Passando à freguesia da Vera Cruz,
e começando pelo Rossio, findava aí a cidade. Havia aí, ao norte da
capela, uns quatro ou cinco palheiros que serviam para armazenar sal e
que foram expropriados pela Câmara e demolidos depois em 18…. Aquele
quarteirão de casas que parte com o Rossio, com a rua da Rainha e com a
Praça do Peixe, e que era o último da cidade por aquele lado, não sofreu
alteração alguma, além das reedificações, para melhor, da maior parte
dos seus antigos e acanhados prédios e de algumas tentativas para melhor
alinhamento.
Passando à Praça do Peixe, aí findava a
cidade naquele ponto. A única casa que existia, a poente da Praça do
Peixe, era a que ainda hoje existe, onde está a alquilaria de Martinho
Girão, Sucessores; mais nenhuma; e todo o espaço hoje ocupado pelas
casas a poente da Praça e bairro novo, até às proximidades da ponte, era
uma pequena marinha, que a Câmara, depois de 1834, expropriou com o fim
de aumentar o Campo do Rossio. Levou anos a aterrar; e, enquanto se ia
aterrando, pela Repartição de Obras Públicas foi aterrada a parte do
esteiro da mesma Praça, compreendida entre o ponto onde ele hoje finda e
as proximidades da casa da alquilaria, que naquele tempo pertencia a um
negociante por nome José Lourenço Pereira Branco, ao que me parece,
natural de Águeda, ali estabelecido.
Cumpre notar que o esteiro da Praça do
Peixe só tinha cortinas de pedra pelo lado do nascente, e que, pelo lado
do poente, era ladeado por um muro de torrão e lama, que servia
principalmente para fechar a marinha e que partia próximo da quina da
sobredita casa, em direcção ao esteiro de S. Roque, seguindo depois até
à ponte, de modo que quem quisesse ir da Praça do Peixe, à ponte, tinha
de dar a volta pelo Rossio. Começado, porém, o aterro da marinha, e
feito pelas Obras Públicas o muro do esteiro pelo lado do poente e o
cais de desembarque no seu topo, como agora se acha, começou a fazer-se
a rua que vai da Praça até à ponte, edificando-se aí os primeiros
prédios, e sendo os primeiros que construíram casas os Srs. António
Pereira Júnior, um vasto armazém, e Francisco António do Vale Guimarães,
umas casas de habitação.
Foram crescendo as casas para norte, até
que, em 1870, pouco mais ou menos, a Câmara Municipal, a que presidia
Manuel Firmino de Almeida Maia, no terreno que tinha sido marinha,
demarcou ruas e chãos para casas, e logo começou a construí-las,
achando-se assim um novo e populoso bairro, sendo só para sentir que às
casas que fazem frente para o Rossio, não fosse dado um aspecto melhor
do que aquele que tem a maior parte delas.
Ficou assim a Praça do Peixe internada na
cidade, mais vasta e mais regular, com o chafariz que não tinha e que
foi feito em 18… (4), e com um mercado coberto para a venda do
peixe, começado pela Câmara a que presidia o Sr. Gustavo Ferreira Pinto
Basto em 1906, e concluído pela do Sr. Dr. Jaime Duarte Silva em 1908.
Da Praça do Peixe para o norte, até à
praia da Cruz, fechavam a povoação da cidade por aquele lado as
travessas da praia para S. Roque e as ruas que descem do largo da
capela, também para a praia, e não havendo mais alterações do que a
construção de casas novas sobre terrenos vagos, ou no lugar de
pardieiros, que nesta rua de S. Roque, assim como na do Vento e na de S.
Bartolomeu muitos existiam, ou abandonados ou servindo para escassos e
depósitos de estrumes dos moradores.
Findava a povoação na praia da Cruz ou do
junco, assim chamada por ser ali que aportavam as bateiras que o traziam
à venda, tendo muito consumo, principalmente para as casas destas três
ruas, todas baixas e térreas, que substituíam o soalho por camadas de
junco, caprichando em o ter sempre muito limpo, as casas muito caiadas e
tão bem arranjadas quanto o permitiam os seus meios.
Os despejos faziam-se para a praia ou
esteiro de S. Roque, que então não tinham, como agora, os melhoramentos
ultimamente efectuados, nem a estrada que vai entroncar com a de
Esgueira ao passo de nível do caminho de ferro; a praia do junco ficava
ao fundo da rua de S. Bartolomeu, e daí para nascente, não havia casa
alguma até às primeiras da rua do Carril.
