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Memória sobre Aveiro do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa

IV - Limites da cidade, freguesia da Vera Cruz, etc.

Passando à freguesia da Vera Cruz, e começando pelo Rossio, findava aí a cidade. Havia aí, ao norte da capela, uns quatro ou cinco palheiros que serviam para armazenar sal e que foram expropriados pela Câmara e demolidos depois em 18…. Aquele quarteirão de casas que parte com o Rossio, com a rua da Rainha e com a Praça do Peixe, e que era o último da cidade por aquele lado, não sofreu alteração alguma, além das reedificações, para melhor, da maior parte dos seus antigos e acanhados prédios e de algumas tentativas para melhor alinhamento.

Passando à Praça do Peixe, aí findava a cidade naquele ponto. A única casa que existia, a poente da Praça do Peixe, era a que ainda hoje existe, onde está a alquilaria de Martinho Girão, Sucessores; mais nenhuma; e todo o espaço hoje ocupado pelas casas a poente da Praça e bairro novo, até às proximidades da ponte, era uma pequena marinha, que a Câmara, depois de 1834, expropriou com o fim de aumentar o Campo do Rossio. Levou anos a aterrar; e, enquanto se ia aterrando, pela Repartição de Obras Públicas foi aterrada a parte do esteiro da mesma Praça, compreendida entre o ponto onde ele hoje finda e as proximidades da casa da alquilaria, que naquele tempo pertencia a um negociante por nome José Lourenço Pereira Branco, ao que me parece, natural de Águeda, ali estabelecido.

Cumpre notar que o esteiro da Praça do Peixe só tinha cortinas de pedra pelo lado do nascente, e que, pelo lado do poente, era ladeado por um muro de torrão e lama, que servia principalmente para fechar a marinha e que partia próximo da quina da sobredita casa, em direcção ao esteiro de S. Roque, seguindo depois até à ponte, de modo que quem quisesse ir da Praça do Peixe, à ponte, tinha de dar a volta pelo Rossio. Começado, porém, o aterro da marinha, e feito pelas Obras Públicas o muro do esteiro pelo lado do poente e o cais de desembarque no seu topo, como agora se acha, começou a fazer-se a rua que vai da Praça até à ponte, edificando-se aí os primeiros prédios, e sendo os primeiros que construíram casas os Srs. António Pereira Júnior, um vasto armazém, e Francisco António do Vale Guimarães, umas casas de habitação.

Foram crescendo as casas para norte, até que, em 1870, pouco mais ou menos, a Câmara Municipal, a que presidia Manuel Firmino de Almeida Maia, no terreno que tinha sido marinha, demarcou ruas e chãos para casas, e logo começou a construí-las, achando-se assim um novo e populoso bairro, sendo só para sentir que às casas que fazem frente para o Rossio, não fosse dado um aspecto melhor do que aquele que tem a maior parte delas.

Ficou assim a Praça do Peixe internada na cidade, mais vasta e mais regular, com o chafariz que não tinha e que foi feito em 18… (4), e com um mercado coberto para a venda do peixe, começado pela Câmara a que presidia o Sr. Gustavo Ferreira Pinto Basto em 1906, e concluído pela do Sr. Dr. Jaime Duarte Silva em 1908.

Da Praça do Peixe para o norte, até à praia da Cruz, fechavam a povoação da cidade por aquele lado as travessas da praia para S. Roque e as ruas que descem do largo da capela, também para a praia, e não havendo mais alterações do que a  construção de casas novas sobre terrenos vagos, ou no lugar de pardieiros, que nesta rua de S. Roque, assim como na do Vento e na de S. Bartolomeu muitos existiam, ou abandonados ou servindo para escassos e depósitos de estrumes dos moradores.

Findava a povoação na praia da Cruz ou do junco, assim chamada por ser ali que aportavam as bateiras que o traziam à venda, tendo muito consumo, principalmente para as casas destas três ruas, todas baixas e térreas, que substituíam o soalho por camadas de junco, caprichando em o ter sempre muito limpo, as casas muito caiadas e tão bem arranjadas quanto o permitiam os seus meios.

Os despejos faziam-se para a praia ou esteiro de S. Roque, que então não tinham, como agora, os melhoramentos ultimamente efectuados, nem a estrada que vai entroncar com a de Esgueira ao passo de nível do caminho de ferro; a praia do junco ficava ao fundo da rua de S. Bartolomeu, e daí para nascente, não havia casa alguma até às primeiras da rua do Carril.

