidade e nela contador de fazenda, condoído dos peregrinos, estabeleceu aquela casa com acomodações, segundo o costume do tempo, estabelecendo-lhe rendas para sua sustentação na passagem, para pagar ao hospedeiro, e mais despesas inerentes, o que tudo consta de um testamento muito esquisito que deve existir no Governo Civil, onde pode pedir-se permissão para o ler, na certeza de que há-de achar no seu conteúdo e em diversas disposições muita graça e muita originalidade.

Eu só conheci umas paredes velhas e muito defumadas, restos destas casas, pois que tendo esfriado a devoção a Santiago, os sucessores do fundador deixaram-nas cair por inúteis, e receberam os foros e rendas, até que tudo foi vendido há poucos anos.

O que hoje é a Praça Municipal era então ocupado pela igreja de S. Miguel e seu adro, com excepção das estreitas ruas que o ladeavam.

A igreja ficava ao lado do Norte, tendo a porta principal para o poente, e batendo a capela-mor na rua da Costeira. Entre a igreja, porém, e aquela linha de casas que hoje fecham a Praça pelo lado do norte, havia uma travessa, beco, ou como melhor se lhe possa chamar, correndo do nascente a poente. Deve, porém, advertir-se que esta linha de casas, entre as quais avulta a do Correio, era então muito diferente do que é hoje, havendo somente a porta de entrada para a Conservatória, que era a entrada principal do palácio dos Tavares, depois Paço do Bispo, não havendo mais coisa alguma do que era antigo. Essa porta conserva-se no mesmo local em que então se achava; de ambos os lados dela viam-se muros de pedra, irregulares na altura e no alinhamento, que mostravam terem sido paredes de casas demolidas ou de logradouros de algumas casas da rua dos Tavares, embora nesse caso lhes ficassem ao nível dos segundos andares.

Para a rua que segue para o Alboi e a seguir à viela muito estreita e pouco limpa que ainda hoje lá existe, havia uma pequena casa sobradada com entrada e janelas para o poente, parecendo-me que também tinha porta para a travessa; do lado da Costeira uma outra casa, também pequena com frente para a rua, mas com um andar superior com porta e janela para a travessa e com um pequeno varandim, donde para ela se descia por uma escada de pedra. E por outra estreita escada, também de pedra e de dois lanços se descia da travessa para a Costeira. Esta casa, acrescentada, foi depois a morada do marchante António José Lopes.

Se era irregular por este lado o alinhamento, mais irregular era ainda pelo lado da igreja, pela saliência da capela do Santíssimo Sacramento, de uma sacristia da confraria do Senhor dos Passos, da casa dos ossos e da torre. Esta, unida à capela-mor, mostrava ser de construção posterior à da igreja, e em um dos seus lados, no qual estava o sino menor, havia por debaixo dele uma figueira brava, pelo que o povo chamava àquele sino o sino da figueira. Aqui e ali, junto das paredes, viam-se cardos e outras ervas bravias.

Pelo que fica dito, é claro que a largura da travessa devia ser muito irregular, sendo defronte da porta de entrada para o palácio, que ela era maior, e daí caía o solo em declive para o lado do Alboi, até ficar ao nível da rua. Parece ter ficado esta travessa para serventia do palácio, pois a alguns velhos ouvi dizer que os Tavares costumavam fazer entrar a carruagem por esta porta e seguindo pelo corredor que atravessando sobre um arco a rua dos Tavares, ia entrar no salão e que aí montavam e desmontavam, o que era possível, uma vez que o salão de espera tivesse a devida segurança de travejamento e soalho.

Do lado da Costeira, unido à sacristia, corria um muro até defronte da casa onde hoje está o hospital, e daí, deixando uma abertura com três ou quatro degraus de pedra, pela qual se fazia todo o serviço da igreja, saindo por aí as procissões, o Sagrado Viático, etc., continuava o muro para o poente, deixando uma rua estreita entre ele e a casa da Câmara.

Defronte das prisões havia no adro uma pequena capela, onde nos dias de obrigação se dizia missa aos presos.