Agora já há casas sobradadas, não só
naquele sítio, mas para nascente, com tendência para continuarem para o
lado da fonte, assim como algumas há para o lado do sul, nos terrenos
chamados da Granja, que naquele tempo eram havidos como pouco
produtivos, porque lhes faltava o braço do homem.
A rua do Carril permanece hoje como no
tempo a que me refiro já existia, quanto à sua extensão; fizeram, porém,
depois algumas casas de novo, e foram melhoradas outras.
Passando à rua do Carmo, ou continuação
da rua do Gravito, se assim o quiserem, que naquele tempo se chamava rua
de S. Paulo, em virtude de uma capela desta invocação que ali existia,
mas que eu já não conheci, aí terminava o povoado da cidade no convento
dos frades do Carmo.
Do lado do mar, à esquina para a rua do
Carril, havia um pardieiro de uma capela, cujo centro era um montão de
silvas. A porta que saía para a rua do Carril tinha ao lado, embutida na
parede, uma pedra em que se lia que ali tinha sido sepultado um vigário
da Vera Cruz; não me lembro, porém, nem do nome nem da data do seu
falecimento.
A este pardieiro seguia-se uma casa
térrea, sobre a qual foi há poucos anos levantada uma casa sobradada
pelo Sr. Domingos Mateus de Lima, natural de Esgueira e há pouco
falecido; seguia-se um muro que fechava por aquele lado a quinta do
Carril, pertencente a Pedro de Sousa, e depois a João Agostinho Barbosa
Bacelar, cujos herdeiros a venderam ao pai do Sr. Dr. Jaime de Magalhães
Lima.
Este muro, sem mais casa alguma, ia ao
pátio do convento das freiras de Sá, pátio por onde se entrava para a
igreja, que ficava ao norte, assim como para o convento, que ficava a
nascente.
Das janelas deste lado, que deitavam
sobre o pátio, costumavam as freiras ver e venerar a imagem veneranda de
Cristo, Nosso Senhor dos Passos, quando saía da igreja de Nossa Senhora
do Carmo, em procissão, conservando-se o andor por alguns minutos com a
frente voltada para o lado de Sá, até que a procissão seguisse.
O convento de Sá existia exactamente no
local que hoje ocupa o quartel militar. Do lado oposto seguia-se à
igreja do Carmo um pátio com porta de carro para a rua e casas térreas
de um e outro lado, nas quais estava aquartelada uma companhia de
veteranos, que então tinha em Aveiro o seu quartel permanente.
Poucas praças ali residiam, porque as que
tinham casas próprias ou de parentes seus na cidade ou nas povoações
vizinhas tinham licença para nelas residir, sem contudo faltarem aos
deveres de serviços, pois que estes pobres homens velhos, quando em
Aveiro não havia qualquer outro corpo de tropas, faziam guardas à cadeia
e onde mais se tornasse necessário, tudo compatível com as suas forças,
e nas festas nacionais, que eram frequentes depois de 24 de Agosto de
1820, conduziam para o Rossio uma ou duas peças que no quartel existiam
e davam as salvas de artilharia, enquanto o Batalhão de Caçadores 10, de
que falaremos oportunamente, e algumas vezes também o regimento de
milícias, faziam evoluções e paradas.
Esta companhia, cujas repartições se
acomodavam, como dito fica, na parte que foi demolida para se construir
a casa do Sr. Dr. Jaime de Magalhães Lima, deixou de existir por nova
organização, já na segunda metade do século passado.
Pelo pátio mencionado se fazia o serviço
mais pesado para a cerca e para o interior do convento, pois que este
não tinha frente para a rua, sendo todo construído ao fundo da igreja, e
ao lado do nascente dela, e todo o serviço de pé se fazia pela porta, ao
lado da igreja, por onde ainda hoje ele se faz para as sacristias, porta
travessa e coro.
Além do pátio e casas que ficavam ao
nascente da igreja, em cujo local se acha a casa edificada em 1858 pelo
pai do Sr. Dr. Jaime de Magalhães Lima, não havia mais casas, a não ser
a que hoje serve de residência ao prelado da Diocese, quando vem de
Coimbra a esta cidade.