Agora já há casas sobradadas, não só naquele sítio, mas para nascente, com tendência para continuarem para o lado da fonte, assim como algumas há para o lado do sul, nos terrenos chamados da Granja, que naquele tempo eram havidos como pouco produtivos, porque lhes faltava o braço do homem.

A rua do Carril permanece hoje como no tempo a que me refiro já existia, quanto à sua extensão; fizeram, porém, depois algumas casas de novo, e foram melhoradas outras.

Passando à rua do Carmo, ou continuação da rua do Gravito, se assim o quiserem, que naquele tempo se chamava rua de S. Paulo, em virtude de uma capela desta invocação que ali existia, mas que eu já não conheci, aí terminava o povoado da cidade no convento dos frades do Carmo.

Do lado do mar, à esquina para a rua do Carril, havia um pardieiro de uma capela, cujo centro era um montão de silvas. A porta que saía para a rua do Carril tinha ao lado, embutida na parede, uma pedra em que se lia que ali tinha sido sepultado um vigário da Vera Cruz; não me lembro, porém, nem do nome nem da data do seu falecimento.

A este pardieiro seguia-se uma casa térrea, sobre a qual foi há poucos anos levantada uma casa sobradada pelo Sr. Domingos Mateus de Lima, natural de Esgueira e há pouco falecido; seguia-se um muro que fechava por aquele lado a quinta do Carril, pertencente a Pedro de Sousa, e depois a João Agostinho Barbosa Bacelar, cujos herdeiros a venderam ao pai do Sr. Dr. Jaime de Magalhães Lima.

Este muro, sem mais casa alguma, ia ao pátio do convento das freiras de Sá, pátio por onde se entrava para a igreja, que ficava ao norte, assim como para o convento, que ficava a nascente.

Das janelas deste lado, que deitavam sobre o pátio, costumavam as freiras ver e venerar a imagem veneranda de Cristo, Nosso Senhor dos Passos, quando saía da igreja de Nossa Senhora do Carmo, em procissão, conservando-se o andor por alguns minutos com a frente voltada para o lado de Sá, até que a procissão seguisse.

O convento de Sá existia exactamente no local que hoje ocupa o quartel militar. Do lado oposto seguia-se à igreja do Carmo um pátio com porta de carro para a rua e casas térreas de um e outro lado, nas quais estava aquartelada uma companhia de veteranos, que então tinha em Aveiro o seu quartel permanente.

Poucas praças ali residiam, porque as que tinham casas próprias ou de parentes seus na cidade ou nas povoações vizinhas tinham licença para nelas residir, sem contudo faltarem aos deveres de serviços, pois que estes pobres homens velhos, quando em Aveiro não havia qualquer outro corpo de tropas, faziam guardas à cadeia e onde mais se tornasse necessário, tudo compatível com as suas forças, e nas festas nacionais, que eram frequentes depois de 24 de Agosto de 1820, conduziam para o Rossio uma ou duas peças que no quartel existiam e davam as salvas de artilharia, enquanto o Batalhão de Caçadores 10, de que falaremos oportunamente, e algumas vezes também o regimento de milícias, faziam evoluções e paradas.

Esta companhia, cujas repartições se acomodavam, como dito fica, na parte que foi demolida para se construir a casa do Sr. Dr. Jaime de Magalhães Lima, deixou de existir por nova organização, já na segunda metade do século passado.

Pelo pátio mencionado se fazia o serviço mais pesado para a cerca e para o interior do convento, pois que este não tinha frente para a rua, sendo todo construído ao fundo da igreja, e ao lado do nascente dela, e todo o serviço de pé se fazia pela porta, ao lado da igreja, por onde ainda hoje ele se faz para as sacristias, porta travessa e coro.

Além do pátio e casas que ficavam ao nascente da igreja, em cujo local se acha a casa edificada em 1858 pelo pai do Sr. Dr. Jaime de Magalhães Lima, não havia mais casas, a não ser a que hoje serve de residência ao prelado da Diocese, quando vem de Coimbra a esta cidade.

A nascente dela, estava o lugar de Sá, pertencente ao concelho de Ílhavo; não sei por onde partia a linha divisória entre este lugar e o da cidade; parece, porém, que não erraremos muito se a colocarmos na estrada ou caminho que segue para Arnelas, pois se por um lado não havia mais do que um muro da cerca do Carmo, como ainda hoje se vê, do outro lado já tudo pertencia a Sá. A respeito deste lugar, diremos mais alguma coisa oportunamente.