Não sei donde saía o ordenado ao capelão; se era legado ou das rendas da Comenda, do cabeção das sisas ou enfim donde quer que fosse.

Então, o muro fazendo ângulo recto, seguia para o norte, até pouco adiante da esquina da frente da igreja, havendo aí umas escadas de pedra, largas e de não poucos degraus, por onde se descia para a rua que segue para o Alboi, mesmo no ponto onde findava a travessa ou serventia de que já falei. Estas escadas, porém, não davam serventia para a igreja senão às pessoas que, morando no Alboi ou ruas da Alfândega ou dos Tavares, quisessem evitar a volta que haviam de dar para entrarem pelo lado do hospital.

Os muros para o adro tinham apenas a altura de parapeitos; para fora, porém, mais altos e tanto mais quanto mais as ruas laterais iam descendo para o norte.

O palácio dos Tavares era uma reunião de edifícios de diversas épocas, uns fazendo ainda parte da muralha, e outros construídos sobre a ruína dela; prolongava-se desde a casa da Alfândega, com a qual confinava, até defronte da casa das Alminhas, deixando aí uma rua, em seguimento da ponte e da mesma largura desta, e virando para a Corredoura, como ainda hoje para ela se segue do Largo; de largura não tinha mais que a da antiga muralha e para ele se entrava pela porta que ficava na travessa de que já falei, e pela qual hoje se entra para a Conservatória. Claro está que não havia aí as obras que modernamente se fizeram para acomodação das repartições públicas, pois aquele corredor seguia sempre no mesmo nível e atravessando sobre um arco a rua dos Tavares, findava na porta de entrada para o salão de espera; esta porta não abria ao meio do salão, mas quase junto da parede do nascente, com uma janela para a rua dos Tavares, e duas para o lado do norte.

Mesmo no ponto onde findava o corredor da entrada, havia uma porta pela qual se descia por uma escada de pedra até à rua da Costeira, vindo sempre encostada à parede do edifício e terminando junto da porta da cidade que dava para a Costeira. Servia esta escada, a quem, querendo ir ao Paço, pretendia evitar a volta pelo adro para entrar pela porta principal.

Do salão da entrada, onde o porteiro recebia os recados, requerimentos e mais papeis que tinham de subir à presença do bispo ou do vigário geral, que também vivia no Paço, seguia, para o lado do poente, a parte do edifício construída sobre as ruínas da antiga casa pelo segundo bispo. Consta que essa casa velha, sobre cujas ruínas foi edificada a nova, comunicava com um arco com a casa que segue ao lado da viela estreita de que já falei, e que nessa casa era a cozinha do paço dos Tavares; no tempo dos bispos, porém, servia ela para habitação dos criados da sege, tendo na loja as cavalariças.

Para este lado do poente é que ficava toda a habitação do bispo; havia salas, quartos, e a cozinha; escada para a rua dos Tavares. A sala para as recepções de mais cerimónia era logo em seguida ao salão de entrada, ao lado do norte, seguindo-se um corredor para as diversas casas daquele andar e uma escada para o superior, onde havia o quarto do bispo, e além de outros aposentos, uma sala para as recepções ordinárias, havendo junto dela uma pequena varanda com muito boas vistas para a ria, barra e areais das costas. Ao lado do nascente do salão havia ainda casas até à abertura das portas da cidade. A porta principal da cidade era na parede do edifício pelo lado do Norte, ficando em frente da entrada da ponte; a esta porta seguia-se um vão de toda a largura da muralha, e no fim dele uma outra porta, ou antes, um arco, deixado talvez para segunda porta, arco que ficava ao fundo da Costeira e em frente desta rua. Entre ele, porém, e a porta, havia um vão descoberto para onde deitava uma janela das casas ou aposentos que ficavam ao nascente do salão a que já me referi.

Sobre o arco que fazia a porta da cidade, bem como sobre o outro que deitava para a Costeira, havia passagens cobertas para o jardim; encostadas à parede do edifício situado ao nascente do arco para a Costeira, havia uma escada de pedra, correspondendo à outra que vinha do fim do corredor de entrada a que já nos referimos, menor, porém, do que esta e que só servia para serviço do jardineiro e do criado que levava a água para regar as plantas.

