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Memória sobre Aveiro do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa

XV - Ainda o Ilhote, etc. Seixal. Cemitérios

Tendo nós já falado no Ilhote, alguma coisa ainda há a dizer. Da esquina do quintal da casa de José Ferreira da Cunha e Sousa começava quase em recta a linha das paredes dos quintais incluídos ou demolidos para a abertura da avenida Bento de Moura, continuando essa linha com o valado que fechava a quinta do Seixal, Mendes Leite. Havia, pois, o Ilhote, uma espécie de península, entre os dois esteiros, o que ia até ao fim dos Arcos, que já não existe, desde a construção da estrada do Americano, e o outro do lado do sul que vai até à malhada da Fonte Nova.

Como já dissemos, era um terreno inculto, com lagos e poças onde viviam milhares de rãs e se produziam silvas, bajunças, caniços e outros vegetais semelhantes. Era, portanto, o Ilhote irregular, aqui alto, ali baixo, alagadiço, conservando-se nele lagoas permanentes, formadas tanto pelas águas fluviais, como pela invasão das da Ria.

José Ferreira Pinto Basto, cujo génio empreen-dedor é bem conhecido, comprou o Ilhote à Casa Barreto Ferraz e quis fazer nele moinhos que trabalhassem com a enchente e com a vazante; fez construir para esse fim a casa que ainda existe, e que, feito outro andar, é onde hoje se acha estabelecida a Escola Industrial Fernando Caldeira, e desaterrou uma parte do Ilhote para formar a caldeira, isto nos anos de 1828 para 1829. Ou por erros de cálculo, ou porque o edifício abateu, ficou a obra inutilizada e perdida a despesa, que se dizia ter sido de oitenta mil cruzados ou trinta e seis contos de reis.

Tentou-se depois aproveitar a caldeira para uma salina que chegou a ser construída, mas igual resultado deu esta tentativa, por ser insignificante a produção do sal e este incapaz de entrar no mercado.

Ficou tudo ao abandono. Foi Mendes Leite quem, tendo comprado a Ferreiras Pintos o Ilhote, assim como as mais terras que haviam pertencido aos frades de S. Domingos e que José Ferreira Pinto Basto havia adquirido depois da supressão dos conventos, fez pouco a pouco aterrar a caldeira desde a casa dos moinhos até às da viúva de João Justino Gamelas, aproveitando para isso os entulhos resultantes das edificações e obras na cidade e os lastros dos navios que conseguiu serem ali depositados.

O canal do norte ainda ficou por alguns anos até defronte da viela do Rolão, sendo afinal suprimido quando se construiu a estrada do Americano. Ora o esteiro, o caminho entre ele e a quinta e a arcada tudo findava onde agora passa a estrada para a Fonte Nova, mas um pouco a norte, como fica dito que seguiam. Daí para cima, como os terrenos eram muito mais altos, o cano da água vinha sobre uns muros através das quintas e seguia sobre o primeiro arco, o qual estava sobre um caminho que daí seguia para Arnelas, caminho muito baixo, escuro, lamacento sempre, porque nele rebentavam muitas nascentes de água; de ambos os lados os terrenos eram muito altos e espessos valados e árvores os defendiam, juntando as copas e formando como que um túnel, até ao ponto em que termina ou por aquele lado começa a rua do Seixal. Daí por diante, o caminho alteava, continuando de um lado o vale da quinta de D. Margarida Angélica Henriques de Carvalho, e do outro, o muro da cerca do convento do Carmo, hoje propriedade dos filhos de Sebastião de Carvalho e Lima. Não havia a estrada que hoje segue de Arnelas para a Estação, e só a que vai para a Forca, vinda de Sá, por entre o muro da sobredita cerca e a quinta do capitão José Pereira da Cunha.

Foi, então, que a Câmara Municipal (186_) resolveu prover radicalmente a este deplorável estado de coisas. Por esta ocasião, houve o projecto de construir uma estrada do Rossio até à Estação, que pudesse ser servida por um caminho de ferro do sistema americano; fez-se a estrada, mas não o caminho de ferro, sem embargo do que muita gente lhe ficou chamando e ainda hoje lhe chama a estrada do Americano. Na casa à esquina do Largo do Côjo, (há-de ser sempre Largo!) ainda se vêem os vestígios dos arcos embutidos na parede.

Não havendo casa alguma no vale do Côjo, nem com frente para ele, mas só algumas portas de quintais das casas das ruas de Vila Nova, José Estêvão, e Seixal, era este um sítio escuro, principalmente da viela do Rolão para cima, pois que nesta parte, sempre sujo e de maus encontros, nenhuma pessoa decente o frequentava.

Eu disse que a Casa do Seixal, hoje da família Mendes Leite, fora de António Nuno. Era este um dos cavalheiros mais distintos da cidade. Sendo legitimista, retirou para Coimbra, e aí faleceu, não deixando descendência. Foram seus herdeiros os senhores Champalimaud, que venderam a casa e quinta a Mendes Leite. Abandonado assim o Ilhote, lembrou-se alguém de cultivar a parte alterada desde a casa chamada dos moinhos até à casa da viúva do João Justino, e de fazer uma piscina no restante. Assim se fez, mas em poucos anos se viu que não valia a pena, pois criava pouco peixe, e este de má qualidade.

Quem lucrou com esta obra foi Mendes Leite, porque os aterros de tal piscina os aproveitou ele para altear a parte baixa da quinta do Seixal, confinante com a estrada do Americano.

Como dissemos já, esta quinta pertencera a uma senhora que, chamando para sua companhia um parente por nome António Nuno Cabral Montez, ficou este herdeiro dela, por morte do irmão.

Ultimamente empreendeu a Junta da Barra a aquisição e aterro do Ilhote, desde a casa da viúva de João Justino e outros conjuntos até à estrada que o atravessa, dando comunicação às duas freguesias da cidade, estrada muito útil para os que das povoações do sul da cidade se dirigem à Estação do caminho de ferro. Resta uma pequena parte por aterrar, neste mês e ano de Setembro de 1908, e a parte já aterrada, posto que não esteja nivelada, tem diversos fins, tendo nela lugar nos dias 28 de cada mês, um mercado ultimamente criado pela Câmara Municipal.

Diz-se também que neste largo vai ser edificada a Estação do caminho de ferro do Vale do Vouga, e bom é que este largo seja aproveitado sob um carácter permanente para qualquer fim que lhe tire aquele aspecto desgracioso que ainda hoje tem(11), contribuindo com a vista do cemitério para tornar pouco simpática aos viajantes estranhos esta entrada da cidade. Na verdade, importava e impunha-se a necessidade de mudar o cemitério para outro ponto ou de levantar o muro que já teve e que não foi reedificado. É certo que ele tem bastantes capelas, mas para as não transferir, deixasse-se apenas este cemitério para os possuidores delas(12). Também se impunha a necessidade de corrigir muitos erros a diversos epitáfios que ali se encontram.

 
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(11) Este largo (Ilhote) encontra-se presentemente aterrado, e nele se está construindo o edifício do Mercado Municipal, cujas obras começaram no dia 29 de Abril de 1940. FERREIRA NEVES.


(12)
Desde 1918 existe outro cemitério. FERREIRA NEVES.

 

 

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