A casa de residência episcopal, que está na esquina que faz esse caminho, era antigamente a hospedaria das freiras, residindo nela o frade da Ordem, vigário ou capelão das mesmas freiras, e delas confessor.

Podem considerar-se como pertenças da cidade a cerca dos frades e a do Seixal, até ao Ilhote, visto serem pertenças de casas que estão nas ruas da cidade. Entre elas passa a rua do Seixal, que pode dizer-se achar-se sem população, ao que era naquele tempo, porque, se agora tem de mais os prédios há pouco construídos nas traseiras da quinta da casa dos Rangeis, tem de menos as pequenas casas que seguiam desde a casa de António Nuno Cabral Montês, hoje dos herdeiros de Manuel José Mendes Leite, até à casa de Manuel José de Almeida, hoje incorporada no edifício do Colégio Aveirense.

A parte da estrada para a estação, que parte de Arnelas, não existia, e quem de Arnelas queria ir para o Senhor das Barrocas, sem passar à estrada, seguia por uma viela ou esgueiro, que partia por entre a casa da quinta dos Cunhas, hoje dos herdeiros de José Rodrigues, de Sá, e a outra casa construída por José Justino Cerqueira de Alpoim Borges Cabral, e que ia dar à capela de Nossa Senhora da Alegria, descendo para a estrada por uma escadinha que ainda hoje existe nas traseiras da capela. Ainda se vê hoje, na Avenida do Quartel à Estação, uma travessa para nascente, que era continuação do esgueiro, vindo de Arnelas. Ora, na estrada chamada do Americano, aquela parte que desce desde a boca da rua do Seixal até ao Ilhote, era muito mais baixa, estreita, sombria, correndo por ela sempre água nas nascentes que por aí brotam, principalmente na quinta da D. Margarida, ficando-lhe a qualquer altura com cômoro que tinha árvores altas; e a quinta do Seixal, em lugar do muro que agora a cerca, era limitada desde a casa da habitação em toda a volta por um valado de loureiros, que Manuel José Mendes Leite mandou cortar e substituir por muros; mas na parte que confina com o Ilhote, a quinta não tinha nesse tempo o terreno baixo que agora tem; o valado seguia pela linha em que o terreno alteia, de maneira que, chegando à extremidade do muro do quintal do Colégio Aveirense, seguia em linha com este e com os mais muros dos quintais da rua que então se chamava Vila Nova, com o das senhoras Mesquitas, o do Sr. Francisco de Moura e os mais que se seguem até que findava nas traseiras da casa do Visconde de Valdemouro.

Os terrenos acrescentados à quinta de Manuel José Mendes Leite foram-lhe dados em troca dos que ele cedeu do Ilhote, de que também era proprietário, para a factura da estrada, vulgarmente chamada do Americano. Naquele tempo, a água vinda para a fonte da Praça seguia da caixa no caminho da Forca por um encanamento sobre um muro de pouca altura, e, chegando ao caminho que ia para Arnelas, como o terreno começava aí a ser muito mais baixo, existia a Arcada do Côjo, por sobre a qual continuava o encanamento, seguindo paralelo ao valado de loureiros, e depois aos muros dos quintais, e dando volta nas traseiras das casas do Visconde de Valdemouro, tomava a direcção do Sul, até à rua do Cais, seguindo por ela até às traseiras da casa que foi de Alexandre Ferreira da Cunha, contígua à que é hoje dos herdeiros de José Eduardo de Almeida Vilhena, na rua Entre Pontes.

Deve dizer-se que a parte da estrada que decorre desde a ponte de leste até à casa dos moinhos, onde hoje está a Escola Industrial, foi há poucos anos alargada e mudando-se a cortina do Cais o necessário para dar à estrada a conveniente largura.

Descendo a água, como dissemos, até às traseiras da casa que foi de Alexandre Ferreira da Cunha, seguia essa rua por encanamento subterrâneo até à fonte. Os arcos eram de tosca alvenaria, já muito arruinados, em diversos pontos, faltando as capas aqui e ali; assim como também nas quintas por onde passava, os caseiros abriam o cano, davam de beber a gado, lavavam as mãos, etc., etc.