O jardim era colocado sobre a abóbada de um casarão que seguia desde o vão das portas da cidade até defronte da Casa das Alminhas, havendo aí uma pequena rua em seguida da ponte e da largura desta pouco mais ou menos, a qual voltando a nascente, à esquina da dita casa, seguia para a Corredoura como ainda hoje se vê. Entre este casarão e as casas que existiam no local onde se acha a de José Pereira Júnior, com frente para a Costeira, havia um arco, e sobre ele uma varanda com uma parreira, se bem me recordo, e que não sei se pertencia ao jardim se à casa da Costeira, parecendo-me, porém, que era pertença desta. Por baixo deste arco, seguia também caminho para a Costeira, de modo que o casarão sobre o qual estava o jardim era cercado por todos os lados por esta passagem da Costeira para a Corredoura, pela linha que vinha da ponte, pela que ficava ao norte, entre ele e a cortina e o Canal, e enfim, pela abertura das portas da cidade. Chamava-se àquele arco o arco do ferrador, porque debaixo dele existia o cepo sobre o qual trabalhava o único ferrador que então existia na cidade, e ali mesmo eram ferradas e sangradas as cavalgaduras ali trazidas para esse fim.

No casarão com porta para a ria, era o açougue principal da cidade, a que chamavam o açougue do Bispo, para diferença do outro que havia na rua de Santa Catarina, também alcunhada por este motivo, em Rua do Açougue.

No vão entre as portas da cidade e a outra porta ou arco do lado da Costeira, havia um casebre de cada lado, muito estreitos e sem comunicação com a parte superior do edifício, em um dos quais, da parte do nascente, vendia o então bem conhecido Ventura, azeite, toucinho, e manteiga de porco, e no lado oposto cal fina de que vendia muita quantidade para caiação de casas.

Sobre o jardim, no ângulo nordeste, havia uma estátua de pedra, tosca, representando um homem lutando com uma serpente; acha-se hoje no quintal do Sr. Prior da Vera Cruz. Dizia-se então que fora ali mandada colocar por um dos senhores antigos do palácio em memória de um criado, única pessoa que se atreveu a ir matar uma grande cobra existente no Ilhote, e que fazia o terror de toda a população, criado que uns diziam ter sido morto por ela, ou que, segundo outros, conseguiu matá-la, sendo mais, provável esta segunda versão em vista do monumento que lhe foi consagrado.

Sobre as portas da cidade, no passadiço para o jardim, havia três janelas de peitoril que deitavam para a ponte, e à entrada do mesmo jardim uma pequenina capela, onde o bispo D. Manuel Pacheco de Resende ia todas as noites fazer oração; o altar e todas as paredes interiores eram de pedra calcária, com figuras religiosas em relevo, e parece que estas pedras se acham ainda nas sacristias da Sé Nova.   

Como se vê, a rua da Alfândega, começando então logo à esquina da ponte, segue em declive, mas então esta parte da rua era muito estreita, mal cabendo por ela duas pessoas a par; isto porém, só até ao ponto em que findava o declive da rua, sendo a causa desta estreiteza uns casarões encostados ao edifício do paço, de que só conheci as paredes, além de uma pequenina casa com frente para a rua que vinha a seguir da Costeira pelas portas da cidade para a ponte.

Nesta pequena casa, ou antes, loja, um homem das bandas de Guimarães que para aqui tinha vindo como caixeiro, vendia linho que, vindo-lhe do Porto por junto, ele fazia assedar e reduzir a estrigas para a respectiva fiação.

Tudo o mais deste acrescentamento eram ruínas que pouco a pouco foram desaparecendo, alargando-se sucessivamente a rua ate ficar como agora se acha. Ao fim deste acrescentamento havia uma passagem da rua da Alfândega para a dos Tavares, já fazendo parte da edificação moderna feita pelo segundo bispo, a que se chamava o arco da Alfândega, ficando em frente dela uma lingueta para embarque e desembarque, que hoje se acha mais abaixo defronte da Alfândega, assim como também foi mudada mais para poente uma outra que então existia na Praça do Pão, ficando fronteira à outra na rua da Alfândega.