A nascente dela, estava o lugar de Sá,
pertencente ao concelho de Ílhavo; não sei por onde partia a linha
divisória entre este lugar e o da cidade; parece, porém, que não
erraremos muito se a colocarmos na estrada ou caminho que segue para
Arnelas, pois se por um lado não havia mais do que um muro da cerca do
Carmo, como ainda hoje se vê, do outro lado já tudo pertencia a Sá. A
respeito deste lugar, diremos mais alguma coisa oportunamente.
A casa de residência episcopal, que está
na esquina que faz esse caminho, era antigamente a hospedaria das
freiras, residindo nela o frade da Ordem, vigário ou capelão das mesmas
freiras, e delas confessor.
Podem considerar-se como pertenças da
cidade a cerca dos frades e a do Seixal, até ao Ilhote, visto serem
pertenças de casas que estão nas ruas da cidade. Entre elas passa a rua
do Seixal, que pode dizer-se achar-se sem população, ao que era naquele
tempo, porque, se agora tem de mais os prédios há pouco construídos nas
traseiras da quinta da casa dos Rangeis, tem de menos as pequenas casas
que seguiam desde a casa de António Nuno Cabral Montês, hoje dos
herdeiros de Manuel José Mendes Leite, até à casa de Manuel José de
Almeida, hoje incorporada no edifício do Colégio Aveirense.
A parte da estrada para a estação, que
parte de Arnelas, não existia, e quem de Arnelas queria ir para o Senhor
das Barrocas, sem passar à estrada, seguia por uma viela ou esgueiro,
que partia por entre a casa da quinta dos Cunhas, hoje dos herdeiros de
José Rodrigues, de Sá, e a outra casa construída por José Justino
Cerqueira de Alpoim Borges Cabral, e que ia dar à capela de Nossa
Senhora da Alegria, descendo para a estrada por uma escadinha que ainda
hoje existe nas traseiras da capela. Ainda se vê hoje, na Avenida do
Quartel à Estação, uma travessa para nascente, que era continuação do
esgueiro, vindo de Arnelas. Ora, na estrada chamada do Americano, aquela
parte que desce desde a boca da rua do Seixal até ao Ilhote, era muito
mais baixa, estreita, sombria, correndo por ela sempre água nas
nascentes que por aí brotam, principalmente na quinta da D. Margarida,
ficando-lhe a qualquer altura com cômoro que tinha árvores altas; e a
quinta do Seixal, em lugar do muro que agora a cerca, era limitada desde
a casa da habitação em toda a volta por um valado de loureiros, que
Manuel José Mendes Leite mandou cortar e substituir por muros; mas na
parte que confina com o Ilhote, a quinta não tinha nesse tempo o terreno
baixo que agora tem; o valado seguia pela linha em que o terreno alteia,
de maneira que, chegando à extremidade do muro do quintal do Colégio
Aveirense, seguia em linha com este e com os mais muros dos quintais da
rua que então se chamava Vila Nova, com o das senhoras Mesquitas, o do
Sr. Francisco de Moura e os mais que se seguem até que findava nas
traseiras da casa do Visconde de Valdemouro.
Os terrenos acrescentados à quinta de
Manuel José Mendes Leite foram-lhe dados em troca dos que ele cedeu do
Ilhote, de que também era proprietário, para a factura da estrada,
vulgarmente chamada do Americano. Naquele tempo, a água vinda para a
fonte da Praça seguia da caixa no caminho da Forca por um encanamento
sobre um muro de pouca altura, e, chegando ao caminho que ia para
Arnelas, como o terreno começava aí a ser muito mais baixo, existia a
Arcada do Côjo, por sobre a qual continuava o encanamento, seguindo
paralelo ao valado de loureiros, e depois aos muros dos quintais, e
dando volta nas traseiras das casas do Visconde de Valdemouro, tomava a
direcção do Sul, até à rua do Cais, seguindo por ela até às traseiras da
casa que foi de Alexandre Ferreira da Cunha, contígua à que é hoje dos
herdeiros de José Eduardo de Almeida Vilhena, na rua Entre Pontes.
Deve dizer-se que a parte da estrada que
decorre desde a ponte de leste até à casa dos moinhos, onde hoje está a
Escola Industrial, foi há poucos anos alargada e mudando-se a cortina do
Cais o necessário para dar à estrada a conveniente largura.
Descendo a água, como dissemos, até às
traseiras da casa que foi de Alexandre Ferreira da Cunha, seguia essa
rua por encanamento subterrâneo até à fonte. Os arcos eram de tosca
alvenaria, já muito arruinados, em diversos pontos, faltando as capas
aqui e ali; assim como também nas quintas por onde passava, os caseiros
abriam o cano, davam de beber a gado, lavavam as mãos, etc., etc.