Por entre os muros e a vedação dos prédios, corria um caminho estreito, e pela parte de fora outro, entre a arcada e o esteiro que então existia à beira do Ilhote. Este esteiro era continuação do canal que atravessa a cidade e que tinha guardas de pedra até ao ponto, pouco mais ou menos, onde hoje abre a Avenida Bento de Moura. Dali por diante não tinha guardas, e o caminho que ia entre ele e os arcos era onde se descarregava o moliço, o que muito concorreu para o arruinamento da arcada, porque os lavradores iam levando também a terra que o moliço humedecia, e até o lodo do próprio esteiro, vendo-se até covas em vários pontos.

Era por isto que quem por ali passava, tinha de ir pela parte interior da arcada, a par do vale dos loureiros, por onde em muitos sítios só cabia uma pessoa. Foi, pois, uma obra importante, a da Câmara de 18..., na presidência de …………. a demolição da arcada, o aterramento do esteiro, a abertura da estrada e o encanamento subterrâneo da água, assim como as pesquisas para se encontrar novas nascentes, podendo não só abastecer a fonte da Praça do Comércio, mas as novamente construídas no largo da Vera Cruz e no largo da Praça do Peixe, indo ainda abastecer a do bairro dos Santos Mártires, posto que esta mais o devesse ser pelas águas que vão à do largo do Espírito Santo, na freguesia de Nossa Senhora da Glória.

Tratando-se ainda do Rossio e da Praça do Peixe, diremos ainda que uma Câmara entendeu que devia aumentar a área do Rossio, outra que devia obstrui-lo com a antiga praça de touros, hoje demolida, mas ocupada por outra de madeira, que se arma e desarma com facilidade, outra enfim, que devia aforar uma grande parte deste largo para edificações e ruas. Efectivamente, a população tem aumentado, e carecia de dar-se-lhe onde pudesse construir habitações; por outra parte, tendo desaparecido este largo e o dos Santos Mártires, ficou a cidade sem um campo [onde] com vantagem e com desafogo pudesse instalar-se o mercado dos dias 28 de cada mês, e no qual um corpo de tropas faça exercícios, de forma que o regimento de cavalaria 10 carecia de ir fazê-los na Gândara da Costa, a mais de cinco quilómetros de distância.

Seria melhor ter-se pensado bem no modo de conciliar estas duas necessidades, embora a Câmara não auferisse os foros que percebe dessas construções nos três largos, parecendo que o intuito de aumentar por esta forma os réditos municipais foi o principal que se teve em vista ao decretar estes aforamentos.

No entanto, é certo que a Praça do Peixe ficou em muito melhores condições, com uma rua que se presta à descarga de barcos, desde ali até à ponte, e o esteiro, guarnecido de cais por esse lado, ficou muito mais largo, e com a fonte ali mui necessária e útil.

Resta ao menos desafrontar, e para sempre, o largo do Rossio da deselegante construção da praça de touros, que nunca ali devia ser construída, e melhor será que o não seja em outra qualquer parte, e de nenhum modo dentro da cidade. Outro tanto diria da capela de S. João, se não ofendesse com isso a devoção, de muitos que o levariam a mal, como acto de impiedade. É, porém, certo que esta capela, não se recomendando como monumento de arquitectura, nem pelas suas belezas externas ou internas, servindo apenas para umas festividades que ali se fazem anualmente, à custa de devotos, já foi causa de que o canal que vem da Ria para o centro da cidade não viesse em recta desde as Pirâmides, até ao ponto em que, deixando a linha do norte-sul, segue para o nascente, obrigando a fazer-se nele um ângulo obtuso que lhe diminui a beleza, para que a capela pudesse ser conservada. E também é certo que bem podia ser colocada a um lado, desafrontando-se o largo, ou ao menos guarnecida e posta em condições de mostrar aos estranhos que há mais devoção e mais bom gosto da parte dos que pretendem conservá-la. Naquele estado, é triste que se conserve, pois que desfeia a cidade, principalmente a quem vem do mar, e sem inspirar a devoção a que tem jus, não tem coisa alguma que a recomende.

Era altamente conveniente que, a não ser demolida, atendessem para ela aqueles que desejam conservá-la(5).

 
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(4) Segundo informação recolhida, o chafariz da Praça do Peixe foi mandado construir pela Câmara de Aveiro em 1876. Todavia, a data gravada na fonte, que pode ser lida em 2018, é a de 1814. HJCO

(5) Esta capela começou a ser demolida em 3-11-1910. Ver Calendário Histórico de Aveiro. (HJCO)

 

 

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