Por morte do último bispo de Aveiro, D. Manuel Pacheco de Resende, ficou o Paço desabitado, até que em 1847 o Governador Civil que então era o visconde da Granja, transferiu para ali o Governo Civil, permanecendo aí até que a 20 de Julho de 1864 foi incendiado por descuido, ficando assim até que foi reconstruído na parte que hoje forma a casa do Sr. Manuel Antero Baptista Machado.

O edifício do Governo Civil, sem o haver privativo desde a sua fundação em todos os distritos, ocupou primeiramente a casa da Rua Direita, pertencente hoje aos herdeiros do general Rebocho, edifício que então era de um sujeito da Beira, por apelido Moura, que foi quem o edificou, adquirido pelo dito General; passou o Governo Civil para a casa do Dr. Monteiro, ultimamente demolida para alargamento do Terreiro; depois passou para as casas de José Maria Branco de Melo, na rua José Estêvão, e hoje dos herdeiros do Visconde de Valdemouro. Dessa casa passou para o Alboi nas casas que depois foram adquiridas pelo Sr. António Taveira e que hoje são da sua viúva e filhos, e finalmente, daí para o Paço como já se disse. Em virtude do incêndio, passou para o Liceu onde se demorou até 1907. Quando em 1864 teve lugar o incêndio, já não existia a parte do Paço desde as portas da cidade até ao seu extremo nascente, o que tudo tinha sido demolido, sendo empregados os materiais na construção do Liceu.

Este foi primitivamente colocado no Convento de Santo António, passando para a sua casa actual entre 1860 e 1864.

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A igreja de S. Miguel era a Matriz da cidade; a sua freguesia compunha-se da parte dela que fora vila, de muros a dentro, e do Alboi. Não sei se havia algum legado para pagar a missa dos presos, nem o destino que teve, se é que o havia como é de crer, pois que certamente a não diziam de graça.

Tinha esta igreja capelas em todo o seu comprimento, com retábulos antigos e velhos sem merecimento, exceptuando dois altares modernos, feitos poucos anos antes da demolição, para os dois lados do arco cruzeiro, os quais não condiziam com os restantes, e lá foram para S. Domingos, onde estiveram ao lado do camarim, até que o velho retábulo assim composto sem homogeneidade, foi substituído pelo actual.

Num destes dois altares era venerada na igreja uma imagem de Nossa Senhora, da invocação da Graça; transferida para a igreja de S. Domingos, foi crismada em Nossa Senhora da Glória e ficou sendo o orago da freguesia. Esta mudança de invocação far-se-ia por ser nome próprio da rainha Senhora Dona Maria Segunda − Maria da Glória? Não sei. Ela algum motivo teve, qual não sei, sendo certo que ao tempo o partido da Rainha e da Carta estavam então em toda a sua pujança.

Ora as capelas laterais eram mais ou menos fundas, sem simetria alguma, apresentando assim pela parte exterior saliências angulosas, o que, com o denegrido das paredes, todas de pedra igual à da antiga muralha e sem revestimento, davam ao edifício um aspecto mais do que desagradável. Além destas capelas, uma outra havia muito mais saliente para o adro; era a de Santa Catarina, pertencente ao morgado Balacó, a qual comunicava com a igreja por uma porta que somente se abria uma vez por ano, para celebração da missa a que o administrador do vínculo então era obrigado por determinação do instituidor.

Este morgado foi extinto e extinta se acha a família Balacó, tendo os últimos membros dela vendido os bens e foros que lhe restavam. Entre outros, tinha os de todas as casas da rua de Santa Catarina, e em algumas delas se vê ainda nos prédios exteriores a roda de navalhas, para prova de que eram foreiras a este morgado.