Por entre os muros e a vedação dos
prédios, corria um caminho estreito, e pela parte de fora outro, entre a
arcada e o esteiro que então existia à beira do Ilhote. Este esteiro era
continuação do canal que atravessa a cidade e que tinha guardas de pedra
até ao ponto, pouco mais ou menos, onde hoje abre a Avenida Bento de
Moura. Dali por diante não tinha guardas, e o caminho que ia entre ele e
os arcos era onde se descarregava o moliço, o que muito concorreu para o
arruinamento da arcada, porque os lavradores iam levando também a terra
que o moliço humedecia, e até o lodo do próprio esteiro, vendo-se até
covas em vários pontos.
Era por isto que quem por ali passava,
tinha de ir pela parte interior da arcada, a par do vale dos loureiros,
por onde em muitos sítios só cabia uma pessoa. Foi, pois, uma obra
importante, a da Câmara de 18..., na presidência de …………. a demolição da
arcada, o aterramento do esteiro, a abertura da estrada e o encanamento
subterrâneo da água, assim como as pesquisas para se encontrar novas
nascentes, podendo não só abastecer a fonte da Praça do Comércio, mas as
novamente construídas no largo da Vera Cruz e no largo da Praça do
Peixe, indo ainda abastecer a do bairro dos Santos Mártires, posto que
esta mais o devesse ser pelas águas que vão à do largo do Espírito
Santo, na freguesia de Nossa Senhora da Glória.
Tratando-se ainda do Rossio e da Praça do
Peixe, diremos ainda que uma Câmara entendeu que devia aumentar a área
do Rossio, outra que devia obstrui-lo com a antiga praça de touros, hoje
demolida, mas ocupada por outra de madeira, que se arma e desarma com
facilidade, outra enfim, que devia aforar uma grande parte deste largo
para edificações e ruas. Efectivamente, a população tem aumentado, e
carecia de dar-se-lhe onde pudesse construir habitações; por outra
parte, tendo desaparecido este largo e o dos Santos Mártires, ficou a
cidade sem um campo [onde] com vantagem e com desafogo pudesse
instalar-se o mercado dos dias 28 de cada mês, e no qual um corpo de
tropas faça exercícios, de forma que o regimento de cavalaria 10 carecia
de ir fazê-los na Gândara da Costa, a mais de cinco quilómetros de
distância.
Seria melhor ter-se pensado bem no modo
de conciliar estas duas necessidades, embora a Câmara não auferisse os
foros que percebe dessas construções nos três largos, parecendo que o
intuito de aumentar por esta forma os réditos municipais foi o principal
que se teve em vista ao decretar estes aforamentos.
No entanto, é certo que a Praça do Peixe
ficou em muito melhores condições, com uma rua que se presta à descarga
de barcos, desde ali até à ponte, e o esteiro, guarnecido de cais por
esse lado, ficou muito mais largo, e com a fonte ali mui necessária e
útil.
Resta ao menos desafrontar, e para
sempre, o largo do Rossio da deselegante construção da praça de touros,
que nunca ali devia ser construída, e melhor será que o não seja em
outra qualquer parte, e de nenhum modo dentro da cidade. Outro tanto
diria da capela de S. João, se não ofendesse com isso a devoção, de
muitos que o levariam a mal, como acto de impiedade. É, porém, certo que
esta capela, não se recomendando como monumento de arquitectura, nem
pelas suas belezas externas ou internas, servindo apenas para umas
festividades que ali se fazem anualmente, à custa de devotos, já foi
causa de que o canal que vem da Ria para o centro da cidade não viesse
em recta desde as Pirâmides, até ao ponto em que, deixando a linha do
norte-sul, segue para o nascente, obrigando a fazer-se nele um ângulo
obtuso que lhe diminui a beleza, para que a capela pudesse ser
conservada. E também é certo que bem podia ser colocada a um lado,
desafrontando-se o largo, ou ao menos guarnecida e posta em condições de
mostrar aos estranhos que há mais devoção e mais bom gosto da parte dos
que pretendem conservá-la. Naquele estado, é triste que se conserve,
pois que desfeia a cidade, principalmente a quem vem do mar, e sem
inspirar a devoção a que tem jus, não tem coisa alguma que a recomende.
Era altamente conveniente que, a não ser
demolida, atendessem para ela aqueles que desejam conservá-la(5). |