Era esta igreja a sede da comenda de S. Miguel de Aveiro, da Ordem de Avis, cujo último donatário foi frei João da Costa de Cabedo. O pároco era vigário, mas geralmente chamado Prior, para o distinguirem talvez dos vigários das três restantes freguesias da cidade, que eram como que seus sufragâneos. Apresentava-o o Rei pela Mesa da Consciência e Ordens.

No último ano rendeu esta Comenda, calculado o rendimento pelo preço dos géneros, 1.927$473 réis, assim distribuído: a terça parte, 642$493 réis, ao comendador; duas nonas partes, 428$325 réis, ao bispo da diocese de Aveiro; uma nona parte, 2I4$165 réis, à Patriarcal; ao pároco 4$000 réis, 128 alqueires de trigo, outro tanto de cevada, quatro pipas de vinho, e o terço das miúças, afora dos alhos e cebolas; a cada um dos quatro beneficiados 48$000 réis; ao coadjutor 164$525 réis; aos vigários das outras três freguesias da cidade 40$000 réis a cada um; o restante, 44$085 réis, paga uma pensão ao Colégio dos Militares de Coimbra, era distribuído para guisamentos pela Sé e freguesias da cidade.      

Não só dos frutos da terra se pagava o dízimo para a Comenda, mas também do sal e do pescado vendido na praça de Aveiro. Tinha além disto a Comenda alguns foros, entre os quais um de 1$067 réis, que lhe era pago por José Maria Branco de Melo.

Quanto aos beneficiados, é certo que na igreja de S. Miguel não havia Colegiada desde muitos anos. Ora, como na Misericórdia havia um coro de quatro capelães e dois meninos de coro, instituído por D. Isabel da Luz Figueiredo, mas nos anos que alcancei, funcionavam nela oito ou nove clérigos, presumo que pela erecção do bispado e da erecção da igreja da Misericórdia em Sé, o Bispo, para ter o clero mais numeroso e haver na mesma Sé um certo número de clérigos para os respectivos serviços, fazia reunir aos capelães da Misericórdia os beneficiados de S. Miguel, suprimindo assim e por esta forma, a falta de cabido que nesta Sé não havia.

Não sei se isto assim seria; é, porém, certo que pela extinção da Comenda os beneficiados deixaram de ter côngrua e que o coro da Misericórdia foi suprimido por deliberação da Mesa, em 2 de Abril de 1838, por diversos fundamentos, entre os quais, os de se haverem suprimido alguns capelães, e de se acharem os restantes, uns impossibilitados e não sendo os outros suficientes para o cumprimento das suas respectivas obrigações.

Houve muito quem censurasse, assim como houve quem aplaudisse a demolição desta igreja, chegando a dizer-se e até a escrever-se em periódicos e folhetos que o facto procedera por ter ela por orago S. Miguel, − o nome do príncipe proscrito. Não o acredito. É, porém, certo que, transferida a igreja paroquial para S. Domingos, e não podendo a freguesia custear as despesas de conservação e do culto em duas igrejas, se ela ficasse abandonada em breve cairia em ruínas como aconteceu à igreja do Espírito Santo, cuja demolição principiou em 29 de Março de 1858. Tanto uma como outra nada tinham que as recomendasse.

 
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(14) A antiga entrada para a igreja da Misericórdia era para uma escada em frente da porta, e saliente. Como avançava muito para a rua, foi substituída, no tempo do provedor António de Sá Barreto de Noronha, por um patamar e duas escadas laterais, que há pouco existiam. A Rua da Costeira foi alargada à custa das casas do Nascente e Poente. A nota está errada, pois não foi o sistema primitivo o agora adoptado. [Nota de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA]

(15) Esse sistema de entrada para a igreja por um patamar servido por duas escadas foi eliminado, tendo-se regressado à primeira forma de entrada, há alguns anos. [Nota de FERREIRA NEVES]

(16) O teatro actual foi construído sobre as paredes, já a meia altura, do teatro que em tempos fora principiado, no sítio da tal casa de que fala o Arquivo. [Nota de JOSÉ FERREIRA DE SOUSA]

 

 

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